Um jogo


Há um rio enorme, precipícios sem fundo — e seguro-me a ramos frágeis para não cair neles.

Graciliano Ramos

Deu por si sendo carregado, ou arrastado — tamanha era a falta de jeito com que o conduziam. Inicialmente pensou estar sonhando: um desses pesadelos que se tem quase lúcido, ao final de um sono confuso, cheio de sobressaltos.

Vacilou um pouco, não sabendo se demonstrava sua consciência ou se fingia continuar dormindo; decidiu permanecer calado, os olhos entreabertos… pernas e braços soltos, à mercê dos empurrões.

Na posição em que se encontrava, pouco via do caminho: a rua escura, árvores esparsas aqui e ali — percebeu estar chegando ao limite da cidade… os latidos de cachorros, o canto dos galos ecoando pelos quintais, um violão e uma voz triste confirmando a madrugada.

Não conteve um gemido ao sentir nos calcanhares as pedras do caminho; talvez por isso lhe tenham amarrado pernas e mãos para trás: afrouxando um pouco os nós, mas apenas o suficiente para que pudesse afastar devagarinho os joelhos. Em vão tentava enxergar seus seqüestradores, a venda no rosto mal lhe permitia respirar.

Aos poucos percebia que ficavam alguns pelo caminho, pois ouvia pisadas de no máximo três pessoas — sendo que as mais fortes eram suas, disso tinha certeza. As outras ora vinham à direita, ora à esquerda, ou então se perdiam para trás, mas logo ressurgiam ao seu lado — como se o observassem, atentas… medindo suas reações. Procurava não titubear, passadas firmes, queixo levantado, o suor escorrendo pelo rosto. Por uma pequena fresta no lenço distinguia os próprios pés, a vereda em declínio; a brecha parecendo ter sido deixada de propósito. Só parou quando escutou o rolar de pedras ladeira abaixo, poucos centímetros à frente. Sabendo que não as havia jogado, entendeu aquilo como um aviso para que parasse. Mais claramente se fixava em sua mente a idéia de um jogo… de que alguém disputava com ele uma partida perigosa, talvez a derradeira das muitas de que participou durante toda a sua curta existência. Se não fosse a última, certamente seria a mais difícil. E com certeza ele jamais seria o mesmo — porque a mente operava mudanças irreversíveis. O medo e a frieza travavam batalha memorável: às vezes aquele se desesperava, quase ferindo o silêncio da madrugada — a tempo pesava o absurdo da situação… o grito perdido na mata, o inimigo oculto rindo seu primeiro sorriso de vitória, o início de uma empreitada da qual já sabia o final, milimetricamente calculado; a razão reagia, contendo o soluço e, em silêncio, perscrutando o passo macio do opositor, sua respiração regrada: sabendo que a única maneira de derrotá-lo seria aquela — o raciocínio frio, o sentimento contido; procurando antes de qualquer ação entender o jogo, compreender as regras… e apenas nesse momento reagir. Tinha a seu favor unicamente o silêncio, o controle dos nervos, o conhecimento de que não lhe atribuíam força alguma — contra ele havia quase tudo, o absurdo daquela circunstância, o total desconhecimento das forças do inimigo.

Respirou fundo, localizou com o pé uma pedra; chutou-a com firmeza — a pedra desapareceu como se tivesse sido atirada no vácuo. Reconhecendo que se encontrava à beira de um abismo, procurou adivinhar a posição do inimigo: depois de longa espera o pressentiu pela primeira vez à sua frente, no mínimo espaço que havia entre ele e o vazio — percebeu então a força dele, a sua superioridade evidente, o seu desdém e arrogância, seu completo domínio da situação.

Pela fresta do lenço avistou os pés dele, as pernas longas e a pequena distância que as separava do precipício. Sentiu um impulso de simplesmente o empurrar, mas a facilidade da solução o fez vacilante — não poderia descuidar um segundo, estava em jogo a sua vida (e o que era mais importante naquele momento: tentar compreender a inusitada situação em que estava inserido). E de tudo apenas tinha conhecimento de que participava de um jogo, mas não tinha a mínima idéia do adversário que enfrentava e, muito menos, dos seus planos. Conteve mais uma vez a vontade de se desvencilhar daquela situação incômoda. Respirou fundo… quando avistou novamente os pés firmes do inimigo desfilando a poucos centímetros do abismo (parecia zombar da sua fraqueza e da vitória garantida ao final de tudo). Aí então percebeu por baixo da bainha da calça dele — enroscada no calcanhar magro — a outra ponta da corda, que desde o início lhe atava as pernas e os braços.

(Conto do livro inédito Movimento Esperado)

Pedro Salgueiro nasceu no Ceará (Tamboril, 1964). Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas. Algumas faculdades (História, Pedagogia e Agronomia), diversos prêmios literários, contos em suplementos, revistas e antologias, um emprego público vitalício e outras inutilidades afins. Dentre várias atividades: desbravador de abismos, perquiridor de caminhos e descobridor de atalhos.




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