Por uma Arte que Clama a Beleza
A Náusea e a Revolta: Por uma Arte que Clama a Beleza
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Um romance nunca passa de uma filosofia posta em imagens. (Camus. 1998. p133) esta é a primeira frase de Albert Camus em sua crítica ao livro A Náusea do filósofo e escritor Jean-Paul Sartre, publicada no jornal Alger Républicain em 20 de outubro de 1938. Albert Camus sempre iniciou seus livros e críticas com frases repletas de significações. Com esta passagem torna claro que Camus não somente crítica o romance, mas também a filosofia exposta naquele romance. A crítica literária camusiana é crítica filosófica, e o seu tema é a existência absurda e suas conseqüências.
Pode-se colocar Sartre entre tantos outros filósofos da angústia, tais como Kierkegaard, Chestov, Jasper, Heidegger. Cada um destes autores em algum momento escreveu e também por que não dizer viveu o pensamento absurdo. Neste momento então convém caracterizar algumas facetas desta experiência. Camus admira Kierkeggard da mesma forma que gosta do teatro. No teatro o personagem se multiplica; Kierkeggard fez o mesmo, forjando vários nomes para as suas obras. O autor se multiplica com seus pseudônimos. Camus o descreve bem nesta vontade de multiplicar-se: Don Juan do conhecimento (…) Rejeita os consolos, a moral, os princípios de todo repouso. Não pretende acalmar a dor do espinho que sente cravado no coração. Pelo contrário, ele a desperta e, com a alegria desesperada de um crucificado contente de sê-lo, constrói, peça por peça, lucidez, rejeição, comédia, uma categoria do demoníaco. (Camus. 2005. p39)
A realidade que o ultrapassa. O racionalismo mais universal que acaba no irracionalismo do pensamento humano. A existência que pode se mostrar humilhada. A consciência de si que se transforma em angústia. O homem com relação ao mundo e seu afastamento, este mesmo homem exilado de sentido e sem pátria. A existência é absurda. Estas facetas assinaladas aqui são somente algumas das experiências da negatividade. Umas destas experiências é a própria Náusea que Sartre tanto descreveu em seu romance. Camus vê o absurdo em tantas outras obras e momentos, e se interessa por ele como um ponto de partida. Entretanto se Sartre está fazendo filosofia por imagens é necessário ver quais as conclusões que o autor tira da experiência do absurdo em sua obra. É exatamente desta forma com que Camus faz a sua crítica literária. A pergunta que se espraia na sua crítica e a fundamenta é: Quais as conclusões que Jean-Paul Sartre tirou da experiência da Náusea?
Gerd A. Bornheim em sua Introdução ao filosofar tem alguns pontos dedicados ao romance A Náusea:
Inicialmente, a personagem do romance, Roquentin, vive em um mundo pleno de sentido, mas fundamentalmente dogmático. Retira-se para uma pequena cidade de província, a fim de dedicar-se ao estudo biográfico de um político de estatura menor. Toma esta atitude porque o seu trabalho é todos os seus pressupostos têm sentido: a história humana tem sentido. Em determinada altura, contudo, sem que ele saiba por que, é invadido pela experiência da náusea. A principio, sente-a de maneira fraca e pouca considerável, mas atingindo as suas pesquisas, mas aos poucos, estas experiências, repetindo-se, tomam vulto, chegando a abalar profundamente, totalmente , o mundo dogmático em que até então Roquentin vivera. A náusea termina por invadir sua própria substância, motivando a instauração nele de uma nova visão da realidade. (…) A náusea sempre é sofrida; mas no inicio ela acontece sem ser compreendida, para, em certa altura, tornar-se lúcida, numa espécie de revelação: a náusea como sendo o próprio homem (…) Assim, tudo se transforma em náusea, e eu estou na náusea, ela se identifica com o meu próprio ser. A realidade toda, portanto, perde o seu sentido, e eu mesmo perco dentro deste sem-sentido, restando apenas a amargura do meu próprio vazio, a compreensão de que eu sou contingência radical, um nada de ser. (Bornheim. 1976. p63-64)
Bornheim nos vai mostrando as características desta Náusea em contornos gerais até descobrir que o personagem é a própria náusea. O personagem também se esquiva desta experiência. Um dos momentos interessantes desta tentativa de esquiva, no qual o personagem ainda não tinha descoberto a extensão da náusea em si mesmo, era quando ele escutava Jazz. A música citada no romance é Some of these days escrita pelo compositor Shelton Brooks e gravada por diversos artistas. Quando o personagem escuta tal canção parece que a náusea não está nele. O mar deixa de ser deserto. O vazio é preenchido. A náusea se dissipa. Entretanto, a beleza da música é somente uma tola fuga, pois, ele é a própria náusea. O personagem não pode fundar o seu projeto existencial naquela música, a música também acaba em um determinado momento, e ele novamente encontra com o seu corpo, com a sua vida nua desejante de significação. A psicóloga Daniela Schneider tem um fragmento interessante com relação a esta música no seu livro Sartre e a Psicologia Clínica: Somente conseguia sair da náusea quando escutava uma música específica. Era a música que sempre pedia para tocarem quando ia ao café “Rendez-vouz des Cheminots”, a canção de jazz Some of these days. Absorvia-se na música, ela o fazia viajar a outro tempo, lembrar de suas aventuras. Quando se dava conta, o enjôo havia passado. Pouco a Pouco, no entanto, começa a retornar o seu passado, a lembrar-se de que o sentido de sua existência fora sempre o de “viver aventuras”. Atravessara os mares, deixara cidades, subira rios, adentrara-se em florestas, tivera várias mulheres, várias brigas, e tudo isso o havia levado aonde? O que lhe acrescentaram essas aventuras? O tédio e a náusea o rondam. (Schneider. 2011. p238)
Esta é a grande experiência que Roquentin descobre em sua própria carne: a náusea que se prolonga. O ser despido de sentido. A crítica de Camus ao livro de Sartre é exatamente pelo autor da náusea se fixar somente nesta experiência e não ousar ir além dela: constatar o absurdo da vida não pode ser um fim, mas apenas um começo. Esta é uma verdade da qual partiram todos os grandes espíritos. (Camus. 1998. p136.) O sentimento do absurdo é banal, um dos mais comuns. O mérito de Sartre estaria em levá-lo ao fundo, pois, a música, o riso de uma mulher bastaria para desviar daquele sentimento. Sartre dá vigor à sutileza. Entretanto para Camus, o herói sartreano não entendeu o verdadeiro sentido da angústia, pois ele insiste no que é repugnante ao homem, ao invés de fundar em suas grandezas e ainda aparece uma esperança que o homem absurdo sabe que é inútil. Toda a obra de arte esta assinalada com a força do esquecimento. A criação é absurda, pois não tem sentido algum criar, mas mesmo assim, é criada. Sartre no momento em que não vai mais além do que o sentimento de náusea, no ponto em que seu herói se apega ao que é repugnante no ser humano, tem uma experiência passiva da negatividade – Camus diante da mesma experiência propõe a atitude do homem revoltado e a sua extensão literária é um romance que não se escapa para qualquer forma de ilusão, mas sim se funda e transborda em verdades de carne.
A arte se encontra na contradição de negar o real e viver o real, assim, como a revolta que nega a realidade em prol de outra realidade. Ao mesmo tempo em que se recusa o real, é necessário exaltar algum de seus aspectos, algum ponto de beleza que faça com que este mundo possa ser amado: A arte contesta o real, mas não se esquiva dele. Nietzsche podia recusar qualquer transcendência, moral ou divina, dizendo que essa transcendência constituía uma calunia ao mundo e a vida. Mas talvez haja uma transcendência viva, prometida pela beleza, que pode fazer com que esse mundo moral e limitado seja amado e preferido a qualquer outro. (Camus. 1999. p296).
O grande romance é a criação de um destino. O artista toma o local de Deus e faz uma correção no mundo: cria unidade e coerência. O sentimento de inveja é cerca desta criação de unidade, pois, quando se olha a vida do outro, pode-se ver em uma coesão, que na verdade não existe. A inveja romanceia a vida do outro, dá unidade ao que é fragmentário. O amor às vezes faz o mesmo. Vive a procura de uma unidade. O relacionamento se prolonga na tentativa da criação de um destino em conjunto. Mesmo que o relacionamento seja desastroso, procura-se prolongá-lo na tentativa de achar a palavra que tudo vá reconciliar, trata-se de re-atar a vida. Os filmes hollywoodianos vivem deste último discurso, desta última ação, em que então se refaz o nó da relação, e produz a catarse da fabricação de um propósito. O sofrimento compassado também pode fazer mais sentido do que dizer “Não”, mesmo que uma possível felicidade esteja exatamente nesta negação, mas tentasse de forma titânica a criação do sentido. O romance mostra o mesmo, tem-se a unidade, uma vontade metafísica.
Adoto como exemplo destas tentativas não um romance, mas dois tipos de experiência cinematográfica (que também criam uma unidade), as séries norte-americanas e o filme Morangos Silvestres do cineasta sueco Ingmar Bergman, para exemplificar este tema e pontuar a criação absurda e sua relação com a beleza. Desta forma saímos do âmbito literário, filosófico, e fazemos uma torção no pensamento do Albert Camus, para compreendermos outras esferas da arte. O mesmo poderia ser feito na música, e talvez fosse útil esta visão para uma crítica a arte contemporânea.
A maioria das séries norte americanas apresentam o tempo da ação, do medo, da burocracia e da técnica. O ser humano é o coagido e o que constrange. Deve agir de forma rápida e o indivíduo é analisado pela técnica, seja de interrogatório ou pelo legista que interroga o cadáver com o método e tira a resposta do corpo. É a narração do personagem reduzido à circunstância que vão levar a algum desfecho determinado por outro. A criação de sentido se dá por meio de formas de poder: coação, burocracia, técnica. O fundamento e a criação de sentido se dão geralmente ambientes como o policial (Criminal Minds), o hospitalar (Grey’s Anatomy), o tribunal (Law and Order), a sala do legista, a cena do crime (CSI). Os sentimentos mostrados por meio dos personagens carecem da sutileza[1], indo do medo para o amor, do ódio para alegria em exagero, mas perdem as nuances os detalhes.
[Isak Borg em Morangos Silvestres]
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Cena do filme Morangos Silvestres que faz referência ao filme Sétimo Selo em que o personagem principal joga xadrez com a morte. Isak Borg personagem de Morangos Silvestres titubeia diante do xadrez, e depois sai do quarto.
O tempo do filme Morangos Silvestres está na subjetividade, na reflexão e no reencontro da beleza real ou onírica. A memória. O passado que salta ao presente. Um relógio sem ponteiro é o que marca o tempo em Morangos Silvestres. No início do filme existe um diálogo com outro filme de Bergman, O sétimo Selo. Neste filme um cavalheiro joga xadrez com a morte, uma imagem medieval que se torna ícone no filme de Bergman, ao tentar-se enganar a morte. O personagem principal de Morangos Silvestres Isak Borg, após escrever e falar um pouco de si olha para um tabuleiro de xadrez com estranhamento, e recusa a jogá-lo. Recusa o confronto com a morte. Em seguida inicia o road movie existencial de Isak Borg. Uma viagem para receber uma condecoração, aos seus anos de exercício da medicina. Um dia na vida de Isak Borg, em que os sonhos, a memória e o presente se entrelaçam de forma angustiante. Um jovem que ele vê e se lembra da sua própria vitalidade. A face de um antigo amor, que é recordado vendo outra mulher, uma jovem que está indo para a Itália com uns amigos. Aquela face se torna um presente e uma porta para a lembrança. Como ver a velha casa na qual vivera, ora diferente, mas com imagens que brotam em recordações. Os sonhos que parecem querer dizer algo e o dizem. Aquele dia de Isak Borg é uma realidade objetiva subjetivada e é exatamente o ser da reflexão, ver-se diante do espelho e da memória que vai possibilitando outra forma de subjetividade para o personagem. A possibilidade de sair do seu egoísmo e de reconstruir o passado-presente, unificar a vida para que ao dormir se possa dar um riso ao fechar dos olhos – O que tornou possível o riso em Isak Borg foi exatamente um reencontro com o passado; a volta à infância é onde Isak se funda. Re-significa-se para a nostalgia e a beleza.
Nas séries norte-americanas há uma nómos exterior ao individuo e no filme de Bergman uma subjetividade em construção. De fato os dois pontos podem se fundar no absurdo. No local do deus morto, a construção de uma burocracia de sentidos e estruturas de poderes. Em Bergman o fundamento de si, por meio de um passado que se torna presente e principalmente por meio da beleza nostálgica da infância. É na última cena em que Isak Borg confessa aonde encontra a beleza. A arte de Ingmar Bergman não é uma arte sem deus, mas mesmo com um deus o absurdo não se dissipa. Pode-se ter a crença e ainda sim viver em plena angústia, nascer natimorto. Isak Borg é a tentativa de se livrar de um frio gélido que se espraia, e que está nele mesmo. A beleza foi o fundamento, livrar-se da gelidez do próprio eu seria a tentativa na construção de sua personalidade. A experiência do absurdo não se torna passiva. A reconstrução de si mesmo se dá a cada sonho que quer mostrar algo, e a cada lembrança que é revista.
Na crítica literária e filosófica de Camus existe a questão de criar a partir do que é belo, e tal clamor não é somente um pedido para uma literatura maior, mas também uma estética da revolta. Jean-Paul Sartre mostra o homem em seu romance A Náusea no que é repugnante. Na experiência da cinematografia algo que Camus não analisou, podem-se ver estes dois pontos claros (criar a partir da beleza ou do que é abjeto ao homem), em que a forma da série-americana e o conteúdo de algumas mostram o ser sempre coagido, assim não somente degrada a arte como também a experiência. O segundo ponto, com relação a Ingmar Bergman se tem um mundo burguês, mas também uma tentativa de reconciliar consigo mesmo. Tal atitude é comum a todos. Mediante ao mundo burguês de Isak Borg, aos conflitos amorosos, a infância que se mostra como um local aonde ele pode lembrar com alegria. Esta é a nostalgia e também a harmonia de Morangos Silvestres. A beleza da lembrança tampouco é um escapar da realidade, pois, a cada momento a postura de Isak Borg vai mudando com relação aos que estão a sua volta. Isak Borg quer um mundo mais belo, a tradução do nome do personagem é fortaleza de Gelo, poder-se-ia dizer que ele quer destruir a si mesmo, derrotar-se, quebrar este gelo, mas ele não é somente o frio, o calor é a sua infância. A infância que Isak retorna e é esta infância, a recordação os sonhos, que o faz mudar. Isak faz a revolta contra si mesmo para então se reconhecer mais belo – mesmo que fundamentalmente não haja tal mudança é apresentado um lampejo de compreensão de si mesmo, e da possibilidade de um encontro com o outro.
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[1] A ausência de sutileza não se encontra somente na apresentação de sentimentos sem nuances, mas na própria técnica da produção cinematográfica, Chauí em seu livro Simulacro e poder – Uma análise da Mídia salienta que existe uma preferência ao close-up e tudo que é visto de perto, pois, o que está no fundo não se apresenta com nitidez. O background deve ser limpo, deve carecer de complexidade, para que a imagem apareça mais “limpa”. Desta forma se tem uma dupla falta de sutileza. Primeira devido à criação, a arte. A segunda forma é com relação à própria técnica.
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Referências:
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Bergman, I. Linterna Magica. Espanha: Fabula Tusquets, 1995.
Bergman, I. Cenas de um Casamento. São Paulo: Linoart.
Bergman, I. Morangos Silvestres. Suécia: Svensk Filmindustrit, 1957.
Bergman, I. O Sétimo Selo. Suécia: Svensk Filmindustrit, 1956.
Bornheim, Gerd. Introdução ao filosofar. O pensamento filosófico em bases existenciais. Editora Globo, 1976.
Camus, Albert. A Inteligência e o Cadafalso. São Paulo: Record,1998.
Camus, Albert. L’Homme Révolté. Gallimard.
Camus, Albert. O Homem Revoltado. São Paulo: Record, 1999.
Camus, Albert. O Mito de Sísifo. São Paulo: Record, 2005.
Chauí, Marilena. Simulacro e Poder Uma análise da Mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010.
Sartre, J.P. A Náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
Schneider, Daniela Ribeiro. Sartre e a Psicologia Clínica. Florianópolis: UFSC, 2011.
Sófocles. Édipo Rei, Antígona. São Paulo: Martin Claret, 2002.
Tucker, Sophie. Some of These Days. YouTube, 25 de Fevereiro de 1999. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=3heCSPJrO70.
Rafael Leopoldo A S Ferreira é pós-graduando pela FLACSO, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. E-mail: ralasfer@gmail.com
24 agosto, 2012 as 2:32