Os Desafios do Anagrama


 

 

 

 

 

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(“… há pares de olhares geminados apontando,

lúcidos, os desafios do anagrama.”)

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Em suas várias facetas, poeta, ensaísta, musicista, contista, …., a multiartista Beatriz H. R. Amaral tece palavras, fisga linha e fio, urde tramas e personagens, vislumbra sentidos (ou a ausência deles), expõe neste livro as brechas e os desvãos do cotidiano. É, afinal, Tecido, um de seus mais representativos poemas:

“asa de poema

anzol

para fisgar

na mesa

uma linha

 

um fio grafado de corda

cortes-recortes

a tessitura do nó

 

(…)

(Luas de Júpiter, Anome Livros, 2007), poema-síntese de sua trajetória poética, aqui resgatado neste livro de contos.

A ideia de “volta”, o “ritornelo”, conceito musical que se reitera nos poemas, em Os fios do anagrama, configura-se na criação de situações, ambientes, personagens, que se desdobram e reduplicam, ora num viés social (“Malabares”), ora lírico (“Valladolid”, “De costas para o tempo”, “Portal de Anáforas”), ora mais cotidiano, buscando o insólito, o desconforto de estar no mundo (“In Limine”, “Ricercari”).

A necessidade da bússola (para o leitor? o narrador? O personagem?) a tentativa fracassada de ordenação, estabilidade que é, afinal, a busca de todos os homens, encontra um motivo em si mesmo: a procura do sentido existencial (“avidez do senso analítico, em passeio pelas curvas do implícito”, em “Móbile”), o resgate da memória (“Quem brinca nos domínios de Mnemosine”, de “In Limine”).

A consciência metalinguística permeando todo o livro e aflorando de modo mais intenso em alguns trechos (“Agora o texto – substituto do olhar míope e cansado – desliza pela página, na subjetividade ineclinável de quem narra”, em “Móbile”), é, em todas as instâncias, o gesto da escritora, também poeta, consciente de seu ofício de tecer os fios da palavra e viver/narrar esse trabalho, na busca obsessiva do verbo-grafema mais sonoro e surpreendente:

“Tento extrair compassos entre âncoras e dinas engastadas nos poros da pauta. Raízes e valises repletas de senhas e ostras. Há um risco incalculável que desprezo. Círculos insinuam cisnes de seda.” (“Pas de Deux”)

Os contos deste  Os fios do anagrama são pulsações rítmico-fônicas, prenhes de efeitos líricos e imagens plásticas. Se o poema explora e potencializa o branco no papel, o silêncio e a palavra, a prosa enreda o leitor no desenho labiríntico da frase;

Neste portal de anáforas, você reconstrói os castelinhos, você sabe, você ensaia, deseja, recomeça, erige, pavimenta, você arquiteta uma frase, é bom semear na areia – numa pausa de milésimos, as ondas, mapas, marés, tudo ondulado azulando as intenções abreviadas, você – aeroplanagem de instintos, olho no olho, palavras de novo à deriva, que barco navega, que rota diz porto?” (“Portal de Anáforas”)

É de se notar que, a par desse intenso exercício com a palavra, o domínio dos elementos narrativos propriamente ditos, bem como o diálogo (sempre enxuto), num conto como “Polifonia”, que expõe – de modo trágico-cômico-irônico – a Torre de Babel de uma linha cruzada telefônica. O humor que se entrevê em “Suíte”.

Direito, Música, Artes Plásticas, Dança, Astrologia, Alquimia – outros campos se entrecruzam nos contos deste livro. O narrador, a certa altura, formula um enigma:

E na transmutação de formas circulares, a dança da linguagem saberá extrair o seu lugar? E saberá escolher o porto, o aceno, a figura cromática do sono?”

Cabe ao leitor, agora, o “viajante” de Ítalo Calvino (citado na epígrafe), empreender esse percurso, seguir o desafio de perder-se e achar-se nas tramas e teias, mergulhando na extraordinária experiência de adentrar o universo de Os fios do Anagrama.

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Maria Cecília de Salles Freire César, mestre em Comunicação e Semiótica – PUC-SP e doutora em estudos comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – USP.

 

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Confira um dos contos do livro:

 

In Limine

 

Há uma vaga ideia de água em quase tudo que amanhece. Se escapa, você tenta, nas gotas de vidro, fazer água. Espera na antessala, redesenhando as abas de um chapéu, aguardando o impacto das mãos primitivas que, a qualquer momento, poderão esmurrar o aquário.

Rasa a ideia do lago, maior o tempo que baila nas bordas do terceiro atalho. Rala a sua espessura. Inconsciente, seu mergulho é só uma hipótese a mais entre as frestas do cotidiano pálido. Neste vão quase irreversível do dia, você hesita, cambaleando.

Oscila, titubeia, mas se atira. Seus cavalos têm sede.

Você para.

As estações de trem não se tocam. Uns saltam da janela, outros atiram rosas e reconhecem os vagões. Mas não escolhem o tempo nem a porta de imersão. Tudo ainda é escasso. Até o sentido da vertigem. Uns constroem barcos, outros tecem redes ou pintam cactos, com o crayon subtraído da memória. Você, é claro, prefere as tulipas. Entre a intermitência de um rascunho e o provável desejo de adesão às águas, você salta. Alguém rebobina as cenas. Pula. Rebobina. Seu salto é metaforicamente calculado. Olha impotente para o espelho, pede um vento.

Sentado à mesa, aguardando a refeição, ergue o copo. Um movimento hesitante faz transbordar o suco. Manchas amarelas agora se alastram pela toalha. Constrangido, você quer minimizar o estrago. Usa guardanapos, aqui, assim, ali, só mais um pouco. Eles chegarão logo, é melhor que nem percebam.

Você fora o primeiro a entrar. Consultara o relógio, percebendo que todos estavam consideravelmente atrasados. A rua é esta; o restaurante parece o de sempre. Claro, os outros já deveriam estar ali, neste horário, pensa, quando uma voz o interrompe.

– Almoçamos, Pedro. Ao menos, você me fará companhia – diz o rapaz moreno, que se aproxima, de óculos, muito à vontade, sem ostentar, porém, qualquer traço que lhe seja familiar.

– Só eu?

– Isso. Nesta época, é assim mesmo. Cada um com um imprevisto, os compromissos lotando as agendas. Você examina seu interlocutor, perscruta-o com sua lâmina mais sutil, mas nem assim o reconhece.

– Sabe, Pedro, fiz três audiências ontem. Em nenhuma saiu sentença. Numa delas, parecia que ia dar acordo, mas, na última hora, a parte contrária mudou de ideia. Eles pediram memorial. Mas, hoje, não; estou tranquilo. Depois do almoço, vou passar rapidamente pelo escritório e vou buscar minha filha na escola. Hoje é o dia de ela dormir lá em casa.

Você e o desconhecido se servem de salada. Brócolis, aspargos, cogumelos. Sincronicamente, adicionam azeite, pouco sal. Nenhum dos dois parece ter muito apetite. Ótimo este molho, alecrim, manjerona. Tudo o que não vale se tempera.

– O Ricardo também viria, mas precisou acompanhar o sogro.

– Ricardo?

– É, o Ricardo. Hoje é quinta, é dia de ele vir… Mas foi com o sogro para Itaipava. Querem fazer negócio com uns terrenos que o Doutor Gaspar tem lá.

Ora, mas quem é este que lhe fala sobre pessoas e fatos que também ignora? E você, que sujeito será, para ele? Quem se confunde neste labirinto? Quem brinca nos domínios de Mnemosine? Se há um engano, um flagrante engano, não deverá ser esclarecido? Se você disser “Meu amigo, olhe, nós estamos aqui almoçando juntos, mas não sou este que você pensa. Não sou Pedro”. E se ele perguntar: “Então, quem é você?”. Diante desta pergunta, certamente, você não terá resposta. Então, você espera que novos dados possibilitem a descoberta da charada insólita em que involuntariamente se inseriu. O estranho prossegue, sem supor seu desconforto:

– Esta construção do novo shopping center deu um trabalho danado para muitos amigos nossos. As obras foram embargadas. É. Três vezes. Agora, está tudo caminhando normalmente. Revogaram a liminar que estava em vigor. Agora, na semana passada. Torci muito, Pedro, como torci. Um dos sócios do empreendimento é meu cliente. Você o conhece, Pedro, é o Rodrigues de Lima, aquele cujo filho estuda teatro e a filha tem uma banda de rock? Ele mesmo. Mora ali na Gávea, quase vizinho do Medeiros. Boa pessoa e bom cliente.

– Medeiros. Ah, o Medeiros – você finge lembrar.

– Nosso colega e amigo. Orador da nossa turma.

– Ah…

– Bem, vamos ao linguado. Parece excelente, como sempre.

E o almoço assim transcorre, com pistas e dados que não lhe servem ao esclarecimento do mistério. Você responde às perguntas com monossílabos que aparentemente guardam conexão com o assunto. O desconhecido tem mais novidades.

– E aquele caso do Adauto? A intimação veio em nome da ex-mulher. Ele reagiu; telefonou para o escritório antes das nove horas. Uma fera. Sabe como é?

Você arrisca um adjetivo qualquer que se encaixe no contexto.

– Terrível.

– Nem fale. Ah, sabe, Pedro, gosto daqui, Há quanto tempo nós frequentamos o Regghi?

– Já nem lembro.

– Uns oito anos, provavelmente.

– Oito?

– Acho que sim. Porque me lembro que eu ainda não tinha me separado e a Isabella estava no pré, maternal, infantil I, infantil II, alguma coisa assim. Muitas vezes, a Mônica ligava e me pedia para ir buscá-la, porque ela não podia deixar o consultório e eu ia correndo… Aliás, amigo, a sua afilhada, às vezes, pergunta de você… por que não tem aparecido.

– Vou aparecer; pode dizer a ela.

Depois da sobremesa, você saca o cartão de crédito, já se preparando para os ritos finais da inusitada refeição… Com alívio, pensa: é agora. Poderá ver o nome impresso no cartão magnético. Checa o nome, mas não dá para ler. Parece um idioma desconhecido. Ou miopia e presbiopia que se sobrepõem.

– Deixe, Pedro, este é por minha conta. Eu é que convidei.

– De modo algum – você insiste. Faço questão. O último você acertou; este é meu.

– Foi?

– Então não lembra?

– Tá bom, mas o próximo…

É sua chance. Pretende desfazer o engano tão logo o garçom retorne com a nota. Mas, quando você assina, não consegue ler o valor, o nome, nem consegue entender o que assina. Tudo permanece ilegível. Então, e agora? Quem é este estranho? E quem é este Pedro que eu sou? O desconhecido se despede, cortês.

– Até a próxima, amigo, Acho que nos veremos na quarta, lá no Tribunal?

– Na quarta, é?

– Na sessão plenária. Aquela sustentação oral…

Ele se afasta, convicto, lhe deixando novas interrogações. Você caminha, lentamente, desabotoa o paletó, afrouxa a gravata. Há uma praça à frente. São Paulo, Rio, algum centro de cidade grande, conversa forense, nada de concreto isso lhe diz. Um banco e você resolve sentar-se. Investiga o próprio bolso da camisa com as mãos. Uma carteira sem nome; dinheiro, nenhum cartão de visitas, mas uma fotografia. Quem será esta moça, sorrindo? Você a retira e olha o verso. Dedicatória. Para o Pedro, um beijo, Marília. Marília? Mais uma pista inútil. Seria uma esposa? Namorada? Ou o quê? Ah, agora, sim, um endereço escrito à mão em um guardanapo. De alguém importante. Ilegível, mas você pergunta a dois ou três pedestres que encontra. Eles vão norteando o caminho, por ali, por aqui, duas à esquerda, atravesse em frente à agência do Itaú e é a próxima. E você chega. Espanta-se mais uma vez. É uma loja. Uma loja em que você teria estado?

– Boa tarde. Sou Pedro.

Uma voz ecoa, grave:

– Deixe, Stella, que eu mesmo atendo o Doutor Pedro Paulo.

Como vai, Doutor? Sua encomenda está aqui – diz o senhor, gentilmente, sorrindo e lhe entregando o embrulho. Você toma o pacote e também sorri, na iminência de desvendar o enigma do dia.

– Quanto lhe devo?

– Nada; o senhor pagou adiantado, quando fez a encomenda, na terça-feira. Você caminha com o embrulho nas mãos. Para colher o que plantou, soprar as letras da tarde. Caminha. Agora, resoluto. Rápido, mais rápido, pela passarela, pelo túnel. Você transpõe as avenidas. Alameda após alameda, essas cinco travessas, mais três ruelas, você continua, por ali, segue pelos becos invisíveis, sem placas.

No balcão do aeroporto, lhe dão um cartão de embarque e dizem boa viagem. O nome. Pedro. O sobrenome não está legível. Mas você embarca. E sobrevoa, a muitos mil pés de altitude.

O embrulho é uma parcela de futuro. Você desembarca e pergunta. Aqui é o Galeão? Cumbica? Santos Dummont? Congonhas? Uma moça de óculos escuros lhe sorri: o senhor tem bom humor, hein? Piada de aeroporto! A bagagem. Não há bagagem. Enquanto os outros aguardam junto à esteira rolante, você continua a caminhar. Pelas ruas que circundam o aeroporto. Atravessa novas avenidas, alamedas, contorna esquinas, e um ímã o conduz a esta nova paisagem lacustre. Como uma espécie de porto. Ninho, porto, travessia. Novamente o lago. Tudo é vespertino, agora. Matizes de verde-azul. Você rememora as escamas das carpas. O alaranjado, a cor de fogo. Olha para os lados. Ninguém por perto. O embrulho será aberto. Primeiro, o papel. Aparece a caixa, você retira o durex das bordas. Crshshshsh! Tombam ao chão mais de cinquenta pequenas bússolas douradas. Você sorri. Toma uma delas nas mãos. Acaricia a superfície reluzente. As placas se fixam à esquerda do lago: Vendem-se bússolas. Você descobre o norte. Há uma ideia de água onde você está.

 

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Convite do lançamento duplo de Beatriz H. R. Amaral:

 




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