A falácia da desobrigação


…………[Menina Lendo, Alice Soares Brasil, 1917-2005]

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A notícia de que o Ministério da Educação, por meio de seus mecanismos, desobrigaria as escolas básicas brasileiras a ensinarem a literatura portuguesa caiu como uma bomba nas redes sociais. A quantidade de debates e compartilhamentos dá uma noção de que o assunto é controverso. Ainda bem. Sinal de que alguém se preocupa e está atento às mudanças no ensino oficial.

Eu fui uma das pessoas que se assustaram – negativamente – com a notícia. Minha primeira reação foi de contrariedade. Hoje em dia, isso se traduz na expressiva pergunta: “Oi?”; ou em uma já mais fora de moda: “Como assim?”. É que sou apaixonada por leitura e literatura desde bem pequena. Toda a minha vida foi pautada por isso. Não por acaso, tornei-me professora de Português e Literatura, e não consigo ver como retirar um conteúdo do currículo pode melhorar algo em um país como o nosso.

Em um “país como o nosso”… Uma pena. Participei algumas vezes de decisões sobre o Enem, sobre provas e avaliações, etc., e me lembro bem de uma discussão que me causou asco, faz um tempo. A lógica era a seguinte: se o ensino de alguma coisa vai mal, não gera os resultados que gostaríamos de obter, então é simples: retira-se a matéria e pronto! Isso mexe em estatísticas – para cima – e aumenta o fosso entre escolas boas e ruins.

Na época, a discussão era sobre o ensino de inglês para nossos jovens. Todo mundo sabe que estudar inglês na escola raramente faz alguém fluente. Mas aí a solução é cortar? Isso se traduz na seguinte expressão da sabedoria popular: “Quando a gente pensa que não tem mais jeito de piorar…”. Pois é. Piora. Se o inglês está ruim, melhor não ter inglês algum. Que beleza.

A sensação que tive em relação à retirada da “obrigação” de aprender literatura portuguesa foi meio essa aí. Decisão de quem não pretende alçar para melhor. Decisão simplificadora. Então deveriam ir retirando também algumas coisas de Matemática, Química, Geografia… e assim vai. Bom, isso sem contar que as origens da nossa literatura, a brasileira, é completamente confundida com a literatura portuguesa. E aí? Vamos partir de onde?

Não importa. Na minha cabeça, a ideia é sempre ampliar horizontes. Não deveríamos saber só alguma coisa de literatura portuguesa (Como alguém atravessa os anos na escola sem saber nada de Fernando Pessoa, meu Deus?). Acho que a ideia é conhecer algo dos franceses, tão importantes para o nosso realismo; ou dos alemães, importantes para o nosso romantismo. E, é lógico, saber mais das literaturas africanas, incluindo os mais contemporâneos. Não dá tempo, eu sei, mas de vez em quando isso faz diferença na vida dos estudantes. Acreditem: faz sim. Não é só a área de Exatas que muda a vida de alguém – vislumbram a manipulação? Entender a nossa própria literatura passa por conhecer a história do mundo. Não estamos isolados de nada, e nem estivemos. A literatura também não está.

Mas não é tão simples assim. Por que não melhorar o ensino de literatura então? Bem, será que alguém acha que não pensamos nisso? Tolice. É claro que pensamos. Todos os dias um professor de literatura tem um embate com essas questões. De tempos em tempos, uma boa escola, inclusive pública, designa pessoas empolgadas e atuantes para melhorar a matriz curricular, baseada, é claro, nos conteúdos comuns que são definidos pelo governo. Uma escola “desobrigada” muito provavelmente não se preocupará… E nem vou mencionar as razões. Tem pressão contrária para todo lado. Literatura é muito perigoso, muito desafiador. Tirá-la ajuda muita gente que quer mais é apagar as luzes. Se já não conseguimos alcançar a literatura mais nova, contemporânea, agora então não saberemos nem de agora e nem de antes. Saberemos o quê? E não adianta citar Camões para dizer de como ele é chato, e de quanto será um alívio livrar nossos jovens geniais disso. Há muitos portugueses interessantes, importantes, provocadores, além dele. E há, acima disso, o perigo de referendar uma mudança que desumaniza e ajuda a erigir um país de pessoas que não leem, não aprendem, não pensam, não sabem comparar, não sabem pesquisar.

Aqueles professores empolgados e atuantes que mencionei ali não conseguem melhorar muito as matrizes das escolas em que trabalham. Sabem por quê? Porque este é um sistema imenso, em que não se mexe em apenas uma peça. É um dominó, mas muito amarrado. Quando tentaram mudar bastante a matriz na escola em que trabalho, quando um grupo competente e apaixonado resolveu fazer uma reforma no ensino de literatura, viu-se prensado entre questões internas e externas. Por exemplo: quando uma escola altera muito uma matriz, corre-se o risco de que as transferências de alunos, para dentro e para fora, sejam prejudicadas. Trata-se de uma certa equalização que as séries, em escolas diferentes, precisam ter entre si. Por isso existem documentos com currículos básicos, recomendações, para que o sistema funcione mais ou menos integrado e as pessoas possam se mover. Que encrenca!

Já não há livros indicados para leitura, como era no vestibular. Perguntem o que os professores de literatura acham disso. Também quase não se escreve na escola, exceto uma tal Redação, que “treina” para o exame nacional com fins de vestibular. Enfim, o que mais? Retirar conteúdos e possibilidades do currículo certamente não é algo que vá melhorar nada. Aliviar, talvez, para quem só quer lucrar ou, ao contrário, para quem não quer ter muito trabalho.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ana Elisa Ribeiro é doutora em Linguística Aplicada pela UFMG, pós-doutora pela Unicamp. Professora e pesquisadora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. É escritora, com diversos livros publicados, entre eles “O e-mail de Caminha” (RHJ, 2014), que tem aproximado estudantes do ensino básico da Carta de Caminha, e “Novas tecnologias para ler e escrever” (RHJ). E-mail: escrevaquerida@gmail.com

 




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