Literatura brasileira contemporânea
Por uma semiótica da literatura brasileira contemporânea
Quando se trata do estudo da literatura brasileira, devido à excelência de nossos escritores, sempre é difícil escolher temas, obras e autores. Se os poetas e prosadores são contemporâneos, as dificuldades aumentam bastante, sendo possível levantar algumas suposições para tanto: (1) a quantidade de escritores é por demais numerosa, já se passaram os primeiros vinte anos do século XXI, além dos nascidos nele, muitos autores iniciaram suas carreiras no final do século passado e continuam escrevendo – somente a editora paulistana Patuá, dirigida pelo também poeta Eduardo Lacerda, tem em seu catálogo mais de 1000 autores, entre eles os renomados E M de Melo e Castro, Glauco Mattoso e Horácio Costa –; (2) os tempos atuais são marcados pelo crescimento do ensino no Brasil, principalmente devido à vontade política dos governos de esquerda na presidência da república de 2003 a 2016, cujas medidas elevaram a escolaridade dos brasileiros, incentivando da alfabetização às atividades universitárias; (3) o mundo contemporâneo é marcado pelas telecomunicações, facilitando publicações e a divulgação dos novos autores e intercâmbios entre eles; (4) da máquina Xerox aos computadores pessoais, avanços tecnológicos nas áreas gráficas fizeram com que o preço da produção de livros caísse consideravelmente, tornando-a acessível não apenas às grandes editoras, conforme foi no passado, mas também às editoras alternativas e publicações independentes; (5) da Epopeia de Gilgamesh ao Grande Sertão Veredas muita literatura se fez na história da humanidade, constituindo-se um universo literário vasto, variado e disponível para aqueles dispostos a dialogar com e nela se aprofundar.
No meio da quantidade, porém, algumas regularidades podem ser encontradas; com vistas a determiná-las, no trabalho seguinte opta-se por encaminhar algumas reflexões sobre a poesia brasileira contemporânea, propondo-se uma sistematização das formas prosódico-fonológicas, semânticas e narrativas, enfim, das formas semióticas gerais e abstratas dessa poesia.
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Na poesia brasileira contemporânea, não é incomum encontrar poetas influenciados por vozes tão distintas tais quais as estéticas de e e cummings e Allen Ginsberg, ou, em língua portuguesa, as poesias de Augusto de Campos e Roberto Piva. A influência é gerada pelo gosto, cabendo indagar, portanto, de que modos gostar de estilos poéticos tão contrários. Os poetas parecem assumir regimes de engenharia poética, consequentemente, suas poesias são definidas em relação aos parâmetros do regime escolhido; desse ponto de vista, estéticas contrárias podem ser apreciadas uma vez relativizadas aos regimes a que prestariam contas, não causando estranheza a admiração de poéticas distintas, pois o valor literário assim concebido deixaria de ser absoluto.
Definindo o engenho poético mediante o trabalho do poeta com o sistema semiótico verbal, isto é, com a língua natural utilizada, é conveniente procurar, nessas elaborações, propostas de sistematização daqueles regimes. Para isso, vale a pena comparar Augusto de Campos e Roberto Piva. Em Augusto de Campos, em muitos poemas, há a desconstrução do sistema linguístico; pelos exemplos seguintes, verifica-se que o poeta investe:
(1) na segmentação da frase em seus constituintes lexicais:
no poema “coração – cabeça”, a frase “minha cabeça começa em meu coração” é escrita cor ( em ( come ( ca ( minha ) beça ) ça ) meu ) ação, enquanto a frase “meu coração não cabe em minha cabeça”, cabe ( em ( não ( cor ( meu ) ação ) cabe ) minha ) ça;
(2) na segmentação da palavra em seus constituintes morfológicos:
o poema “cidade / city / cité” é construído a partir do sufixo -idade – cuja função morfológica é atribuir qualidades subjetivas a um adjetivo e transformá-lo em substantivo –, sua acomodação fonológica em [sidade], homófona da palavra “cidade”, articulada a uma série de adjetivos, por exemplo atroz-atrocidade, caduco-caducidade, capaz-capacidade etc., tanto em língua portuguesa, quanto nas línguas inglesa e francesa;
atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodi
plastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade
…………………………………………………………………………………………………city
…………………………………………………………………………………………………cité
(3) na segmentação do morfema em seus constituintes fonológicos:
no poetamenos, aparecem versos semelhantemente a “semen(t)emventre”, com frases inteiras condensadas em possíveis combinações de palavras por meio de fonemas comuns, tais quais as frases “sêmen em ventre” ou “semente em ventre”.
Roberto Piva, contrariamente, investe no fluxo entoativo sem segmentar os níveis de análise da língua. O poema “Os anjos de Sodoma” é um bom exemplo de desenvolvimento dos versos a partir do mote “eu vi os anjos de Sodoma”:
Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando
a loucura e o arrependimento de Deus
Augusto de Campos afirma a descontinuidade da palavra, Roberto Piva, sua continuidade; o primeiro recorta a língua em seus constituintes formais, o segundo garante o fluxo discursivo investindo na inserção da palavra na fluência da entonação. Nesse caso, o fluxo não é apenas o da entonação no plano de expressão do poema, há também o fluxo conceitual, pois o enunciador, relacionando significados comumente díspares, rompe as barreiras entre campos semânticos em princípio distintos.
A partir, portanto, da definição da categoria formal descontinuidade vs. continuidade aplicada ao sistema verbal, é possível sistematizar regimes de engenharia poética, uma vez que, por meio deles, pretende-se descrever os modos de fazer poesia. Assim, dois regimes podem ser primeiramente definidos: (1) o regime poético em que é afirmada a continuidade ou regime do poeta linguista, pois esse poeta recorta a língua em seus constituintes semelhantemente aos linguistas em suas análises; (2) o regime do poeta em que é afirmada a descontinuidade ou regime do poeta visionário, pois esse poeta verseja feito visionários religiosos, imbuídos de inspiração mística em delírios semânticos.
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A partir desses regimes contrários, outros dois podem ser derivados. Há poetas em cujos versos nega-se a descontinuidade verbal, aproximando-se da fala coloquial, neles não há segmentações linguísticas, todavia, também não há fluxos entoativos e conteúdos delirantes, seus versos são antes conversas que visões místicas ou alucinações. Alguns poemas de Ferreira Gullar, por exemplo, o canto VI do longo poema “Dentro da noite veloz”, e alguns poemas breves de Ana Cristina Cesar são compostos nesse regime:
Ferreira Gullar
Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora
é mais intenso, o inimigo avança
e fecha o cerco.
Os guerrilheiros
em grupos pequenos divididos
aguentam
a luta, protegem a retirada
dos companheiros feridos.
No alto,
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente
sobrevoando países
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.
Uma greve em Santiago. Chove
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.
Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima
de Montevidéu. À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta
ou baixa.
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato
castigam o avanço
dos rangers.
Urbano tomba,
Eustáquio,
Che Guevara sustenta
o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe
o joelho, no espanto
os companheiros voltam
para apanhá-lo. É tarde. Fogem.
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.
Ana Cristina Cesar
Estou vivendo de hora em hora, com muito temor.
Um dia me safarei – aos poucos me safarei, começarei um safari.
sou uma mulher do sec XIX
disfarçada em sec XX
Por que essa falta de concentração?
Se você me ama, por que não se concentra?
Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma
Tão distraidamente
Independentemente da extensão ou brevidade dos versos, a palavra não está segmentada nem há fluxos entoativos e metafóricos. No trecho de “Dentro da noite veloz”, o enunciador se vale do discurso jornalístico dos meios de tele ou rádio difusão, configurando o tema político entre outros temas, inclusive com passagens lembrando da previsão do tempo e a cotação da bolsa de valores; nos poemas de Ana Cristina Cesar o tom coloquial é evidente, a narradora simula antes conversar com seus leitores do que fazer poesia. Nos poemas, independentemente dos autores, os versos são aproximados da fala coloquial por meio de versos livres e quase sem rimas, aliterações ou assonâncias e poucas metáforas; por compor poesia semelhantemente à fala cotidiana, tal poeta pode ser chamado poeta conversador. Há, portanto, gradações entre os dois termos contrários descontinuidade vs. continuidade, delineando-se zonas de atuação poética:
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Por fim, há poetas cuja preferência é negar a continuidade, realizando o percurso contrário ao do poeta conversador, valendo-se, assim, de versos metrificados pois, com métricas regulares e demais regras de composição, impõem-se limites às continuidades prosódicas e semânticas do poeta visionário sem, no entanto, segmentar a palavra feito o poeta linguista. Por investir em regras de composição bem definidas, ele pode ser chamado poeta arquiteto.
Dois bons exemplos de poetas arquitetos são Glauco Mattoso, com seus 5555 sonetos, e Pedro Xisto, com seus mais de 1500 haikai, todos compostos com regularidades prosódicas e fonológicas. Eis alguns haikai de Pedro Xisto, em que tais regras de composição são respeitadas pois, apesar das inovações do poeta na mesma estrutura, todos os poemas são formados por versos de cinco, sete e cinco sílabas, com rimas nos finais das redondilhas menores e com o acento da redondilha maior rimando com o final do verso:
tangas de miçangas
balangandãs mais galantes?
(zangas e mungangas)
atabaques batem
atabaques atabaques
atabaques:
baques
iaiá iaiá ia
aí: ôi ioiô: aí
ai ai iaiá ia
mar santo (a chamar
a bela) espelha e revela
já: mãe iemanjá
LÁJEA LÁJEA LÁJEA
LÁJEA LÁJEA LÁJEA LÁJEA
LÁJEA LÁJEA lágrima
Eis o soneto “Flatulento”, de Glauco Mattoso, cujos procedimentos prosódico-fonológicos convencionais, quer dizer, todos os versos heroicos e com rimas regulares, no caso, rimas intercaladas, são devidamente respeitados na composição:
O peido, mais que o arroto, inspira o riso
gostoso, desbragado, gargalhado,
da parte de quem pode ter peidado,
enquanto os outros fazem mal juízo.
Com base no meu caso é que analiso,
pois, mesmo estando a sós, enclausurado,
gargalho após os gases ter soltado
e aspiro meu fedor, feito um Narciso.
Me ponho a imaginar a reação
de alguém afeito a normas de etiqueta
colhido de surpresa ante o rojão…
Meu sonho era peidar fumaça preta
na mesa dum banquete, para então
deixar que a gargalhada me acometa…
Retomando o raciocínio anterior, há novas gradações entre os dois termos descontinuidade vs. continuidade, dessa vez em sentido contrário:
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Articulados entre si, os quatro regimes de engenharia poética determinados podem ser esquematizados no modelo do quadrado semiótico, em que são representadas as afirmações e negações da categoria formal descontinuidade vs. continuidade:
Para concluir o tópico semiótico da engenharia poética, verifica-se a totalidade da poesia brasileira anterior ao modernismo, com raríssimas exceções, construída no regime do poeta arquiteto, independentemente das regras dessa arquitetura, das rigorosas às mais flexíveis. No modernismo, sem perder de vista os procedimentos do poeta arquiteto, utilizados frequentemente por Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e quase totalmente por João Cabral de Melo Neto, acentua-se, nos primeiros momentos, a orientação para o regime do poeta conversador, especialmente em Oswald de Andrade e Raul Bopp. Tal deriva, após 1950, multiplica-se nos regimes do poeta linguista, predominante nos movimentos concretista, neoconcretista e poema-processo, e do poeta visionário, entre os quais vale lembrar dos poetas Roberto Piva, Sergio Lima, Claudio Willer e Jorge Mautner.
Nota-se, portanto, um aumento do campo semiótico da poesia, disponibilizando-se formas linguísticas antes sequer concebidas poeticamente, inclusive extrapolando-se a semiótica verbal, concentrada nas formas semânticas e prosódico-fonológicas. Nos limites da categoria formal continuidade vs. descontinuidade, dialoga-se com as semióticas musicais por meio da continuidade prosódica, presente na língua e enfatizada no canto, e por meio da descontinuidade fonológica dialoga-se com as semióticas visuais, presente na expressão gráfica dos alfabetos. O poeta Jorge Mautner é músico, todos os poetas tropicalistas compuseram canções, enquanto os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Wlademir Dias-Pino, Neide Sá e Álvaro de Sá são reconhecidos nas artes plásticas.
O poeta brasileiro contemporâneo, uma vez herdeiro dessa tradição plural, longe de abandoná-la ou restringir seus domínios, vale-se dela para compor, atuando preferencialmente em um dos quatro regimes determinados, em todos eles ou, até mesmo, articulando-os em novas formas poéticas.
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CAMPOS, Augusto (1985). Ex-poemas. São Paulo: Entretempo.
_____ (2014). Viva vaia. 5.ed., São Paulo: Ateliê.
CESAR, Ana Cristina (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras.
FLOCH, Jean-Marie (1995). Sémiotique, marketing et communication. 2. ed., Paris: PUF.
GULLAR, Ferreira (2015). Toda poesia. 21.ed., Rio de Janeiro: José Olympio.
MATTOSO, Glauco (2004). Pegadas noturnas. Rio de Janeiro: Lamparina.
PIETROFORTE, Antonio Vicente (2012). O discurso da poesia concreta. Coimbra:
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PIVA, Roberto (2005). Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume 1.
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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olhar; Análise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicações; Análise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SM; Irmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto foge; Palavra quase muro; Concretos e delirantes; Os tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com

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