Telenovela
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No próximo dia 21 de agosto, às 19h, o escritor Mauricio Salles Vasconcelos lança Telenovela, seu segundo romance no Club Noir (Rua Augusta, 331, São Paulo). Após os autográfos será apresentada a performance Trauma TV, tendo como base o livro. O autor participará da cena ao lado da Banda-de-Poesia, composta pela música pop-eletrônica de Ciro Lubliner e Paulo Ricardo Alves, com direção de Amélia Loureiro.
Telenovela
Romance de Mauricio Salles Vasconcelos
Editora Giostri
A morte de Mãe Sara, uma médium-vidente, desencadeia uma série de transformações no interior de uma pequena família. Mãe de Aurora, uma renomada professora de Literatura Comparada, e de Aranha, funcionário público, tomado pelo vício da cocaína e por memórias da juventude em um subúrbio carioca, Sara não cessa de exercer sua influência. De retorno à casa materna, os filhos realizam um lento trabalho de luto diante da tela da TV, que transmite a novela Capital de emoções, acompanhada por Mãe Sara no instante de seu falecimento. Em sintonia com ficções produzidas na América Latina como La traición de Rita Hayworth (Manuel Puig), La mendiga (César Aira) e Una novelita lumpen (Roberto Bolaño), este é um romance centrado na relação entre cultura popular e media.
Leia trecho do livro
Mesmo em Engenho, um ermo até pouco tempo atrás, povoado por jogadores de dominó, desempregados e mendigos entre animais e plantas secas, o enfrentamento da vida noturna se impõe. Um dançarino de clube black atravessa o movimento lento do carro fazendo com que a marcha morra à toa na minha mão.
Decido mudar de rumo e vou ganhando a rua detrás da Praça, onde Nelma, a agregada, diz morar. Na rua de mãe (Cajá), encontro, com facilidade, um lugar vago ainda que eu tenha de andar a pé até reencontrar Aranha. Não sem desespero, porque desconheço o que está acontecendo com meu único irmão desde a fuga de Veloz e da entrevista concedida ao Repórter Mundo Hoje, nesta noite mesmo.
Quando percebo que meus cabelos estão agitados em demasia, cobrindo-me o rosto, começo a avaliar meu nervosismo. Ou já seria anterior o embalo voluntário favorecido pelos fios longos, bem finos, que sempre mantive sobre os ombros? A música de abertura de Capital de emoções vem forte. Nem é mais memória. Melhor pensar como um contágio pelo que é paralelo, exígüo, quase compulsório, e parece vir do nada.
Pequenas chicotadas do cabelo consentidas pelo vento firme que passa pela cidade. Desde o Leme, uma continuidade que não se quebra. Pego decidida minha trilha de pedestre, algo bem comum para mim nos trajetos de antes, bem aqui, na Ladeira em direção à Praça. Trajetos entoados quase sempre por uma música de novela.
Um tema sonoro para a correria de Sarita ou Sorrah pelas ruas plenas de conflito. Alguém sempre me assiste (uma voz, ao fundo, se superpõe, fica audível como sendo só minha). “Alguém estará à minha espera”. Então, não paro de correr, integrada a uma trama que não contém apenas as pessoas conhecidas. Abro-me para as ruas, como faria Sorrah em busca de uma ação maior do que a permitida em um mundo tão pequeno e parcelado. Cabelos. Pessoas. Atores.
A música toma as palavras e explica a mínima passagem de alguém no tempo. Já diviso a Praça – Mistura de melodia hiperproduzida e fantasia sem trégua pela próxima criatura a cruzar por mim. Melodia que pega fácil, baba, balada. Parece dizer tudo, tão propriamente, como se tratasse de uma trilha sonora pessoal e permanente.
A princípio, não entendo o que meu irmão fala no meio do povo daqui. Engenho, o nome englobante. O gesto de títere de sertão, legado por Del Rey, nosso pai, mesmo sem ele saber, se sobrepõe a qualquer pensamento, ao sentido mais urgente: uma mecânica de olhos arregalados. O rosto de alguém sempre será um mapa. As pessoas se solidarizam e pensam numa forma imediata de contatar (para não dizer da confirmação de sua morte, talvez rapto) seu filho.
De imediato, Nívea é avistada. Corro com o olhar em busca de Bela. Só consigo, depois de um tempo, reconhecer seu aparelho videográfico, já que está imóvel, concentrada no foco sobre Aranha, situada bem no meio dos outros que presenciam o depoimento daquele conhecido como “pai de Veloz”.
Ela dá seqüência ao registro de um evento que se prolonga da casa-de-mãe para a Praça com o ajuntamento dos moradores e passantes curiosos, há pouco formado. Mas não deixa de contar com a participação dos mesmos, anteriores componentes. De volta para a casa, sem corte. Vejo que estou sendo gravada pelo vídeo.
Aranha dirige-se à máquina operada por Bela e pede um minuto de meditação geral sobre o que vem ocorrendo. Sobre o filho e outros como ele, possuídos pelo universo agora escancarado – Oxi. Ou Onix (na boca de seus usuários, traficantes já em delírio).
“Os jovens passam a morrer cedo demais. Foram mais crianças do que qualquer outra coisa. Não alcançam outra ideia do tempo. Mas ficam logo montados com tudo o que o dinheiro pode oferecer e a maioria das pessoas não consegue reunir no tempo completo de duração de uma vida. Essas crianças estão no lugar central, pelo que há de mais breve. “Só se for agora”. Eles dizem e celebram, para imediatamente depois morrer.
Os meninos se atiram no efeito de ter a vida inteira na mão – tudo o que não se vê – Do maior luxo e gozo até uma queda apressada. Metralha. Nada ao acaso. Tudo o que nunca ninguém daqui vai possuir. As crianças, cada vez mais rápido, se jogam de cabeça. De uma vez por todas. A satisfação da vida inteira, na real, na moral, no momento justo em que acaba. (Velhos soberanos da poeira pelos ares).”
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Suas próprias palavras o atordoam. Avelino (ou Aranha) percebe o peso do lugar que vai tomando como transmissor de mensagens vindas da boca-do-povo para campanhas ou pontuações em telenovelas sobre os “males do fumo” (no fim do túnel da realidade).
(Da Cidade do Rio).
Ele acaba de falar e me vê. Diz, enfim, que agora vai interromper o contato, antes informal, com os “amigos de bairro”. Ou seja, com todos os que passam a ser “aqueles que me assistem”, como ele mesmo diz, depois de ser testemunhado diante de Bela para o que Nívea chama de “Arquivamentos do Núcleo”.
No passo de Aranha, vão se dispersando os acompanhantes do registro, do que era antes conversa contagiante com os conhecidos de Engenho sobre a matéria televisiva Repórter Mundo Hoje. Algo que o jejum de coca sofrido pelo mais novo depoente da tv fazia-o provar como realidade inédita. Ele já está implicado em um movimento contrário ao narconegócio da região.
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Mauricio Salles Vasconcelos é autor do ensaios Espiral Terra – Poéticas contemporâneas de língua portuguesa (2013) e Rimbaud da América e outras iluminações (2000), de Stereo(ficções), editado em 2002, do romance Ela não fuma mais maconha (2011) e das narrativas de Moça em blazer xadrez (2013). Publicou os livros de poesia Sonos curtos(1992), Tesouro transparente (1985) e Lembrança arranhada (1980). Dirigiu, entre outros videos, Ocidentes(2001), tendo por base seu livro-poema Ocidentes dum sentimental (1998), uma recriação de “O sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde, e também Giro Noite Cinema – Guy Debord(2011). Carioca, vive em São Paulo. E-mail: vasconcelosmauricio@hotmail.com
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