O professor que faz diferença
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Dediquei o livro Silas (contos, Jovens Escribas, 2011) ao professor Albanito Vaz Júnior, sem dar qualquer indicação de quem seja. Chegou a hora de deixar isso claro.
Fui seu aluno em 1976, no Colégio Batista Mineiro. Português. Meu pai, que havia sido seu colega de trabalho muitos anos antes, contava que eles eram da turma dos fumantes, os que saíam à rua na hora do recreio. E como meu pai, ele tinha uma pontaria incrível com os tocos de giz: às vezes acertava o aluno conversador enquanto escrevia no quadro, sem se virar. Mas essa não era sua principal característica nem a que me fez prestar-lhe o modesto reconhecimento mais de 30 anos depois.
Não faço idéia se ele era um ótimo professor de Português, eu era muito novo para dar essa notícia agora. Mas me lembro com segurança de duas coisas: nós tínhamos que fazer e ler para a turma uma redação por semana – e isso era o purgatório para muita gente. E também com boa frequência, apresentar leituras ou jograis dos livros que éramos, claro, obrigados a ler.
Imagino que, para quase todos os colegas, ele deve ser uma lembrança amarga hoje.
Eu guardei por todos esses anos a lembrança de que em algum momento, já na década de 1980, me dei conta de que foram suas aulas e suas tarefas diretamente relacionadas à escrita e à leitura, que me situaram como escritor.
Em 1976 eu fiz um zinezinho em xerox que acabou rendendo, com amigos (grupo Canções), até 1978; em 1979 eu e dois deles fizemos nossos primeiros livros de poemas; a reação a isso e aos livros que continuei editando me localizou como escritor.
Mas eu comecei a escrever em 1972. Entender essa cronologia, para mim foi muito importante. O, digamos, elemento diferencial, que clareou o caminho, foi exatamente o professor Albanito e sua insistência feroz em nos empurrar livros para ler e temas para escrever. O contato diário com a literatura (e não só com as regras da gramática) foi o que me permitiu ter a lucidez de entender que, livros publicados e certa “vida literária”, no início dos 1980, faziam de mim um escritor. Eu era, muito ciente das dimensões exatas, como qualquer um daqueles autores que trabalhamos nas suas aulas.
Sempre digo, quando preciso contar esta parte da minha história, que, literariamente, os poemas daquela época não são mesmo grande coisa. Eu era pura intuição e influência explícita de minhas desorientadas leituras. Porém, e reafirmo agora, ter feito o que fiz e como fiz e quando fiz, foi fundamental para que o cidadão – e consequentemente o escritor – tivesse um pouco mais de entendimento sobre o que é esta praia.
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SILAS, 30 DO 2º TEMPO
Ali Ahmud “Walker” Júnior achava que tinha comido minha irmã.
Domingo, quase oito horas, chegando em casa depois de um ótimo dia de concerto no Parque e almoço com meu irmão, solitária sessão das cinco no cinema do shopping, Estamira, minha diarista, estava lá, panela no fogo. Faz parte do serviço dela fazer comida, mas não aos domingos.
– O que você está fazendo aqui, Estamira?
– Ah, seu Silas, lembra que eu falei que ia trazer o meu filho pra conhecer o senhor?
– Claro, mas hoje, a essa hora?
– Não, não. Nós chegamos mais cedo.
Aí eu notei que havia copos usados sobre a pia. Eu estava bem, mas senti um nó no estômago.
– E onde está seu filho, Estamira?
Então vem do quintal alguém que não poderia ser o filho dela: um homem baixo, gordo, cabelos brancos, vestindo uma túnica africana, cara de bons amigos.
– Como vai, senhor Silas?
Eu ia melhor antes, pensei em dizer, mas menti, olhando para ela:
– Tudo bem, e o senhor?
– Este é meu companheiro, seu Silas, Ali.
Entendi que o sujeito poderia se chamar Ali, mas não resisti:
– Ali onde?
Ele respondeu, a voz ainda mais grave e serena:
– Ali Ahmud Júnior, “Walker”, como gosta de me chamar a imprensa, ao seu dispor.
Era um nome bem estranho, mas não foi nisso que pensei. Ao falar ele deu um passo em minha direção e se inclinou, solene.
– O menino deu sono, seu Silas, e eu deitei ele na sua cama, o senhor não se importa, né?
Claro que eu me importava, minha cama não é berçário. Mas relevei. Ali continuava me observando. Era uma dessas pessoas que tentam ver sua alma, olhos quase verdes.
– E você vai acordá-lo? Vocês estão de saída? Já está tarde, Estamira.
– Senhor Silas, o senhor deve ter notado a panela.
Sim, eu havia percebido isso. Além dos copos, uma mala e uma mochila na sala. O nó apertou um pouco.
– O que vocês estão cozinhando?
– O senhor não percebe pelo cheiro? É carne, uma excelente carne que eu trouxe para Estamira.
Era verdade, cheiro de carne cozida bem temperada e quase pronta. Como eu não percebi antes?
– Sabe o que é, seu Silas?
– Que história é essa? O que está acontecendo?
Tentei parecer indignado, o que era difícil, pois eu estava muito calmo. Aos 30 anos, com quase todas as rédeas nas mãos, pouca coisa me tirava do sério.
– O senhor não deveria interromper uma mulher dessa maneira, senhor Silas, ainda mais a minha.
Ele não alterou a voz, mas estava me ameaçando. Eu e o nó sabíamos disso.
– Estamira, já é tarde. Acorda o seu filho e termina de arrumar isso. Eu trabalho amanhã cedo e preciso descansar.
– Seu Silas…
– Pode deixar que eu explico, Estazinha. Senhor Silas, pensei que já estivesse claro: nós vamos dormir aqui esta noite.
E eu preocupado com minha cama parecer berçário.
– Estamira, você tem a minha confiança, trabalha pra mim há muito tempo, mas isso está passando dos limites.
– Sabe o que é, seu Silas?
– Deixa, Estazinha, deixa, eu falo melhor que você. Senhor Silas, sabe por que sou conhecido como “walker”? Porque já rodei o mundo inteiro, conheço os cinco continentes e os sete mares.
– O senhor então é um viajante?
– Em termos: na verdade, sou um fugitivo.
Não pensei em chamar a polícia, mas lembrei o número.
– E de quem o senhor foge?
– De mim mesmo, senhor Silas. Comecei minha fuga há muitos anos, mas agora entendi que é hora de parar. Esta mulher – e pôs o braço no ombro da minha diarista – me mostrou que é tempo de começar uma nova vida.
– Entendo, mas o que minha casa tem a ver com isso?
– Não é a sua casa, senhor Silas.
Não é minha casa? Sua voz tornou-se quase maternal:
– Não.
– O que é então?
Estamira esclareceu:
– É a mulher do retrato, seu Silas.
Eu estava cansado, não muito, mas aquela situação não ajudava. Encontrar uma pessoa estranha e, pior, ter a casa invadida e ainda participar de uma conversa daquelas começava a me fazer mal. Antes de responder, tentei lembrar de qual “mulher do retrato” ela falava. Revi o quadro de cortiça da sala com as poucas fotos de amigos e escritores e o porta-retratos triplo na cabeceira da cama: meu pai e minha mãe, Julinho e um postal de Josephine Baker.
– Qual mulher, qual retrato? Do que você está falando?
– Senhor Silas, não precisa se alterar, vamos manter a calma.
Aquele sujeito estava me irritando com aquela empáfia e aquele “senhor Silas” o tempo todo. Afinal era minha casa e ele se portando como um chefe tribal africano! E ainda me pedindo para manter a calma só porque eu levantei um pouco a voz.
– Senhor Silas, a segunda mulher que amei, aquela que abriu meus olhos para a vida, com quem eu tive minha primeira relação carnal amorosa e provocou a minha vida de fugas é sua irmã.
Ele falou isso sério, de modo a não deixar dúvida que aquela era uma declaração solene e muito importante.
– Estamira, de quem ele está falando? Pelo amor de Deus, esclarece isso de uma vez.
– Calma, seu Silas, Ali é um homem muito sábio, vai dar tudo certo.
Até ela me pedindo calma! Só faltava o menino aparecer reclamando: “Vamos parar com essa falação aí, senhor Silas?”
Vi que a coisa era mais grave do que meu otimismo dominical poderia prever. Puxei o banquinho e fiz cara de quem estava pronto para ouvir uma longa história:
– Então por favor, senhor Ali, pode contar a sua história.
– Eu preferiria, senhor Silas, que evitássemos a ironia para que a noite termine em paz para todos nós.
Não disse nada. Se teria que engolir sua loucura, ele que ficasse com minhas farpas.
Alguns segundos se passaram. Eu olhava para ele e ele parecia ler seu passado no chão encardido. Até que se empertigou ainda mais e começou:
– Eu nasci pobre, senhor Silas, em um meio hostil, o que fez de mim um homem carente e lutador. A vida não foi agradável, por isso minha falecida mãezinha sempre dizia: “Alberto, estuda muito pra ser alguém.” Eu obedeci e, como sempre fui inteligente, aos dezessete anos namorei a moça mais bonita da escola, me apaixonei. Quando quis consumar carnalmente nosso amor, ela me desprezou dizendo que nunca iria para a cama com um “crioulo fedido”. Por isso tornei-me um ser revoltado e decidi conquistar todas as mulheres do mundo. Percebi que no meio teatral é mais fácil ter acesso a elas e em pouco tempo era requisitado para as melhores montagens da época. Não havia ator negro que encarnasse melhor um bom escravo. Viajei muito e supri meu desejo de sexo e vingança, de várias maneiras, com homens e mulheres. Até que conheci a sua irmã.
– O quê?
– Não me interrompa, senhor Silas, por favor. Nos apaixonamos em um navio, voltando da Europa. Durante a viagem nos amamos como loucos, trocamos até juras de amor eterno, mas ao desembarcarmos, seu marido a esperava. “Mas…”, eu tentei argumentar. “Você não acreditou que eu estava falando sério, hein, negão?” Foi a gota d´água: ali no porto mesmo a estrangulei.
As mãos de Ali Alberto tremiam, o passado estava de volta. Mas eu ainda não conseguia conectar sua desventura com “minha irmã”.
– Ali, vamos resumir.
– Já pedi para não me interromper, senhor Silas!
O sujeito começou a ficar nervoso, estava revivendo alguma coisa muito ruim e isso é péssimo numa cozinha cheia de objetos perfurocortantes.
– Muitas pessoas presenciaram a cena, mas eu consegui fugir. A partir daí minha vida foi fugir, fugir e fugir e eu não quero mais viver assim. Por isso, quando Estamira me mostrou o retrato no seu quarto, entendi que precisava procurá-lo e me redimir de minha grande e máxima culpa.
Com mil pin-up girls! Por algum motivo esquizofrênico e alucinante, aquele sujeito achava que a atriz Josephine Baker era a minha irmã que ele havia comido e estrangulado há sei lá quantos anos.
– Posso falar agora, Ali?
– Sim, é para isso que estou aqui, para ouvi-lo perdoar meu crime.
Então notei que aquele negro atarracado, aquele maluco saído sei lá de onde estava começando a chorar. Fiquei constrangido, percebi que havia sentido medo o tempo todo, mas agora sentia dó do infeliz. Estamira continuava olhando extasiada para ele, outra maluca, e o menino continuava dormindo na minha cama. Eu tinha que fazer alguma coisa para acabar com aquilo. Se eu dissesse a verdade, ele poderia me condenar por, sei lá, calúnia. Preferi dar sequência à sua história, que era até interessante:
– Em nome de minha falecida mãezinha, senhor Ali, eu te perdôo e que a alma de minha doce irmãzinha descanse em paz.
O homem desabou, jogou-se de joelhos e quase me derrubou ao abraçar minhas pernas, chorando e agradecendo. Estamira também o abraçou, os dois agarrados aos meus pés. E finalmente o menino apareceu: um garoto louro com cara de sono, chupeta na boca, arrastando um cobertor pequeno:
– Mãe? O que tá acontecendo?
Ali Ahmud Júnior, o famoso “Walker”, apenas estendeu o braço para acolher o menino, que veio devagar, me encarando com medo. Os três ficaram ali amontoados uns cinco minutos. Ele murmurava umas palavras em inglês, talvez uma reza. Até que os dois se acalmaram, se levantaram e como se nada tivesse acontecido começaram a limpar a cozinha. A carne ainda no fogo baixo.
– Senhor Silas, os deuses não se esquecerão de sua compaixão. Pode ir dormir agora. Nós nos ajeitaremos na sala mesmo, não se preocupe.
Aquilo era uma ordem. Eu estava muito cansado e assustado para desobedecer. Me deitei sem escovar os dentes, sem fazer o último xixi do dia. Antes de dormir ainda ouvi Estamira dizer: “Não te falei que ele era bonzinho? Agora dorme, Mamede, eu e o seu pai tivemos um dia muito exaustivo”.
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Sérgio Fantini nasceu em Belo Horizonte, onde reside. A partir de 1976, publicou zines e livros de poemas; realizou shows, exposições, recitais e performances.Tem textos nas seguintes antologias: Revista Literária da UFMG, Novos Contistas Mineiros (Mercado Aberto), Contos Jovens (Brasiliense), Belo Horizonte, a Cidade Escrita (ALMG/UFMG), Temporada de Poesia/Salto de Tigre (PBH), Miniantologia da minipoesia brasileira (PorOra), Geração 90, Manuscritos de Computador (Boitempo), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê), Contos Cruéis (Geração), Quartas histórias, contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond), Cenas da favela – as melhores histórias da periferia brasileira (Geração/Ediouro), 35 maneiras de chegar a lugar nenhum (Bertrand Brasil), Capitu mandou flores – contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (Geração), Pitanga (Lisboa, Portugal), 90-00 – cuentos brasileños contemporáneos (Ediciones Copé, Peru), Rock Book – contos da era da guitarra (Prumo), Coletivo 21 (Autêntica) e Aos seus pés (Annablume). Publicou os livros Diz Xis, Cada Um Cada Um, Materiaes (Dubolso), Coleta Seletiva (Ciência do Acidente), A ponto de explodir, Camping Pop (Yiyi Jambo, Paraguai), Silas (Jovens Escribas) e A Baleia Conceição (Formato). Blogue: sergiofantini.blogspot.com E-mail: sergiofantini@gmail.com
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6 fevereiro, 2012 as 10:31
6 junho, 2016 as 19:52