De quando o livro não é a salvação


 

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Considerações fenomenológicas aos best-sellers ou
De
quando o livro não é a salvação

 

 

Ao amigo Aderaldo Luciano,

admirador convicto de Tom Clancy

 

Não faz muito tempo, estava reunido com alguns colegas num bar da Álvaro Alvim, centro do Rio, após o lançamento do livro de um amigo comum, que não somou mais de 30 pessoas. O curioso desse número não era tanto a óbvia escassez de leitores interessados em autores novos e sem renome, senão o seu caráter de pura cumplicidade. Dos presentes, a maioria, não por acaso, era de escritores – que garantiam ali uma visita recíproca quando fossem o autor da vez –, e a restante minoria contava alguns poucos parentes, que já na primeira hora da noite se retiravam, demonstrando estarem apenas cumprindo um suposto papel de família: o de apoiar, mesmo a contragosto, os projetos mais desacreditados de seus consanguíneos. Depois deste quadro em crise, o clima humano em nossa mesa foi o mais nublado possível para uma comemoração; pelo menos até o momento em que um dos colegas, após um gole lento de cerveja, nos lançou seu gracejo inesperado: “estou escrevendo um best-seller!”. Todos rimos agradecidos pelo lampejo de alegria, mesmo nos sendo evidente que, além do anacronismo, a frase nos propunha uma lamentável incoerência.

Se, por um lado, a ideia de um livro se arvorar em best-seller (o mais vendido) – mesmo antes de estar nas livrarias – causa entre escritores e intelectuais algum ridículo; para a máquina maciça do mercado editorial, essa mesma ideia inconsistente fundamenta o princípio vital de sua atividade, isto é: um livro só deve ser editado e distribuído se direcionado vantajosamente a um público leitor relevante. Nessa outra modulação de “público”, é preciso entender sobretudo o que passa a significar um “leitor relevante”. Certamente tal instância nada tem a ver com uma alta formação cultural de um indivíduo ou com uma exigência de leitura sofisticada. Na verdade, essa “relevância” do público leitor é muito mais simples do que isso, ela não se compromete com qualquer experiência de interlocução que possa torná-lo mais crítico, ou que favoreça sua autonomia intelectual e a consequente afirmação de uma sua diferença. Ora, ensejar diferença e autonomia seria permitir a transformação espontânea e aleatória desse mesmo público, o que redundaria no descontrole e inevitável morte de um mercado que precisa padronizar para prever suas vendas. Não é novidade que, nesta lógica de mercado, o público já deve estar pronto para receber o livro antes mesmo que ele seja lançado, ou pelo menos antes que algum crítico o tenha resenhado. Portanto, essa “relevância” editorial conta com o mínimo de experiências modificadoras deste público, se baseia na manutenção de padrões de consumidores e na eliminação de suas possíveis diferenças, em favor da formação de uma instância coletiva e uniformizada. O resultado dessa operação sistêmica é catastrófico: a privação das possibilidades do diálogo radical (porque autêntico) travado entre livro e leitor – relação que é a própria inauguração e sentido da leitura.

Nessa proposta editorial, a leitura “relevante”, que antes nos solicitava um longo período de dedicação e de constante mudança na nossa mundividência, é entendida – dentro da sôfrega dinâmica dos campeões de venda –  como um procedimento simplório de decodificação de palavras e de compreensão imediata. Ela se esgota na mera satisfação e na cômoda concordância com as expetativas prévias de quem lê. Leem-se 500 páginas em um dia, sem se correr o risco de se ter que refletir sobre ao menos uma delas novamente, salvo se essa for uma ponte técnica que se esqueceu na gordura do enredo – o que não seria propriamente “refletir” sobre algo. O resultado dessa atitude de leitura, recente no Brasil, é visível em qualquer lugar, mesmo nas mesas tantálicas de escritores. O “leitor relevante” criado nesta dinâmica mercadológica, e alimentado pelas grandes editoras, é a figura já majoritária do consumidor frequente de um livro sem leitura. Nessa abstração absurda, o livro mesmo é a única coisa irrelevante (uso agora a palavra sem orçá-la na semântica do mercado). Sem a experiência real de uma leitura, o livro não é mais do que um produto alienante como outro qualquer em uma prateleira especializada; e o seu leitor, também não mais que uma ardilosa “ficção” – tanto este quanto o livro chegam mesmo a não existir enquanto experiências efetivas. Prova dessa ausência de sentido existencial, ou de autonomia de sentido, se vê no modo como tais livros nos chegam. Antes mesmo de qualquer crítico os resenhar (sem querer dar mérito a resenhas), são anunciados e sucedem um a outro como se fossem quase uma mesma obra: o sucesso de um livro anterior contamina o outro que acaba de chegar, ou mesmo o próximo que sequer foi terminado. Um exemplo atual é o recente estouro de George R.R. Martin (Crônicas de Gelo e Fogo) anunciado no Brasil com a seguinte fórmula: “O melhor clássico do gênero desde O Senhor dos Anéis”. Além de afiançar o livro como  “melhor” e como “clássico” antes mesmo de ter sido terminado, o anúncio pretende obliterar todas as demais publicações, tratando-as como concorrência. Essa concorrência de fato existe nessa lógica, ela é a coesão de um público único que não deve ser dividido. O novo best-seller de G. Martin conta com os leitores de Tolkien para esvaziar as prateleiras das megastores. A estratégia aqui, longe de primar pela demarcação de uma diferença própria de um livro em relação aos demais, é a de igualá-lo a todos, para depois sobrepujá-los. Até mesmo a palavra “gênero”, que aparece despretensiosa no anúncio, revela uma setorização e uma territorialização. Não imagino possível o mesmo ser feito com autores de narrativa magistral e de intensa potência de pensamento como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos; ou Adonias Filho e Jorge Amado. Seria aniquilar as suas diferenças e autenticidades, além de que nem um leitor razoável concordaria. Dizer que “Guimarães é o melhor clássico do gênero desde Graciliano” seria demasiado contundente, seria  não ter passado pela experiência de leitura de nem um dos dois. Toda essa propaganda só é possível quando um romance já nasceu no berço que os faz best-sellers. As suas vendas astronômicas nada têm de espontâneas ou acidentais. Daí aquela frase de meu amigo ser risível, embora possível e até comumente praticada. Um escritor produzir um best-seller premeditadamente é abrir mão de sua obra e de leitores reais, para servir a gigantes editoriais e alavancar consumidores de livros.

Não é minha intenção produzir argumentos contra best-seller, essa atitude seria não só inútil, mas também um ato intolerante e gratuito contra os leitores que optam apenas por fruição, num dado momento de suas vidas, fazendo da leitura um entretenimento passageiro. A questão aqui não é ingênua. Não se trata de censurar a produção de uma linha editorial com livros comerciais para os leitores, mas sobretudo rechaçar a formação de leitores para os livros comerciais. Atualmente esta é quase exclusiva. Obviamente, o mercado livresco, ainda que dominado por gigantes de linhas editoriais preeminentemente comerciais, não teria o poder de moldar um tipo conveniente de leitor brasileiro, caso esse estivesse previamente guarnecido de certo senso crítico. Essa formação crítica, porém, está hoje explicitamente ameaçada por alguns governos que, ao fazerem compras infundadas com certas editoras (não falo de editais abertos, mas de projetos prontos saídos de dentro de secretarias e fundações municipais de educação), estabeleceram planos de alfabetização e formação de leitores dentro de uma lógica absurda e aviltadora. Recentemente fui testemunha de uma implementação bibliográfica dentro de um município por meio de um projeto de formação de leitores. Com o pretexto estouvado de que os títulos novos atendiam aos interesses dos adolescentes atuais, o tempo de leitura dessas crianças foi ocupado com títulos de J.K Rowling e Stephenie Meyer, solapando não só uma certa literatura brasileira contemporânea, mas qualquer outra estrangeira de qualidade. Nesse câmbio, não se cogitou sequer escolher livros de escol em língua inglesa, claramente não se tratava de interesse na produção literária de outros países. Pergunto-me: quais foram então os critérios de escolha desses títulos? Dar a crianças a responsabilidade sumária de decidir, mesmo sem nada conhecerem de livros, pelo que é mais fundamental em sua formação de leitores seria sobretudo um ato vilipendiante –  tira as condições de desenvolvimento e consequente inclusão social de uma pessoa de escola pública no único espaço formal que ela possui para tanto – e de puro mau-caratismo. E não se pode acreditar em maus-carateres que queiram agir puramente, somente realizar o mau-caratismo, sem levar consigo alguma vantagem. Essas escolhas, no melhor dos casos, demonstram menos a preocupação real e ética com a formação de bons leitores (ninguém afinal precisa de cultura literária formal e escolar para ler “Crepúsculo”) do que a busca cada vez mais obsessiva e pragmática de que as pessoas comecem a “ler”, de que sempre estejam “lendo”, “lendo”, não importando neste ato o que elas leem. Percebemos facilmente que, até mesmo no contexto da educação, vigora de modo amplo o sentido de “leitura” próprio ao mercado editorial. O poder executivo brasileiro se preocupa hoje em investir massivamente na erradicação do analfabetismo de sua população, mas tais investimentos correm o risco de tirar o indivíduo de uma situação de carestia cultural para um outro nível de precariedade: o avassalamento cultural e a sua massificação.

 

 

 

 

 

 

 

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Ronaldo Ferrito é ensaísta, poeta e editor da Confraria do Vento. Doutorando em Poética, pela UFRJ, publicou o livro A Via Excêntrica (2010), premiado com a bolsa para escritores da FBN, na categoria ensaios literários. E-mail: roferrito@gmail.com


 




Comentários (9 comentários)

  1. CHICO LOPES, Excelente. Esclarecedor de fato. Porque, com a habitual demagogia e a rasa cultura dos políticos e das políticas públicas em relação ao livro, prega-se que ler, não importa o quê, é um indício de vitória sobre o analfabetismo e o atraso. Quando ler é apenas uma pré-condição para o mergulho progressivo no refinamento, que é de imediato obstruído pela exigência de massificação, pelos best-sellers impostos. Identicamente, feiras de livros e outros não fazem senão reiterar o princípio, que é de um fetichismo primário, do livro como conquista cultural. Quando, na verdade, a maior parte do que se vê nessas feiras não é senão o produto aviltante das estratégias editoriais mais descaradas. Ler apenas não basta. É preciso fazer da leitura algo muito mais exigente e profundo. Mas disso os políticos e as políticas públicas do livro nunca falarão. Eles querem números, números de que se possam orgulhar, e é esta a única lógica que os move, idêntica à dos “fabricantes de linguiça” que a maior parte dessas editoras são.
    30 abril, 2012 as 9:53
  2. Mariel Reis, “Não é minha intenção produzir argumentos contra best-seller, essa atitude seria não só inútil, mas também um ato intolerante e gratuito contra os leitores que optam apenas por fruição, num dado momento de suas vidas, fazendo da leitura um entretenimento passageiro. A questão aqui não é ingênua. Não se trata de censurar a produção de uma linha editorial com livros comerciais para os leitores, mas sobretudo rechaçar a formação de leitores para os livros comerciais. Atualmente esta é quase exclusiva.” Lucidez. É disto precisamente que necessitamos em nossa crítica. O texto, à la mode Marcio-André, está foda mesmo.
    30 abril, 2012 as 15:11
  3. Ronaldo Ferrito, Mariel Reis, é verdade, o Marcito nos Ensaios Radioativos se dedicou a falar de coisas não tão sérias com críticas bem sérias… mas confesso que aqui a mágoa com a matéria em questão é bem pessoal, além de considerar não só a crítica, como também o objeto, bem graves… Agora, se você se refere ao modo “genial” (risos), saiba que ele a herdou de mim e não o contrário…rsrsrs… lembre-se daquela resenha genial que fiz sobre seu livro, “cachorro”… Abraço, camarada!
    30 abril, 2012 as 18:08
  4. Aderaldo Luciano, Ô, Ferrito, ser lembrado por você é sempre bom. Advertir os seus leitores de que sou um admirador convicto de Tom Clancy, melhor ainda. Também gosto de Stephen King e, mais recentemente, redescobri Cronin, persigo sua releitura. Acredito que ler também é entretenimento. Como toda criança gosto de bons contadores de história e, se uma página me aborrece, não sofro em abandoná-la. Toda minha formação foi baseada em Júlio Verne, Balzac e Poe (best-sellers), mas também li muito Tex, Disney e Hal Foster (os desenhos dele para o Tarzan de Burroughs são fantásticos). Por obrigações acadêmicas meti-me a ler Musil e Cioran. Entre os meus musos raros estão Bukowski e Quintana, assim lado a lado. Agora, mercado editorial é outra coisa. Estou nele e, como você sabe, publico só best-sellers: O Romance do Pavão Misterioso, A História de João de Calais, Os Cabras de Lampião. Trabalho fincadamente, com dedos e luvas para furar o esfíncter desses críticos resenhadores que também estão defendendo o seu. Acredito que a leitura não salvará ninguém nem nada, nem formará homens de caráter e cidadãos. Ler é uma necessidade de quem gosta de ler. E ler não se aprende na escola. Leio qualquer coisa e continuarei lendo. Graças a essa minha inselectude encontrei Vintila Horia, Budd Schulberg, Zenão de Aleia, Zabé da Loca, Cícero Pedro, Salim Miguel e o Cego Aderaldo, todos meus amigos, os que me salvaram diante da realidade horrível de todos os dias. Teu texto está muito bom e as reflexões se seguirão.
    1 maio, 2012 as 1:08
  5. Ronaldo Ferrito, Aderaldo, meu confrade honorário, “ler não se aprende na escola”, acho que deixo claro que se trata de dar as possibilidades máximas para que o leitor se forme. O professor tem essa responsabilidade e o governo também…
    1 maio, 2012 as 1:56
  6. Ronaldo Ferrito, E, de fato, é Tom Clancy. O texto não foi revisado. Há uma série de erros. Abraço!
    1 maio, 2012 as 1:57
  7. Beatriz Bajo, sou tua fã por istos e aquilos. é triste, filósofo caromeu! triste mesmo…
    9 maio, 2012 as 2:51
  8. Rod Britto, Apenas jogando mais uma centelha no fogo amigo e próspero do nosso crítico Ferrito: “No fundo, o que é a formação do público quando se baseia numa criação digna deste nome? Simplesmente, dar-lhe a máxima possibilidade de também sentir-se criador, como indivíduo e como integrante de uma sociedade; não necessariamente um criador de livros ou filmes ou máquinas ou sistemas científicos, mas alguém capaz de responder por si mesmo aos estímulos culturais que os outros criadores lhe oferecem por meio da sua obra, e chegar assim a transformar-se no homem novo, aquele que recebe o fogo de Prometeu e o propaga numa vida plena, na alegria de saber-se um dos que constroem com seus irmãos a verdadeira casa do presente e do futuro. Isso é fazer a poesia entre todos, como pedia visionariamente Lautréamont; isso é dar ao socialismo seu sentido último, o da reconquista do homem alienado.” Julio Cortázar
    15 maio, 2012 as 17:38
  9. Amâncio Siqueira, É irônico que em tempos de mídias cada vez mais interativas justamente o livro, que deveria ser aquela que mais exige a participação de seu consumidor, esteja se tornando a que menos permite a interatividade.
    20 agosto, 2014 as 19:33

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