O formigueiro
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Quem gosta de música instrumental brasileira, com certeza escuta Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti. Ouvindo certa tarde, na rádio Jovem Pan, uma entrevista com Egberto Gismonti – isso faz tempo… –, fiquei sabendo que ele havia gravado dois álbuns duplos – na época, eram LPs de vinil – acompanhando escritores da Literatura Brasileira: o romancista Jorge Amado e o poeta Ferreira Gullar. Anos depois, ele também gravou outro projeto, dessa vez foi com João Cabral de Melo Neto.
Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto eu já conhecia das aulas de literatura durante o colegial, mas não sabia nada sobre Ferreira Gullar. Quando perguntei para a professora a respeito dele, ela disse que não se falava de Ferreira Gullar porque ele discutia a “liberdade”. Isso foi no início da década de 80, do século passado; para quem se lembra, eram os tempos da abertura política, mas ainda havia ditadura militar. Mesmo assim, a professora me deixou ler, na sala de aula, o poema Dentro da noite veloz, do Gullar. Hoje, mais de trinta anos depois, esse poema ainda continua sendo, para mim, o melhor texto de resistência ao fascismo escrito em língua portuguesa; o poema é tão bom quanto são bons os melhores poemas políticos de Bertold Brecht.
Nos versos, é narrada a morte de Ernesto Che Guevara, personagem também proibida nos livros da escola. No álbum, enquanto Egberto Gismonti improvisa, Ferreira Gullar declama – e quem já ouviu Ferreira Gullar declamando sabe como ele fala bem, compassadamente, pronunciando todos as sílabas com clareza –. Entre suas escolhas, Gullar havia selecionado Dentro da noite veloz.
Motivado pelas gravações, acabei comprando aquela que, na época, era sua obra completa – 1950 a 1980 –, editada pela Civilização Brasileira.
Este é o quarto canto de Dentro da noite veloz, justamente aquele em que é narrada a morte do guerrilheiro:
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Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora
é mais intenso, o inimigo avança
e fecha o cerco.
Os guerrilheiros
em grupos pequenos divididos
aguentam
a luta, protegem a retirada
dos companheiros feridos.
No alto,
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente
sobrevoando países
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.
Uma greve em Santiago. Chove
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.
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Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima
de Montevidéu. À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta
ou baixa.
IntiPeredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato
castigam o avanço
dos rangers.
Urbano tomba,
Eustáquio,
Che Guevara sustenta
o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe
o joelho, no espanto
os companheiros voltam
para apanhá-lo. É tarde. Fogem.
A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.
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Sobrevoando a América Latina como se fosse repórter, fornecendo, inclusive, notícia sobre a meteorologia, o poeta, sutilmente, insinua a poesia na “cabeleira azul”, atribuída ao oceano Pacífico:
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………… No alto,
grandes massas de nuvens se deslocam lentamente
sobrevoando países
em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.
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A objetividade do narrador repórter revela a luta de classes nas figuras convocadas – generais fascistas vs. guerrilhas revolucionárias –; luta que é encoberta pelo fetiche das mercadorias que movimentam o mundo capitalista – multinacionais, bolsa de valores –. Revestido pela poesia, o tema político surge como épico; Che Guevara transforma-se em mito por meio da palavra.
Meses atrás, ainda em 2015, tive o prazer de encontrar, em uma livraria, O Formigueiro, um dos poucos poemas concretos de Ferreira Gullar. Trata-se de um poema social, sua temática é política; sua forma poética, porém, é completamente distinta de poemas como Dentro da noite veloz.
Em linhas gerais, o poema todo está ancorado na frase “a formiga trabalha na treva a terra cega traça o mapa do ouro maldita urbe”. A partir do sintagma nominal “a formiga”, as letras que o formam espalham-se ao longo de 11 páginas, relacionando-se com outras letras, para, na página 12, formar a frase principal.
Eis a página 12 do poema:
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Em seguida, até o final do texto, nas demais 38 páginas, Gullar mostra como outras palavras são formadas a partir do mesmo campo tipográfico, marcando a letra inicial das palavras em maiúscula para indicar de qual vocábulo se trata. Eis dois exemplos desse processo poético com as palavras “folha” e “morrer”:
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Assim procedendo, Gullar faz com que as seguintes palavras surjam da mesma estrutura poética:
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Come
Bicho
Morto
Gente
Morta
Milho
Farinha
Açúcar
Falha
Planta
Carrega
Palha
Folha
Falha/Falhada
Capim
Vacila
Cai
Briga/Mata
Morre
a Formiga
Fabrica Urbe
o Formigueiro
Fungo
Alfabeto
Álcool
Fogo
Povo
Voo
a Formicida
Pânico
a Metrópole
Tribo
Rito
Riu
Ur
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A publicação respeitou a arte gráfica que dá forma ao poema: o livro tem formato 21×28; o poema está impresso apenas nas páginas pares, com a mancha no alto da página; enquanto objeto, é um belo livro para se ter nas mãos.
Não vou analisar o poema exaustivamente, vou me limitar a alguns encaminhamentos de leitura, alguns sugeridos e explicados pelo próprio poeta, outros, disseminados pela crítica e tradição concretistas.
Ao traçar as devidas diferenças entre caligramas e poemas concretos, muitas vezes a crítica concretista cita O Formigueiro. Em linhas gerais, os caligramas são desenhos feitos com letras, enquanto, na poesia concreta, as cores, as formas e as posições das letras devem formar um todo coerente com a semiose verbal do poema. Em O Formigueiro, as letras do poema não formam caligramas, ou seja, não formam figuras de formigas, mas estão dispostas na página como formigas, no formigueiro.
Não apenas isso, as letras não simulam apenas formigas, elas ressignificam toda a frase-poema “a formiga trabalha na treva a terra cega traça o mapa do ouro maldita urbe”. Além do mais, o poema não para na estrutura gráfica que o expressa; essa estrutura gera outras palavras, expandindo a semiose da frase principal. Nessa expansão, ao gerar palavras a partir de sua estrutura tipográfica, o poema parece “falar” com voz própria;todavia, esse processo também gera,por parte do leitor, a busca por outras palavras, além das já evocadas pelo poeta-poema.
Eu encontrei algumas: arpão, fumo, farpa, talho.
As palavras não são inocentes, elas tematizam os discursos responsáveis por suas significações.Ferreira Gullar se vale disso ao propor,entre outras, as palavras Povo, Formiga, Metrópole, fazendo com que elas derivem da frase principal; nesse processo poético, as formigas, em seu trabalho, podem ser lidas como alegorias das muitas formas de alienação social, pois trabalham nas trevas, traçando “o mapa do ouro maldita urbe”.
A frase, em sua disposição nas páginas do livro não define somente um campo tipográfico, ela define um campo semântico, em função do qual as palavras derivadas dele ganham sentido.
Por fim, um último comentário.
No prefácio da nova edição de O Formigueiro, Ferreira Gullar justifica a publicação do poema com estas afirmações: “Em que pese a pretensão vanguardista daqueles anos e os maus resultados que esse tipo de poesia obteve, precisamente por sua frieza e cerebralismo, O formigueiro, com sua forma engenhosa, busca na verdade resgatar a simplicidade do discurso poético”.
Não creio que tenha havido pretensões vanguardistas nas décadas de 50 e 60 do século passado; em países provincianos como o Brasil, onde abundam apologias de malandros e caipiras, visões de mundo vanguardistas são sempre bem-vindas. Além do mais, os resultados da poesia concreta estão longe de serem ruins, como insiste Ferreira Gullar; para muitos, e eu concordo com isso, a poesia concreta é um divisor de águas na Literatura Brasileira.
Também não creio que utilizar o cérebro para fazer poesia seja problema e nem que disso decorra, necessariamente, frieza. Artistas da importância de Bach, Schöenberg, Stockhausen, Da Vinci, Mondrian, Vasarely, Dante, E. M. de Melo e Castro, Pedro Xisto são artistas cerebrais; se, como afirma Fernando Pessoa, o poeta finge a dor que deveras sente, não há como saber até que ponto a poesia sentimental é feita antes com o cérebro para, depois, parecer “coisas” do coração.
Infelizmente, quase sempre que se fala em arte e poesia, o cérebro é expulso e tratado como órgão nocivo para a sensibilidade; todos se esquecem de que um dos maiores desastres ideológicos do século passado, a ideologia nazista, é fruto das emoções. Ao que tudo indica, o coração não pensa muito bem…
Para concluir, embora Ferreira Gullar tente afastar O formigueiro da poesia concreta, a engenhosidade do poema está, justamente, nele ser um poema concreto; contrariamente ao que diz Gullar, O formigueiro nada tem de simples, tanto que ele necessita de uma chave de leitura, fornecida no prefácio pelo próprio poeta.
Daqui a quinze dias volto para falar da poesia do Marcelo Tápia, um poeta que não tem medo do cérebro.
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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olhar; Análise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicações; Análise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SM; Irmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto foge; Palavra quase muro; Concretos e delirantes; Os tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com
20 maio, 2016 as 2:14