À esquerda do mundo


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Nem sempre estar no mundo é realmente sentir-se parte dele. Alguns vivem à margem, seja porque os outros não permitem sua inserção no mundo comum seja porque o “pária” não pretende, não busca comungar com ele. Alma, personagem de Telefone sem fio (2014), novo livro de Vera Helena Rossi, parece pertencer a esse último tipo.

Alma é uma mulher que resolve contar sua história enquanto viaja com o namorado de carro, após a morte repentina do irmão. Caneta após caneta relembra seu passado, desde a infância, numa sequência de ocorrências e situações que a levam do passado ao presente, onde preenche o caderno consigo mesma.

Em Telefone sem fio há um vazio, uma impaciência para com a vida, e uma espécie de pessimismo, sob uma áurea de sonolência e apatia por parte de alguns personagens, bem como certa frieza inconformista na protagonista que, a exemplo do seu nome, Alma, parece vagar feito espectro que pousa em vários lugares, mas não se estabelece em nenhum.

Diante dessas características, duas saltam mais prontamente aos meus olhos: os desvios e a solidão — esta última como consequência da primeira. Por isso, vou me ater a essas questões que permeiam todo o livro.

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Os desvios de Alma

A sonolência, que apontei anteriormente, parece pairar sobre o texto e os personagens que, em sua maioria, apresentam-se como seres de pouca ação, principalmente Alma que, mesmo empenhada em seu trabalho, não demonstra ser alguém de grandes atitudes.

Nas primeiras páginas do livro, o estado de espírito de Alma se compara ao seu estado de sono pela manhã: “Cinco horas da manhã. Os dedos tropeçam naquele início de dia.” (p. 18). O início de dia inicia  assemelha-se à sua vida claudicante como ela mesma diz mais à frente, “Tenho também uma maneira bagunçada de me entender com a vida” (p. 33).

Seu motivo de pouco se entender com a vida faz com que se procure constantemente. Vive como outra de si, não se vê como queria, por isso, enquanto viaja com seu namorado, procura-se, como ela afirma, “no espelho retrovisor do carro. Ou quem sabe alguém ali em quem eu me reconheça pelo sorriso filhodaputa (sic) e pelos olhos vesgos” (p. 17). E assim se mantém no mundo, mas fora dele, não se ajustando nem se enxergando; na verdade, horroriza-se consigo mesma pelo que pouco vê de si.

Sua vida é feita de desconstruções, de relacionamentos desfeitos e refeitos. E em meio a isso, distante do mundo e de si mesma, nos seus desvios, Alma é capaz de se identificar com os seres mais improváveis, como com um urubu. Diante de um bicho tão diferente ela encontra semelhança que não encontra em humanos. O urubu, ao sentir-se ameaçado, vomita como estratégia de defesa, enquanto Alma cospe, pela mesma razão.

À visita de um homem, que parece ser seu pai (separado de sua mãe), Alma reage com raiva. Acuada e sentindo-se ameaçada e forçada pela mãe a falar, a menina “Tapou os ouvidos e cuspiu nos sapatos engraxados daquele homem” (p. 23). Noutra ocasião, ao ser deixada pelo namorado que engravidara a ex-namorada, Alma “Levantou-se com raiva e cuspiu nos sapatos engraxados daquele garoto que seria pai” (p. 65). Sempre cospe nos sapatos engraxados, talvez porque veja nos homens de sua vida, com seus sapatos, o pai que não teve presente.

Mas outras reações estranhas em Alma ainda se espalham pela narrativa. Diante de situações que provocariam o sentimento de piedade e de proteção em outras pessoas, nela provoca um distanciamento natural, por intermédio de um cálculo frio, como quando morre o cão da sua amiga Priscila. Enquanto essa chora a morte do bicho, Alma pensa na lei da selva, na cadeia alimentar: “Alma quis ficar triste pela amiga, mas só conseguia pensar no amigo do urubu que agora seria seu café da manhã” (p. 26). O cão e o urubu possuíam uma amizade improvável, mas eram amigos, eram vistos juntos na rua.

Porém essa amizade estranha, entre dois bichos tão distintos, também funciona no texto como símile da amizade de Alma com Priscila, a dona do cão. A segunda é grandalhona, expansiva, mais velha, enquanto a primeira é pequena e pouco extrovertida.

Contudo, essa amizade improvável passou a ser algo forte para Alma. Forte, mas não duradouro, pois para ela nada era para sempre. Um dia Priscila vai embora, e a tristeza de Alma pela sua ausência dura pouco. Com a mesma facilidade com que se ligou a ela, se desligou: “E assim, transcorridos alguns dias, exceto pela casa [de Priscila] ainda à venda, a pequena deslembrou a grandalhona, já uma estranha” (p. 32; grifo meu).

Com facilidade incomum, Alma se afasta e esquece a quem tanto parecia amar há pouco tempo. A expressão “já uma estanha” no texto mostra o quanto de afastamento se configura na relação de Alma com seu passado. Ela não só aceita facilmente a partida, ela esquece, desconhece, afasta o passado de si como um apêndice que um dia fora extraído.

Noutra parte do texto, essa facilidade de assimilar e se adaptar à situação vigente, também aparece. Numa conversa com o irmão, Alma oferece um café e, enquanto o faz, filosofa sobre a mistura entre a água e o pó, trazendo isso para a sua vida: “Sabia que era boa naquilo, ferver água e misturar-se ao pó. Misturava-se com espantosa rapidez ao pó” (p. 48), diz, referindo-se nitidamente a si mesma.

O misturar-se pode ser visto como assimilar, assumir outra posição, outra direção com facilidade, encontrar um novo caminho e se embrenhar dele e nele. Antes Alma facilmente esqueceu a primeira amiga; sua morte foi facilmente assimilada e digerida, depois deixou outra amizade. E assim vai deixando coisas para trás e se adequando às novas situações, desviando seus caminhos de acordo com a ocasião. Afinal, ela também é uma boa mentirosa, e assim como no telefone sem fio — brincadeira onde mentia na hora de repassar as informações ao próximo participante —, na vida, Alma misturava verdades e mentiras, e era boa nisso.

Mas também podemos ver nessa mistura rápida ao pó uma declaração de que tudo é pó ao seu lado, tudo está fragmentado, e ela se envolve nesses fragmentos como parte deles. No ferver a água podemos imaginar um aquecer de relações, uma dedicação enquanto dura, condicionando sua vida ao outro, mas que depois tudo se dissolve como o pó na água.

Outros pontos no romance mostram um padrão na forma claudicante de Alma viver, claudicante como a história que conta. A certa altura ela diz: “Tossir também é me ler” (p. 42). O tossir como um botar para fora abruptamente. Da inércia da vida para a explosão verborrágica do escrever, do dizer. Uma tosse surge como um expurgar provocado por uma espécie de engasgo, semelhante ao seu texto — cheio de digressões e paradas para troca de caneta —, bem como algo que foi posto para fora. Tossir seria expelir da garganta, no texto, aquele travo que mantinha preso; como também pode representar sua maneira manca de viver.

Mais à frente as metáforas da vida de Alma, ou simplesmente comparações que simbolizam sua vida, continuam a aparecer. Ela se lembra de quando recebeu a declaração de amor de um garoto míope da sua sala de aula e o recusou por não julgar conveniente a união entre um míope e uma estrábica como ela, pois “não arriscaria distorcer definitivamente seu mundo, já um tanto embaraçado e enviesado” (p. 55), segundo diz ao leitor. Noutro ponto, na aula de inglês, ao ser interrogada pelo professor sobre uma frase, deixa pela metade a resposta “Incompleta, como Alma” (p. 78), afirma a narradora.

Nesses termos, seguem-se várias formas de representação da vida desviada de Alma, para quem “a sorte pertencia a algum lado obscuro do azar” (p. 81). Entre essas representações, cito três bastante significativas: o livro de poesias que ela recebeu (seu primeiro livro) das mãos de um roqueiro, livro “que a ensinara a enxergar o avesso das coisas” (p. 83); o irmão que brinca com o cabelo de Alma, e que, ao soltá-lo, esse se ajeita “ao que não era” (p. 87) — assim como ela que não era o que parecia ser, vivendo uma contínua falsidade no seu mundo —; e por fim, numa das primeiras aulas do curso de jornalismo, após pedir aos alunos que se apresentem, o professor descreve suas aulas como “reflexão e desconstrução” (p. 94) — o que se assemelha ao texto de Alma, escrito caneta a caneta: uma desconstrução em narrativa para um entendimento e reconstrução de si mesma, do seu mundo embaraçado, enviesado, incompleto, tomado pelo azar, do avesso.

Nesses desvios da sua vida, Alma nunca se alinha realmente ao mundo, sempre se esquiva da realidade: “Você não acredita na realidade” (p. 120), diz Antônio, um dos namorados que teve. Por isso também mente, para o irmão e para os amigos, como faz a carpideira que conhece e que a ensina a inventar histórias aos presentes nos velórios, num desvio da verdade como fazia no telefone sem fio de sua infância, quando mentia de propósito (antes a amiga a ensinou a mentir no jogo, agora a velha a ensina a mentir em velórios): “O morto morreu de uma morte que envergonha a família, então eu invento outra morte e espalho no velório” (p. 186), diz a carpideira.

Enfim, Alma vive como se encontra na estrada, “ao meio-fio” (p. 203), outra metáfora de si, agora por se sentir perdida, indigente, após a morte do irmão, como um largado ao meio-fio.

Ainda reforçando essa ideia, Vera Helena Rossi usa de algumas metáforas que simbolizam a distância, o afastamento de Alma e, consecutivamente, a sua solidão por enclausuramento em si mesma. Por exemplo: a mão esquerda é usada constantemente no texto como algo diferente, à parte do comum, do natural. O passado de Alma é estranho a ela mesma e horroroso como ela descreveu, por isso, na sua maneira de ver, faz todo o sentido “rabiscar meu passado com a mão esquerda” (p. 18).

Escrever com a mão esquerda é escrever torto a diferente aberração do seu passado e da sua vida, tão distante e solitária como uma mão esquerda frente aos destros, direitos num mundo que lhes funciona perfeitamente, ao contrário do mundo de Alma, “a adúltera” (p. 24) — palavra sua para descrever a mão. Ou seja, ser adúltera é algo que foge à fidelidade, é algo falsificado, como a vida de Alma, infiel a si mesma, é algo desonesto, impróprio como tudo em que toca como sua caneta: “minha caneta canhota” (p. 33), diz ela.

Ao se referir a sua mão esquerda como “adúltera”, Alma reafirma uma espécie de outro de si, falando de seu passado como se falasse de outra pessoa, projetando um distanciamento entre ela hoje e ela antes. Não necessariamente como duas pessoas distintas, mas como uma pessoa em dois mundos, em duas formas distintas: uma que existe hoje como consequência de uma de ontem, que já se foi.

Além disso, durante todo o texto, a narradora se desdobra em duas pessoas diferentes, ela é a personagem narrada e a narradora que conversa com o leitor por inúmeras digressões, onde fala de suas canetas, constantemente a secar, referindo-se à Alma como se falasse de outro alguém que não ela mesma, mesmo que se identifique no texto como ela, num constante distanciamento. Enquanto as digressões constantes em páginas negras, no início dos capítulos, surgem como se a narradora, ao parar, pela falha da caneta que seca e pela pausa realizada, se colocasse num breu, na escuridão, para daí partir novamente para a luz da história que conta.

O ser esquerdo também combina com uma declaração anterior de Alma, quando ela diz que procura no retrovisor do carro alguém em quem ela se reconheça pelos olhos vesgos (p. 17). Esse adjetivo, “vesgo”, é também um sinônimo de canhoto, no sentido de torcido, assim como esquivo, desajeitado, de mau agouro, pouco confiável. E Alma é desajeitada para a vida tanto quanto é pouco confiável, já que mente. Assim, esquerdo na vida da protagonista é mais do que uma forma de escrever, é uma característica sua.

E tudo isso a consome e a leva a um estado de solidão, mantendo-a constantemente perdida em lucubrações e dúvidas existências como veremos na segunda parte deste ensaio.
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A solidão ao redor

Em Alma há sempre um final, uma solidão, mas não só nela. Os personagens de Telefone sem fio caminham de solidão em solidão provocada pelas desconstruções de relações que poderiam ser suas salvações, mas acabam por se mostrarem frágeis, desmanchando-se à primeira prova de força. Mesmo juntos, os casais ou parentes parecem distantes pelo capricho de algum vazio, de alguma barreira intransponível que mantém cada um no seu próprio mundo.

Contudo, essa solidão é parte de um desvio de vida, de um erro talvez, de caminhos irregulares, de um telefone sem fio: como um caminho que começou de uma maneira e foi sendo desviado, transgredido, transformado em algo diferente da proposta inicial, como a brincadeira de criança.

E assim é a vida de Alma, um desvio de caminhos que resulta em algo diferente do que começou lá na sua infância; porém, nem tão diferente assim, tendo em vista que na infância já se deleitava em irregularidades.

Para ampliar o que já sabemos de Alma, vejamos o caso de Lúcia Maria, sempre referida por ela como a “senhora da sombra larga” — forma pouco elogiosa de se dirigir à própria mãe. Lúcia Maria é mãe de Alma e Mauro; contudo, somente muito tempo depois de Alma começar a escrever suas memórias, ou seja, muito tempo depois de começarmos a ler o livro é que seu nome é revelado, mais precisamente na página 93. Até então sua mãe é a “senhora da sombra larga” que reclama, que vaga um tanto distante da filha, com quem não tem um bom relacionamento.

Segundo Alma, para sua mãe, os filhos eram um incômodo: “Bem lá no fundo, a senhora de sombra larga que gostava de noticiários quase não suportava seus rebentos” (p. 25), diz a filha sobre a mãe que, viciada em noticiários, esquecia-se de olhar os filhos, abandonados pela casa.

Dessa maneira, nessa mulher sem marido, a solidão e o pouco jeito com a vida também se estampavam nas atitudes. Apática até mesmo para dar bronca na filha — “O interfone interrompeu a bronca apática da mãe” (p. 28) —, demonstrava um falso interesse pelos movimentos, tanto da filha quanto do filho, como podemos perceber numa cena banal em família, quando Mauro sai para encontrar amigos e a mãe parece agir seguindo um programa de comportamento maternal:

 

— Vou sair.

— Para onde?

A conversa entre os dois se reduzia a palavras curtas, e assim continuaram:

— Não sei.

— Com quem?

— Um amigo meu?

“Um amigo meu”, a última informação do filho. De importância proporcional ao interesse da mãe.

— Tchau, meu filho. — simulou algum ar de proteção — Oito horas quero você aqui. — uma maneira de se redimir da falta de interesse. (p. 28-29; grifo meu).

 

Nas palavras e frases grifadas na citação, as características do comportamento da mãe na visão da filha: uma conversa de palavras curtas, representando o diálogo quase inexistente entre eles; a proporção entre o real interesse da mãe pelo filho, e como isso sugestionava e influenciava o comportamento do filho em resposta, pouco se preocupando em responder, por saber que, na verdade, não importava para a mãe com quem ele sairia. Além disso, o verbo “simular”, empregado pela narradora sobre a atitude da mãe, somado ao substantivo “proteger” dão o tom de um amor maternal que parece incipiente ou inexistente. Essa mãe não protege seus filhos, situação incomum entre as mães, ela simula essa proteção, falsifica um amor porque não o sente verdadeiramente, e com esse falsificar busca se redimir da própria falta de interesse.

Na soma das atitudes, diante dessa relação da mãe para com os filhos, percebemos um egoísmo, um egocentrismo que faz com que tudo o que a mãe faça seja um simples reflexo da preocupação consigo mesma. Ela não finge ser uma mãe porque julgue ser o certo, porque procure amor no seu coração, mas porque teme ser vista como má mãe, já que quando briga com os filhos por um comportamento errado, aos seus olhos, por um caminho torto trilhado, mostra-se irritada pelo desconforto que aquilo lhe trará e não pelo que pode estar passando o filho; da mesma forma que sempre encontra a culpa no outro pelos infortúnios da sua vida, como na morte do filho, quando culpa a filha e a cunhada por isso.

Essa maneira da mãe agir a mantém distante, portanto solitária, em um mundo fechado, à parte dos filhos, não parecendo, em nenhum momento do livro, presente verdadeiramente nas suas vidas. Mesmo quando acolhe Alma em sua casa, após essa se separar do marido, sua relação é distante. Sua vida parece seguir-se em outro mundo.

Assim temos no romance um conjunto de vidas paralelas que não se somam, existem lado a lado sem se misturarem, sem coexistirem. Transitam entre si sem se mancharem uma da outra, a não ser por alguns respingos sofridos por um filho indesejado na relação, uma separação que traz os filhos de volta a casa, mas nada que faça deles, Mauro, Alma e Lúcia Maria, uma família. E tudo isso também contribui com a solidão de Alma.

Com o irmão, Mauro, mantém uma cumplicidade falsamente casual, no que diz respeito aos términos amorosos de ambos, já que muitas vezes ela mesma contribuiu para os fins dos relacionamentos do irmão, contando mentiras às suas namoradas. Porém, os dois combinam na solidão que lhes cerca de alguma maneira, como se pode perceber no dia em que conversam sobre o fim do namoro de ambos, ocorrido no mesmo dia, e que durou o mesmo tempo para os dois; configurando-se, na cabeça de Alma, que “o fim era um arranjo cruel de acasos a condenar os dois irmãos a uma solidão combinada” (p. 71). Coincidências que ainda se configuram outras vezes para ambos em épocas iguais. Como diz a voz da narradora, “Os dois irmãos sempre sozinhos. Sempre juntos no final” (p. 138).

Enquanto isso, Alma, vive à margem. Sua distância, parte da sua solidão, é de si mesma. Quando se vê no presente e se lembra do passado, dos caminhos que a levaram até ali, não gosta de si mesma, não se admite sendo o que é: “Particularmente hoje guardo em mim uma porção horrorizada e desconfortável de mim mesma” (p. 18), diz ela ao se enxergar. Assim, sua existência é frágil, “Mas agora, do que de resto ainda sou, consigo apenas me prender a esta imagem que me foge” (p. 18; grifo meu).

Sua vida parece desconhecida para ela mesma, existindo à sua revelia, esfacelada (“resto que ainda sou”) — “resto” e “ainda”, duas palavras que nos levam à característica de algo dizimado, que se vai acabando, que vive por pouco, assim como a própria imagem que foge dá a ideia de algo que se vai, que não se consegue apreender, vago, como se aquilo que Alma ainda visse de si mesma não passasse de um sonho ralo numa época distante, onde mal se reconhece como ela mesma.

Diante disso tudo, a solidão que a envolve, e que também causa uma sensação de não proteção, pode ser sentida pelo leitor em algumas notas suaves que aparecem ao longo do texto como quando ela e Carlos, seu namorado, estão na estrada, após a morte do irmão de Alma, e Carlos a abraça. A frase usada, referindo-se ao abraço do namorado é “envolve-me sobre seu corpo” (p. 69; grifo meu), e não “envolve-me sob seu corpo”. Numa situação de proteção efetiva e sentida, a pessoa que abraça coloca o outro sob si, a protege com seu corpo por sobre o corpo do outro. No caso de Alma, o corpo dela está sobre o corpo do namorado que a abraça. Ela não parece estar sob a proteção dele, parece, apesar das circunstâncias em que se encontra — morte, dor etc. —, estar sobre ele, acima dele. Ele não a protege, ninguém a protege, nem mesmo nos momentos mais doloridos. Alma está sempre fora, do outro lado do abraço.

Nesse contexto, vitimada pelo mundo que a envolve sem a abraçar, vitimada por si mesma e por suas escolhas, Alma rememora e procura reescrever sua vida, simbolicamente no papel, já que a vida não volta atrás. E nisso tenta por vezes inserir alguma cor em tudo, não só com as canetas de várias cores que usa ao longo do texto, mas também com seu desejo de desviar a verdade à sua maneira, o que é um aviso ao leitor de não acreditar em tudo o que ela narra (e as canetas coloridas também podem ser metáforas desse desvio).

Enquanto isso, pululam na sua mente observações e conclusões sobre o mundo e os que vivem a sua volta. Muitas vezes cruel, vê o mundo de maneira fria e prática — de certa forma adaptado também aos momentos históricos da política brasileira dos anos 80 a 2000, que servem como pano de fundo da narrativa.

Enfim, Alma é o retrato de alguém que não se encontra no mundo, e que parece, na verdade, não tentar se encontrar, seguindo claudicante, misturando-se ao pó da vida que lhe cerca como forma de se adaptar, confundir-se com ele, mas não de ser alguém com outro; recriando sua vida como num telefone sem fio, vida que, no fim, a exemplo da brincadeira infantil, pode não passar de um vislumbre da verdade, tão diferente da história real e do começo.

 

 

REFERÊNCIA

ROSSI, Vera Helena. Telefone sem fio. São Paulo: Patuá, 2014.

 

 

 

 

 

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William Lial é poeta, cronista, ensaísta literário e mestre em Literatura Comparada. Possui três livros publicados, Sombras, Noturno e O mundo de vidro. Também colabora com jornais, o Jornal Rascunho, revistas e sites de Literatura, como o Musa Rara, além de manter um blog pessoal: http://williamlial.blogspot.com. Email: wlial1208@gmail.com. E nas redes sociais: https://www.facebook.com/WilliamLialEscritor, https://www.facebook.com/WilliamLial e https://twitter.com/WilliamLial.

 




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