O senhor das dúvidas


              No final do ano passado, dia 9 de novembro de 2018, na Casa das Rosas, eu tive o prazer de lançar a Coleção Polifemo durante a feira de editoras alternativas. A coleção é uma série de plaquetes; trata-se de um projeto meu, produzido junto à editora Córrego, do amigo poeta Gabriel Kolyniak. Uma das plaquetes lançadas é um pequeno livro chamado “O senhor das dúvidas”, de um amigo poeta chamado Samael.


(capa: Lilli Ferreira)



              Conheci Josuel de Lucena Filho quando Marília, grande amiga – musa de vários poemas meus –, me disse: “se você gosta de poesia mística, quase religiosa, vai adorar ler os textos desse mocinho”. Respondi para ela que gostava de ler William Blake; há uma dimensão do desconhecido que as religiões, quando lidas poeticamente, expressam muito bem. Josuel assina Samael, o nome de Lúcifer antes da queda; Samael tem idade para ser meu filho. Lia dele poemas esparsos – a maioria parece letra de rock, falava de cancros e caveiras –, mas fui pungido pel’O Senhor das dúvidas – ressoa no Senhor das Moscas; Samael quis dizer Belzebu, Arimã, Éris –. O Senhor das dúvidas tem duas partes: (1) o Livro I é uma cosmogonia, a musa nasce no rio Nilo; (2) o Livro II tem viés transcendental, é a noite dos sentidos diante do Buraq, mais uma musa.

              Em sua cosmogonia, Samael fundamenta sua retórica. Logo no primeiro verso do Livro I, ele afirma “para justificar os caminhos de Samael para Samael”; esse primeiro poema é uma variação da frase-verso que aparece na capa, desenhada por William Blake, para o poema Milton: “To Justify the Ways for God to Men”. Contudo, não se trata apenas de citação pontual; trata-se de sugerir o delírio figurativo, próprio dos discursos religiosos, pelo qual pretende seguir em sua poesia, convocando poetas-profetas e suas mitologias – o poema termina com Los, outra citação do Milton, de Blake –.

I
para justificar os caminhos de Samael para Samael
para justificar Samael, de Samael para seus caminhos
para justificar Samael dos caminhos para Samael
para justificar os caminhos
para justificar Samael
vinhos para justificar minhas quedas
minas, que preciso explodir para explorar melhor
diamantes, enfeites do meu trono de pária
debutantes são estrelas das minhas fitas de horror
carvão para escrever nas paredes, no teto, nas entrelinhas
carvão e faço no assoalho de terra riscos
verdadeiros hieroglifos, dignos das penas dos escribas
somente uma egípcia entenderia, ao olhar de soslaio
para mim, para Los, para me justificar da fúria

              Ainda no Livro I d’O Senhor das dúvidas, divindades de várias religiões, como nos discursos esotéricos da modernidade, são disseminadas. Samael começa na Índia, no templo dos macacos – canto IV –; seu local de batismo é o Nilo, no Egito – canto V –, onde ele se depara com a primeira divindade de sua mitologia pessoal: Alga Glauca, uma referência à poesia zen-concreta de Pedro Xisto.

IV
estou no templo dos macacos
os monges acenam entra
mas os símios são mais incisivos

– isso é só a sua mente, insiste
são as ideias saltando como nós, os símios
gritando somos primatas, por isso mesmo respeito
fomos os primeiros a levantar, na alvorada da história –

Hanuman, seja sua a presença em minha mente
esteja em todos os lugares
na velocidade da luz e dos macacos
invoco a força dos gorilas, Son Goku,
para remar contra as marés de aço
contra as indicações das bulas
Samael, seu olho brilha porque estou sempre chapado

              No canto V do Livro I, é possível verificar o engenho poético de Samael com mais cuidado. Faz algum tempo, eu me deparei com os processos de composição da poesia beat, enquanto buscava pelos muitos modos de fazer poesia, isto é, enquanto buscava descrever alguns regimes de composição, capazes de dar conta, aproximadamente, do pluralismo lógico da literatura. Em linhas gerais, os procedimentos de composição beat são baseados, como o jazz – uma das influências fundamentais desses poetas –, em fazer poesia por meio de temas e improviso. Lawrence Ferlinghetti, em suas Mensagens orais, propõe temas, geralmente em forma de pequenas frases, para serem desenvolvidos livremente, salientando as formas mutantes desses poemas, próximos dos improvisos de jazz; o próprio “Uivo”, de Allen Ginsberg, está baseado na frase “eu vi…” e seus desdobramentos.

             Dialogando com essa técnica de composição, Samael busca por variações além de motes frasais e seus desenvolvimentos. No Canto V do Livro I, os nomes de deuses do Egito Antigo – Sobek, Uadjit, Heqet e Taweret – e um demônio – Behemot – terminam soando como poesia sonora, sugerindo que seus deuses não são apenas símbolo abstrato, mas substância sonora; eles estão no mundo por meio da poesia. Tais sons também podem ser onomatopeias, eles expressariam os grunhidos extáticos de Samael nos mantras de seu esoterismo. As estrofes, por sua vez, seguem por este desdobramento: (1) em cada estrofe deve-se acrescentar um verso; (2) o último verso de cada estrofe é uma sequência de quatro palavras, selecionadas em meio a diversos paradigmas, entre eles, o mesmo prefixo, o mesmo campo semântico, etc.

V
Sobek k k k k k k k

Wadjjjjjiiiiit

Heqet Heqet Heqet

desperto: escuto em silêncio: Alga Glauca emerge do mar
descobre – desvela – desanda – desmonta

desperto: escuto em silêncio: os lagartos labirintodontes
a metafísica no meio da lama, flor de luto
púbis – pernas – hálux – artelhos

desperto: escuto em silêncio: posso ouvir
o flap dos passos, as plantas na superfície plácida
como se fosse o vento e a água, o sino e o senso
luz – fronte – fósforo – lanterna

desperto: escuto em silêncio: estou atento
fonte, aquela que fende, entre seus papiros
nas paliçadas, sou Romeu diante da sacada
Alga, algumas iluminam a noite diante do Mar Negro
sama – sema – soma – sumo

desperto: escuto em silêncio: agruras… agruras… agruras…
nenhuma delas deveria me ferir com seus bicos de farpa
já enfrentei harpias mais beligerantes, algumas muito belas,
seu elmo de trevas não diz nada, me transformo, posso ser
carpa, Matsya avatâra, o cetáceo devorador de profetas
musgo – visgo – vespas – víboras

Wadjjjjjiiiiit
Wadjjjjjiiiiit
Wadjjjjjiiiiit

desperto: escuto em silêncio: em breve, me estenderei
serei intenso no leito de Cleópatra, outra vez Medusa,
dos milhares de olhos, sou Muitas Vozes, monstro
permaneço de pé no solar das almas fodidas
sentido! posso ver daqui todos os signos
tenho ervas e eras de experiências a me respaldar
cubro – cobro – quebro – cobra

Taweret

Sobek k k k k k k k

Behemoth Behemoth Behemoth

Sobek k k k k k k k
Sobek k k k k k k k

desperto: escuto em silêncio: Alga Glauca insiste
quem és tu, ser em sua seara de sombra? Confessa!
não sou apenas sombra, ainda sofro a refração da luz
fui Equus, por pouco não me quedo paralítico
que gerou Naberius: boca, plexo, minha rola dura
que gerou minha Rola Aflita, úvula ululante
que gerou os arcanjos e os androides de Gerião
tapa – tiro – sopro – whisky on the rocks

desperto: escuto em silêncio: Heqet Heqet Heqet
coral das rãs, séries, desequilíbrio com as estruturas
sobra dos peixes, Mary, última vítima do estripador
soco na cara, porra! – o último dos kamikazes –
chute no saco, fera? – o abominável homem das neves –
o abominável homem das séries, seria Weber?
o abominável homem… seria Blake?
seria admirável, o espanto diante do Melocórdio?
groove – tala – tocata e fuga – clack bum

desperto: escuto em silêncio: enfim, Meretseguer
nuvem de areia, cume / somente nuvem, vale
o caos e o nulo / somente onda, quase
forca, a palavra oculta / somente sobre meu cadáver
duro, ducto direto à verve do poeta / fluxo de encontro a Ti
súcubo, sempre descalça / quanto Te vejo
Tua face, Teus cabelos pretos / não precisar tanto de Ti
meus cabelos estão arrepiados / isso não procede
meu membro duro como um tijolo / isso sim, sucede…
a Ti – tanta – tragédia – trouxeste

              Já o poema VII, ainda no Livro I, tem outra estrutura; nele, Samael intercala estrofes de três versos curtos com uma progressão de palavras ou frases, que aumentam em função das etapas da antiga cantiga folclórica “A velha a fiar”, cujo final é: “estava tudo mundo a lhe fazer mal, e a velha a fiar; a mulher no homem, o homem no boi, o boi na água, a água no fogo, o fogo no pau, o pau no cachorro, o cachorro no gato, o gato no rato, o rato na aranha, a aranha na mosca, a mosca na velha e a velha a fiar”.

              Em meio ao animismo de Samael, sua Musa insinua-se nas letras maiúsculas dos pronomes; sem nome, apenas dêitico, Ela é insinuação, nem Samael a alcança. Nessa busca, Ela também é a poesia; Samael, imerso em tantos estudos e referências – como todo adolescente, dormindo mais com livros do que com pessoas –, ele não se leva a sério: Blake dialoga com “whisky on the rocks”, “bronha dos poetas”… Baphomet está no mesmo verso com Rodak … “protejam minhas bolas” é uma frase tirada do South Park!

VII
não sei se foi semente, que veio do espaço
não sei se viva, veio do mar
não sei se sempre

mosca

serena, flana feito nota
sobre a supercorda, incerteza
por onde deve passar

teia de aranha – mosca

por isso laço
voo na nave de Rodak
o criador do teatro

ratos medonhos –
teia de aranha – mosca

por aquela moça
eu faria tudo, menos
um, zero menos um

bando de margays famintos –
ratos medonhos – teia de aranha – mosca

por essa ponte passo
Orlando atraca-se com Rodomonte
foda-se Orlando, foda-se Rodomonte

chacais, protejam minhas bolas –
bando de margays famintos –
ratos medonhos – teia de aranha – mosca

Samael, sou totem
mirando a eternidade, menhir
valho-me da mente

bengala branca – chacais,
protejam minhas bolas – bando de margays
famintos – ratos medonhos –
teia de aranha – mosca

Prócris, dessa vez não morra,
não se esconda, na moita
Samael deleita-se contigo

tocha,
terceiro olho na fronte de Baphomet –
bengala branca – chacais,
protejam minhas bolas – bando de margays
famintos – ratos medonhos –
teia de aranha – mosca

Górgona, fala de pedras
minha boca está cheia de pedras
faço isso para não gaguejar

Matsya,
cercado de água e nada – tocha, terceiro olho
na fronte de Baphomet – bengala branca –
chacais, protejam minhas bolas – bando
de margays famintos – ratos medonhos –
teia de aranha – mosca

come letra,
entrar em coma antes de falar
Maya, tenho certeza

as metamorfoses de Ápis:
taça, auspício, hospedaria de Minos – Matsya,
cercado de água e nada – tocha, terceiro olho
na fronte de Baphomet – bengala branca – chacais,
protejam minhas bolas – bando de margays
famintos – ratos medonhos –
teia de aranha – mosca

sou piadista
apenas finjo ter medo
para não assustar

o Homem no boi –
as metamorfoses de Ápis: taça, auspício,
hospedaria de Minos – Matsya, cercado de água e nada – tocha,
terceiro olho na fronte de Baphomet –
bengala branca – chacais,
protejam minhas bolas – bando de margays famintos –
ratos medonhos – teia de aranha – mosca

Hapi, sou ave de rapina
estou no terceiro planeta longe do Sol
não me demoro

Mulher de todos –
o Homem no boi – as metamorfoses de Ápis:
taça, auspício, hospedaria de Minos – Matsya,
cercado de água e nada – tocha, terceiro olho
na fronte de Baphomet – bengala branca –
chacais, protejam minhas bolas –
bando de margays famintos –
ratos medonhos –
teia de aranha –
mosca

              No Livro II, o poeta realiza a viagem noturna. No Islã, em sua viagem noturna, o profeta Mohammed, guiado pelo Buraq – ser, segundo algumas versões, com cabeça de mulher, corpo de cavalo alado ou mula, e cauda de pavão –, passa por sete céus; no Livro II, Samael faz seus poemas inspirado neles. No poema VI, Samael está no sétimo céu, justamente aquele em que o profeta está diante do tronco da Sagrada Árvore de Lótus e no limiar do entendimento humano. Em sua simbologia, Samael é o Abutre, ave de rapina, em ritos hierogâmicos com o Buraq, que pode simbolizar outra epifania d’Ela. Para se haver consigo, Samael, como xamã, transforma-se em Abutre, desencadeando a tensão da ave de rapina e cinzenta com a parte pavão, que existe no Buraq. Buraq ressoa em Abutre; geram-se signos complexos no poema quando o som aproxima, por meio de tudo que pode derivar do par simbólico pavão vs. abutre – o casal alquímico do poema –, o que as aves afastam. Nesse sexo sagrado, no céu de ouro, nada mais adequado que seguir o Mutus liber da alquimia e referir-se, em cada estrofe, a um capítulo seu, já que cada um deles corresponde às fases que levam à pedra filosofal. Além disso, para complexificar mais ainda os sincretismos religiosos próprios do esoterismo, Samael se vale da mesma métrica do poema “Noite escura”, de São João da Cruz, citado logo no primeiro verso, outro poema que tematiza a ascensão espiritual e a hierogamia. Transcendência estranha, uma vez que, em sua viagem noturna, Samael, em vez de beber leite, como faz o profeta Mohammed, ele escolhe beber vinho.

VI
em uma noite escura
a noite do Buraq, por ventura
sem a burca, Buraq
sua boca me chupa
estando minha casa sossegada

este é meu ovo, Abutre,
voa sobre o mar cor de vinho, ave
dentro do ovo, dúvida
sobre você, meu urro
sublunar, forno para meu ouro

filosofia pura
Buraq, cai pela filosofia
corpo – vejo suas pernas;
ânimo – sinto muito;
espírito? – apenas o das drogas

este é o orvalho, Abutre,
muco entre minhas coxas de mula
atraca-se comigo
já não tenho mais burca
posso voar por todas as esferas

Buraq, sua voz…
papel de seda, selo em minha língua,
aceso, esse vulcão
lunático, são brasas
para o Buraq atravessar descalça

sou sua rosa, ave,
seis pétalas… são três pares de asas…
meus pés, duas asas;
mais duas, em meu dorso
de mula; cabelos-asas-da-cuca

eis-me soturno, moça;
terminou a chuva, pássaro gris
pousou na minha sorte,
na seiva vegetal
que te escorria da boca, soçobra

só te resta rezar
então, apenas ora, observa
toma meu Zippo, acende
aquela bomba, vamos
fumar enquanto o tempo passa, pássaro

) o teu Zippo dourado
Buraq, foi presente de algum
turista? ( … estou calmo…
entrego, pela décima
vez, o líquido com sutilidade.

são os ciclos das cores
Abutre, nem tudo é sempre escuro,
há tempo para o chumbo,
– tempo do livro mudo –
tempo de fumar a última ponta

nosso laboratório,
abrem-se todas as janelas, nele,
posso enfim ver, Buraq,
como você é, voz,
não há poética que te descreva…

então entende, Abutre,
o corpo há de fazer sentido, enfim
te trouxe aqui inteiro
no meu dorso de muitos
a poesia flui, sempre demente

sempre demente, mora
na cabeça, poema cerebral
floresce, isso sei
de cor – evoco Flora –
é meu o ouro das revoluções

então me fode, Abutre,
lê, relê, observa atentamente
o livro verde, letras
em meus cabelos soltos,
letras nas plantas dos meus pés descalços

planície da delícia
em meu rosto, o Buraq passeia
levemente, sem lua,
nem sol a pino, só
sonho, o sonho lúcido do Abutre

              De cabeça raspada, para captar melhor as mensagens alienígenas trazidas pelas ondas cósmicas, Samael é um mocinho negro, que tem só vinte e um anos de vida – um para cada arcano maior –; outro nerd da literatura perdido por aí.

*          *          *

Também escrevo para o portal de esquerda Carta Maior, confira minha coluna “Leituras de um brasileiro”
http://www.cartamaior.com.br/

.

.

.

Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook