Quando a água é também a terra


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Não viram nem perguntaram se estava com fome, tampouco sentiram piedade ou qualquer sentimento semelhante; o dessemelhante simplesmente não sente.

Veio o irrefreável desejo de saudar a despedida, como um presente sem destino – a santa armadilha de ir. Ou vir em orlas de silêncio para não destoar do hipocritamente calado. Escusas de uma inquebrantável estrutura por debandar. Havia sobre ela óleo e grafias tão sutis com erros desveladamente sussurrados como para arrematar o infinito feito a seivas e desertos.

“Onde fui que não mais me vejo? Onde estive cá dentro a pestanejar a madrasta que me dá esses filhos? Perdi-me na fatalidade que não quis. Fiz-me na fúria involuntária de um hino estridente – a balbúrdia a que chamam de chamados. Eu derramo essa chuva de escarpa porque talvez o futuro não exista senão oculto nessa descrente esperança”.

Onde sobra escassez não falta divindade a par de tornar-se – estrelas puídas viram aplausos para dissuadir o sossego. O dia trará a noite e suas alças intratáveis, a noite premeditará o amanhã e o sol nascerá como sempre para desejar outra coisa e segregar razões, para redimir o torpor que calará o corpo e assomará do irrecuperável  um futuro menos abissal, junto ao sal, quiçá, junto a nada: “Não existisse o amparo nesse teu ombro, em que fulgor repousaria os meus pés que insistem em não penetrar-me a fala que se solta em três silêncios, vinte e um mil intervalos. Que seria do meu alvorecer se não houvesse nele olhos sequiosos de ti, que diria a minha pele se sobre ela não pousasse a voz das tuas mãos? Deus não me faria entrar num lugar onde não fosse possível a Sua proteção.”

Foram-se os guardados, a vontade imersa seria para longe, algo que lhe poupasse um pouco as estranhezas que carregava, mas não apenas isso. Dois patinhos na lagoa: uma data como outra qualquer. Nenhuma lágrima brotou. Nenhum sorriso. O tempo e seus duendes irrequietos mereciam um novo itinerário. A mão acalentada junto ao peito. A solidão impreterível e sábia teria todas as horas de um aqüífero rosado.  Como antes, como sempre. O olho ávido não subornava nada, ninguém. As águas concentradas no curso antigo, vago. O cheiro de resina vogando em tudo sem causa ou crença. Um pacto. Um fato. Uma casa em outra rua. Um quarto vazio. Maior. Um coração alegre e ditoso.  No centro. No meio. Sem fim. Mas não sem finalidades.

Brilhou ao saber que não havia nada maior que sorrir ao divisar um horizonte talhado de pássaros, como painéis entretecidos na renda dos fios de Ariadne. Não rejeitaria a semente cujo desejo era tão forte quanto à gota que lhe daria os brotos, as raízes… os denominadores inesgotáveis das estações aceitando brandamente  novas semeaduras, cada instante que sonhasse ser tempo no ensaio da vida.

As razões das águas são livres, como é liberta a sede que não cede enquanto não saciada – o feitio das orlas, de todos os remos e barcos por conduzir. Nada comparado ao bálsamo das lezírias recostando-se no buliçoso remanso do que é comumente esquecido.

Recorda-se do que foi primeiro, último, perfeito: “Se me vissem não me desejariam talvez sequer olhassem – a vida a escorrer por entre os dedos, supondo que algo surpreenda o impossível para salvar-me do entorpecimento do ânimo num receptáculo ondulado transcendendo àqueles que me desconhecem. Em todas as coisas há vozes confusas, para mim que as ouço demasiado altas temo que seja perigoso dar-lhes conclusões. Não chamarei com o próprio nome o lancinar voraz que me ronda… a alada alma que é minha por não ter-me recusado a adotá-la – não se abandona ninguém quando se conhece o suor do abandono –  tento entende-la ciente de que permanecerá em marés rebeldes, submergidas no incessante desentendimento do meu rosto. Sonhei que sentia frio ou foi o frio que sonhou ter adormecido comigo junto aos corais, a cada sopro  quebrei o silêncio sem machucá-lo.”

Não havia mais ninguém no jardim do éden que pudesse coincidir com o estrondo dos sinais, vindos propositalmente sem nomenclaturas, nas convulsas texturas do tempo – suas misturas de solo e miniaturas de sombras, a correnteza das águas diagnosticando o sorvedouro onde se dobra o que não prescinde ser apenas diferente ou mais que mortal – na diversidade dos olhares saberá qual considerar – no paradoxo incomensurável do mundo que, célere, não suporta indecisões. Um interlúdio entre o metafísico e o humano – o dia não se finda quando a noite inicia.

Detém-se para retornar noutra sonoridade, na orquestra onipresente dum espelho inesquecível, limpo da bruma: “O que fiz do que não fui? Continuo rodeada pela depuração das fontes, suas chuvas ensolaradas. Dando por mim que a divindade mesmo não sendo santa, continua a ser divina. Coberta de lua nascente, ouso onde nada há para retirar além do excesso de perfeição. Como dizer que era eu aquele grão de pó renascido no dorso das águas? No regresso dos ruídos, a rota úmida da cerâmica bebericando a forma, o dom de atemorizar o medo numa feitura apoiada no vento, dourada nas searas, no fluxo da terra remoçada pela explosão sem fim dos rios. Assinando-me de mim mesma”.

 

 

 

 

 

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Tere Tavares, escritora e artista plástica, autora de três livros publicados, Flor Essência 2004, Meus Outros, 2007 e Entre as Águas 2011. Integra a Academia Cascavelense de Letras. Edita o blog http://m-eusoutros.blogspot.com/ E-mail: t.teretavares@gmail.com




Comentários (8 comentários)

  1. Madalena Barranco, Querida Tere, A água revela sua divindade em seu texto, que a deixa fluir pelos sentimentos, que se infiltram pela terra, assim como penetram cada fibra do coração humano. Belíssimo texto! Beijos
    11 março, 2012 as 18:47
  2. Joao Esteves, Texto onde se equilibram o denso e o sutil, o forte e o delicado. Irretocável, Terê!
    12 março, 2012 as 14:26
  3. Roberto Malacrida, Tere querida, outra vez com sua sutileza sustentando um profundo sentimento. Dual, terra e água, se complementam, se fazem… Lindo como sempre.. bJS
    12 março, 2012 as 14:48
  4. Tere Tavares, Queridos amigos, Madalena,João,Roberto, que companham sempre próximos a minha escrita, meu profundo obrigada. A trilha das letras é sonora porque há seguidores. Abração a todos!
    12 março, 2012 as 20:36
  5. neuza pinheiro, é isso, Tere, quando se quebra o silêncio: com delicadeza. semeando mais silêncio. abraços
    15 março, 2012 as 14:25
  6. Tere Tavares, Querida Neuza Pinheiro, Obrigada por esse germinar, próximo à minha escrita. Um grande abraço.
    15 março, 2012 as 14:59
  7. LUIS SERGUILHA, “Um interlúdio entre o metafísico e o humano – o dia não se finda quando a noite inicia”….QUERIDA TERE, ADMIRO A TENSAO DOS CONTRÁRIOS ..A ARTE COMEÇA NESSE ACIDENTE…NESSE DESASTRE CRIATIVO….ABRAÇOS
    20 março, 2012 as 3:34
  8. Tere Tavares, Olá Luis Serguilha, causa-me alegria a tua voz, a forma como interpretas se coaduna com o que existe de sublime na arte, na insistência do artista, no êxtase de exaurir sem esgotar os limites da criação! Muito obrigada pela leitura e comentário. Grande abraço
    20 março, 2012 as 12:26

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