Corpos em cena


 

Conheci a Susanna Busato trabalhando com a literatura brasileira contemporânea; a Susanna é professora da UNESP de São José do Rio Preto. Certo dia, visitando o site da editora Patuá – www.editorapatua.com.br –, eu encontrei “Corpos em cena”, de 2013, seu primeiro livro de poesia.

Estudar literatura implica em refletir sobre ela mesma. Se houver alguma inclinação para fazer poesia, é impossível, para quem faz teoria literária, não arriscar a continuar, em suas investigações, articulando teorias e práticas na engenharia poética. O termo engenharia vem a calhar, aprendi a compreende-lo melhor com o poeta E M de Melo e Castro, poeta e engenheiro têxtil.

Comumente, a poesia é identificada com a liberdade criadora, impor quaisquer restrições a ela soaria como opressão. Contudo, não se deve confundir liberdade criadora com liberdade criativa. O poeta não cria a partir do nada; não existe inspiração por si própria, enquanto entidade metafísica, que encarna nos poetas como se fosse deusa e, através deles, se põe a falar. A poesia se faz em processos históricos e semióticos; os poetas vivem em suas épocas, frutos de visões de mundo determinadas historicamente, e lidam com as formas semióticas herdadas de seus antecessores. Desse ponto vista, o poeta é um engenheiro; ele faz poesia entre a história e a semiótica das formas poéticas.

Susanna Busato, entre suas heranças, parece se valer basicamente de duas: (1) a poesia concreta – ela parece distante da poesia de Roberto Piva e Jorge Mautner, distante da poesia engajada de Ferreira Gullar ou da poesia marginal de Chacal, Nicolas Behr e Leila Mícollis –; (2) o universo acadêmico – mas não o ranço acadêmico –, via teoria literária e semiótica. Vou exemplificar isso com este poema inédito, que a Susanna leu na Casa das Rosas, durante o Recital Fome de Forma, organizado por mim e pelo Rodrigo Bravo, em janeiro de 2017:

 

nascimento do olhar

 

O pôr do sol avermelha o horizonte.

O sol se põe no vermelho do horizonte.

O vermelho se horizontaliza no sol.

O pôr do sol orienta o vermelho.

O horizonte deposita vermelhos no sol.

Um sol se põe na vermelhitude ortogonal do horizonte.

Um horizonte avermelha ao sol.

Em decúbito dorsal o sol do sol

avermelha.

Horizontalizam vermelhos de sol.

Solarizam rubros horizontes vergéis.

Vertem vermelhos espelhos de sol.

Horrorizontes vesgos vergam-se

ao sol.

Horrorizontes velhos vertem vespas

de sol.

Horrorizontes vermelhizam sendas

de sol.

Vertem rubros vergéis em horizontes

de fel

ao sol.

Um pôr de sol depõe contra

o horizonte. Vermelhorror: o

sol

se

con

so

me.

 

Não se trata de poema concreto, sequer é poema verbo-visual; as quebras de verso indicam o fluxo prosódico sem desenhar quaisquer figuras em caligramas ou ideogramas. Em Nascimento do olhar, Susanna complexifica a concretude das coisas do mundo com suas impressões, colhidas no corpo sensível do poeta, expressando essa tensão semiótica na tensão entre a referência e a construção de visões de mundo por meio do discurso. Isso precisa ser explicado melhor.

Nas teorias da significação, há, pelo menos, dois modelos de signo. Em linhas gerais: (1) a significação é concebida como referência às coisas do mundo, há objetos e signos que se referem a elas via pensamento humano; (2) a significação é gerada em sistemas de signos, que dão suporte ao pensamento humano e, projetando-se sobre a natureza, constroem visões de mundo.

Em outras palavras, ora a significação é referência semiótica, ora é construção semiótica. A Susanna Busato conhece os dois modelos teóricos – isso eu sei, fui o supervisor de seu pós-doutorado em literatura brasileira contemporânea –; há traços de ambos no Nascimento do olhar.

Logo no primeiro verso, “o pôr do sol avermelha o horizonte”, duas ações concomitantes encaminham a linguagem como referência: (1) o pôr do Sol é uma ação tornada substantivo, trata-se de um decurso que se torna coisa; (2) essa coisa age, ela avermelha, e, quando avermelha, uma qualidade torna-se ação. No verso, aparentemente simples, uma ação transformada em coisa – o pôr do sol –, em sua ação – avermelhar –, faz uma qualidade ser ação, que, ao mesmo tempo, qualifica e constrói o lugar do horizonte – essa é a referência –. Sob estas figuras do discurso – o pôr do sol, o vermelho, o horizonte –, o tema semiótico se insinua. Embora sejam três figuras, todas elas convergem para a referência de uma só coisa: um referente – o horizonte feito vermelho pelo pôr do sol –; sua referência por meio de signos – o pôr do sol, o avermelhar, o horizonte –.

Todavia, o verso também remete à construção semiótica. Partindo dos signos verbais, é fácil perceber como, na narrativa gerada pela oração “o pôr do sol avermelha o horizonte”, o horizonte é construído por meio da qualidade transformada em ação. Tudo se passa como se o horizonte nascesse do avermelhar do pôr do sol, deixando de ser apenas cenário ao qual a linguagem, eventualmente, poderia se referir. Desse ponto de vista, o sentido emana da linguagem.

Nos demais versos do poema, o tema encontra suas variações. Nessa dinâmica, o primeiro verso deixa de ser a variação principal, mas se realiza como mais uma delas; o tema do poema passa ser a fenomenologia da percepção e, ao mesmo tempo, a fenomenologia da composição. A percepção estaria tematizada nos muitos modos de cercar a incapturabilidade do objeto – a “coisa em si” –; a composição estaria tematizada na realização dessa fenomenologia por meio da poesia, em que cada verso, antes de falar sobre as coisas, fala sobre os muitos modos de dizê-las.

Nessa concepção poética, qual o papel semiótico dos corpos em cena? O livro da Susanna é dividido em cinco atos; de cada ato, escolhi um poema:

 

ato 1 – claves de corpo

silêncio

 

seu

sil

ên

cio

sil

vo

do

ce

do

sol

so

me

de

mim

 

Ora, parece que Susanna percebe o “silêncio” do mesmo modo dinâmico com que percebe o pôr do sol: (1) o “silêncio” é referência, fruto da percepção, que passa pelos sentidos – “some de mim” –; (2) o “silêncio” silva por meio da linguagem. Para compreender melhor essa segunda afirmação, deve-se considerar que “silêncio silvo” é quase uma palavra valise; são dois substantivos articulados em função, no caso, de construir conceitos. Desse modo, a palavra “silvo” desperta o som no “silêncio”, ao mesmo tempo que “silvo”, reforçando a aliteração que já está presente em “seu silêncio”, faz com que o silêncio, paradoxalmente, ressoe com ênfase.

 

ato 2 – sustenidos e bemóis

diálogos íntimos

 

estou sem tempo para os amarelos

o vermelho cresce

 

nas veias bebo doses de azul para me acalmar

me banho de rosa

pra voar

 

minha saudade é azul no sol

amarelo

na memória

verde

minha saudade é saudável, baby.

 

Sob a diversidade cromática sugerida no léxico, qual seria o tema desse poema? Talvez, as oposições cromáticas entre cores quentes vs. frias e cores primárias vs. secundárias, realizadas nos versos nas cores vermelho e amarelo de um lado – cores quentes –, e azul do outro – cor fria –, todas as três primárias, possam encaminhar alguns significados. Sendo rosa o embranquecer do vermelho, e verde, a combinação entre amarelo e azul, as cores do poema opõem-se e mesclam-se. Como as cores são significantes prontos para assumir, subjetivamente, numerosos significados, o que se passa entre as cores se põem a passar entre os significados a elas sugeridos a seus leitores. Mais uma vez, a percepção, realizada por meio das cores, e a linguagem, construída por meio das equivalências entre cores e significados, dialogam na construção do sentido, mesmo que seja o sentido em revoluções constantes, próprio das obras abertas, como é o caso desses diálogos íntimos.

 

ato 3 – corpo em curva

 

do corpo

quero

o centro

o olho

de dentro

 

Para tratar apenas das relações entre percepção e linguagem, vale a pena observar a articulação entre o olho que vê, quando a luz vem do mundo para a pupila, e o olho de dentro, do qual emanam as visões de mundo. Entretanto, essa leitura é metalinguística… tratando-se de tematizar o corpo, inclusive em seu erotismo – que é outro modo de dar sentido ao mundo – há no poema sugestões bem mais obscenas – o olho e o ânus –. De qualquer modo, trata-se, ainda, de percepção e sentido.

 

ato 4 – bemóis

exercício das facas

 

exercício das facas:

com as faces voltadas

para dentro da carne

doar-se

até que a dor conduza o ato,

até que o fato se consuma,

até que a aguda flor se foda

em talo e folha e ruínas

 

Com a sensibilidade à flor da pele, o excesso de sensibilidade pode levar à sua saturação; essa saturação, contrariamente, pode gerar a insensibilidade. Por isso mesmo, a faca, o corte, a dor; a difícil sensibilidade dos masoquistas, afeitos à dor, como se somente a dor pudesse, ainda, provocar algum sentido.

Por fim, um último poema que trata, justamente, da percepção da luz entre a onda e o silêncio – outro modo de tematizar o som e o sentido –:

 

ato 5 – breves e semifúrias

como se nada fosse

 

sob a luz

como se

sumisse

como se

a luz

submissa sentisse.

E este silêncio…

 

(como se dissesse tudo

e nada fosse)

 

amortece

como se

uma sonda

emigrasse

sob a luz sua sede

e sonhasse

no vazio da mira

a sombra

do impasse.

 

 

 

 

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Também escrevo para o portal de esquerda Carta Maior, confira minha coluna “Leituras de um brasileiro” http://www.cartamaior.com.br/

 

 

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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