Uma mulher sem elos
.
Restou-lhe a ponte. Uma mulher desgastada pelo tempo e só, sem família perto. Quando a patroa morreu, após 20 anos de servidão, sem direitos trabalhistas, os herdeiros decidiram mudar dali, vender a casa. Nada lhe deixaram a título de indenização. Procurou outros empregos, recorreu a benefícios do governo. Mas nem era totalmente sadia para trabalhar nem totalmente inválida ou cronologicamente velha para receber um amparo social. Não havia quem a hospedasse mesmo provisoriamente enquanto a vida ficasse menos difícil. Daí lembrou daquele teto.
A ponte ligava duas cidades numa época que o rio tinha vida. Agora unia dois momentos de uma primeira e outra miséria, mais terrível. Um passado nada digno, nenhum futuro de esperança.
Pouca coisa trazia. Um par de sandálias, duas mudas de vestido, roupas de dentro. Cabiam na sacola que conduzia consigo quando saía de dia em busca de auxílios para o sustento. Não queria nada de graça. Uma lavagem de louça, uma varrida de calçada em troca de um prato de comida. Pouco levava para aquele lar amargo em que não tinha onde guardar nada.
Chegava, procurava um cantinho mais escondido, perto de um dos extremos da construção. Apagava-se no sono dos justos. Geralmente estava sozinha. Às vezes, porém, apareciam companhias inesperadas como animais e até bêbados desorientados que ali caiam e adormeciam até a manhã seguinte. Mas nunca a incomodavam. Em verdade porque não davam pela sua presença de ressonar leve, sem barulhos.
Suportara tudo com resignação até um dia que perdeu o sono. Era uma noite fria, de muito vento. Vieram voando tristes lembranças que ela não sabia tão íntimas. Chorou como antes não lhe ocorrera ter chorado. Nuvens negras que há muito não passavam pelo lugar pairaram sobre as duas cidades. Uma chuva solidária, parecendo atraída por aquelas lágrimas, fez arrombar os açudes agonizantes, suas águas correndo para o antigo rio que daria no mar.
O rigor do sol na manhã seguinte veio mostrar um espaço sem sinal de vida. As pessoas não deram pela falta daquela que, em outras correntes, nunca mais precisaria de ninguém, muito menos de pontes, ligação alguma com nada neste mundo.
.
Antônio Mariano nasceu e reside em João Pessoa, Paraíba, realizando projetos literários de interesse coletivo. Editou o Correio das Artes entre 2009 e 2010. É autor de cinco livros entre eles Guarda-chuvas esquecidos (Rio: Lamparina, 2005), Imensa asa sobre o dia (João Pessoa: Dinâmica, 2005) e Sob o Amor (São Paulo: Patuá, 2013). E-mail: antoniomarian@gmail.com

Comente o texto