Outro dia de folia


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No nosso último encontro, valendo-me das observações de Ferreira Gullar sobre a poesia concreta, feitas no prefacio da mais recente edição de seu poema O formigueiro, aproveitei para falar a respeito da poesia cerebral vs. a poesia feita com sentimentos. Todavia, somente entre o cérebro e o coração, talvez seja difícil definir poemas como Dos males o menor, de Leila Míccolis:

Se eu te chamo de putinha
sou machista e indecorosa!
No entanto, se não chamo,
você não goza…

Ainda em função do corpo humano, Dos males o menor não é um poema cerebral nem cardíaco, ele é genital. Na trilogia A crucificação encarnada, Henry Miller se vale das mesmas partes do corpo, os volumes se chamam Sexus, Plexus, Nexus; na literatura, em geral, estas são as zonas, respectivamente, das poesias erótica, sentimental, experimental.

Sem querer limitar a poesia a essa comparação com o corpo humano, ela tem, pelo menos, a vantagem de apresentar a poesia em três regimes distintos de realização, garantindo que ela não seja sancionada por um único parâmetro. Em outras palavras, cada parte do corpo oferece um modo próprio de se fazer poesia; embora elas possam se combinar, podem se distinguir.

Embora eu prefira as poesias do nexus e do sexus – sempre busquei fazer minha poesia entre esses dois mundos –, é impossível não gostar de poesia sentimental. Quando digo isso, penso em Federico Garcia Lorca; lembro-me de poemas como Manancial, de seu Livro de poemas, de 1921.

Falando em poesia sentimental, gostei bastante de ler Outro dia de folia, do Eduardo Lacerda. Conheci o Eduardo quando ele fazia os cursos de Português e Linguística na FFLCH-USP; na época, ele já militava pela poesia na direção da revista Metamorfose e do jornal O casulo; atualmente, ele é um dos dirigentes da Patuá, uma das raras editoras dedicadas à publicação de literatura brasileira contemporânea.

Em geral, começar pelas capas dos livros não é o procedimento mais recomendável para ler poesia. Na maioria das vezes, os autores sequer têm esse tipo de preocupação ou, nas mãos de editoras comerciais – Companhia das Letras – e aristocráticas – Cosac naify –, ele tende a perder esse tipo de controle. Entretanto, no caso da Patuá, isso pode ser diferente; certamente, houve comunicação entre o Lacerda e o Leonardo Mathias, responsável pela capa e pelas ilustrações. Em Outro dia de folia, Mathias foi sensível aos poemas e conseguiu captar, em seu desenho feito para a capa, a imagem de poeta – o éthos – que Eduardo, via seus poemas, parece afirmar.

Nas leituras que fiz do Outro dia de folia, encontrei alguém que tematiza, em todos os 31 poemas de Festim – a primeira parte do livro –, uma contradição: a festa vs. o castigo. Na capa, isso está explícito: no título, sobre o desenho, afirma-se a festa em “outro dia de folia”; no desenho, sob a legenda, um menino com chapéu de cone amarga o castigo, sentado em silêncio, diante das paredes.

No segundo poema da primeira parte, também chamado Festim, o tema festa vs. castigo aparece explícito – para mim, este é um dos melhores poemas da série –:
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Festim

Jogou copos contra
Paredes.

Mudou de letra, com
caligrafia e sessões
terapêuticas, dando-
se firmeza às mãos.

Rabiscou espelhos
não sendo ele
sua própria

letra.

Lençóis amassados e
marcas de unhas
nas costas.

Cheiro de cigarros,
bebida, suor
e incenso.

– os poucos amigos,
dispersos,

juravam que vivia
em festa. –

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Em linhas gerais, o poema desenvolve suas narrativas entre festas e castigos:

1) na primeira estrofe, a revolta – copos são jogados contra a parede;

2) da segunda à quarta estrofe, processos de adaptação social alienam o poeta de sua própria voz – afirma-se o castigo nas sessões de caligrafia, terapia, quebras do espelho;

3) quinta e sexta estrofes, os dias de folia, a resistência via a presença do corpo e da alteração de seus estados consciência;

4) sétima estrofe, a contradição festa vs. castigo se esconde na contradição há amigos, mas eles são poucos e dispersos;

5) última estrofe, “juravam que vivia em festa” é a explicitação irônica de um julgamento – ele parece estar em festa, mas talvez não seja bem assim…

Na poesia do Lacerda, como ele resolve essa contradição? Em seus poemas, além da recorrência a esse tema – Ahab tem de matar sua baleia… –, Eduardo Lacerda recorre, constantemente, a uma comparação bastante cara ao poetas sentimentais: escrever é viver / viver é escrever. Para mostrar isso, escolhi este poema – para mim, o melhor poema do livro –, também da primeira parte:
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Essa viagem
para Elisa Andrade Buzzo

“Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas;”
(Camões, Os Lusíadas)

É certo, Elisa,
estamos todos
à deriva. Nessa
página (barco
branco): Vida.
…………..(Vida que chamamos livros)

Mais ainda, e
mesmo que
naufragados:
– minha amiga,
a dor nos estiva.
………….(Dor que chamamos escrita)

Fio que, fio a
fio, a fina linha
da trama nos
livra, e labirinta:
margem infinita.
………….(Margens abertas nas mãos)

Sigo, e me siga
em rota marinha,
e nessa medida:
ler de litro a
letra líquida.
…………(O olho que lê, ele lagrima)

Finda o canto
da musa
antiga.

(bússola
feita de verso)

No fundo de
nossa
retina.

Doer ainda é um
que navega

e caminha

sozinho.

Que nos escreve,
E nos cita.

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É notável a complexificação entre o que está dito na epígrafe, os versos de Camões, e o desenvolvimento dos versos. Na epígrafe, as musas “verdadeiras”, as da vida, são mais fabulosas que as das próprias fábulas; na epígrafe, a arte perde para a vida. Contudo, nos versos do poema, isso surge ao contrário; no poema do Eduardo, viver é estar, mesmo que à deriva, nas páginas dos livros. Ao que tudo indica, só se vive literariamente.

Se isso procede, na poesia do Lacerda a musa literária vence, não porque derrota as musas “verdadeiras”, mas porque, na tensão entre os mundos possíveis e suas poéticas, surge, no lugar do enunciador poeta, o enunciador-poema, “Que nos escreve, / E nos cita”.

Assim, ao nos tornamos tema da poesia, estaríamos salvos – em festa –, mesmo que solitários – ainda de castigo –. Eis um dos poemas em que, citados e escritos em seus versos, Lacerda e seus amigos estariam a salvo:

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Reflexos

para Vlado Lima

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Eu e
meus amigos,

tão sozinhos
que derramaremos
(aos litros)

álcool

aos

santos

e

espíritos.

Tão sozinhos que nos indagaremos:

– Eles também nos verão em dobro?

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Em sua utopia literária, Eduardo Lacerda não investe em quaisquer banalizações poéticas como forma de salvação; o poema Cantiga é seu sinal de alerta:

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Cantiga
para Reynaldo Damázio

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Tenho ido
um mínimo possível
pelo rastro
de fogos de artifício.

/ Meus ouvidos
são só recusa ao
som de hinos.
(Não peço esmola,
ouço o que nos sobra
: ruído e disparo) /

Tenho ido
pelo mesmo caminho
contínuo.

E, antes que eu chegue, cheguem
sempre à minha frente, sem festa
(e aos gritos), fogos de artifício.
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Por fim, quero manifestar minha admiração pelo Eduardo Lacerda e por seus trabalhos a favor da literatura brasileira. Nesse país nepotista, terra de políticos malandros e salteadores, editoras como a Patuá deveriam receber incentivos do governo e reconhecimento por seus notórios fazeres; pessoas como o Lacerda merecem mais respeito do que os reitores da USP ou os governadores do estado de São Paulo.

Por enquanto, a luta continua; salvos pela poesia, termino com os versos finais de Domínio, navegando ao Som / De livro / Sendo / Lido.

Daqui a quinze dias, volto para falar de outro militante, o poeta Edson Cruz – o responsável pela Musa Rara – e de seu novo livro, O canto verde das maritacas.

 

 

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Marco Aqueiva, Muito bom ensaio! Especialmente por pÔr em debate outras formas de leitura/abordagem do texto poético. Quando ao livro matéria central do texto, Outro dia de folia me impressiona pela qualidade da fatura, tendo em vista não apenas o aspecto formal, mas como o diálogo de Edu com a literatura se dá. Por Essa viagem (em sua dupla via: a do poeta e a do leitor de Poesia) isso fica bem claro.
    19 maio, 2016 as 14:25

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