O Dôbro
Contei a história. Depois do ponto todos a recordavam. Tornara-se uma frase, com reflexos nas sílabas de campos profundos, cavalo em busca, o barco entre as vogais e as consoantes onde morava num descampado. Já não havia gado e era época da sêca positiva, talvez estivesse dormindo e esquecesse o deserto em volta. Imaginou-se no mesmo lugar há milhares de anos quando ainda havia grandes florestas, o elemento orgânico percorrendo em zig-zag a região sem trilhas ou caminhos, filetes secretos. Ao perder a imaginação nasceu-lhe um filho e passou a assombrar amigos ao desenhar retas perfeitas sem ajuda da régua e da memória. Lamentou a forma dos continentes e desde então intranqüilizou-se e chegou mesmo a odiar arquipélagos e nuvens. Ocultou-se do mundo sem arquitetura e foi morar numa região sem poentes e nascentes. A casa era um navio que singrava a superfície polida da infância. Mas o navio tinha a forma da casa. Num deserto sem ecos. Mas isso só na memória. A realidade era outra. Imaginar-se de volta. Perder os requintes. À natureza. Não queria mais saber se já não era o poderoso artífice das figuras geométricas provavelmente para resistirem aos ventos, às águas, coexistir com a luz e o tempo. E começou a travar-se uma luta entre o que foi e o infinito dos verbos. A língua sonora de onde as coisas de sua vida eram captadas. Ler os campos. Evitar a palavra e o passado tornar-se mais invisível, um ponto, a pedra, lugar onde o cavalo parasse, de morte pelo cansaço, já inexistente, com todas as sensações da planície, o fim do que foi escrito. Uma história recebida de diferentes distâncias e que não merece crédito. E que não vai contar. E que não viveu. Recordá-la é contá-la e imaginar-se nela, o que é apenas. Contou porque não vai contar. Tudo não é presente, não é passado que não é futuro, algo persiste e isso não está nas palavras. Esta nos campos e está em mim. Porque não vai contar, contou. No começo era um imenso a, a tal história. Sua vida. Assemelhava-se à água. Sempre em transformações. A floresta, a cascata dentro da floresta, sua vida, a floresta em tôrno. Isolado do mundo presenciou-se. Um cristalino coração de água. Uma rede infindável de riachos de água cristalina. A cascata, os baques perenes, a melodia linear nas pedras, o coração eterno. O amor à natureza, à mentira, o contador de histórias, a realidade com interrupções. Oculto nas frases que poderia não ter pronunciado. Na história do planeta de si-mesmo. Não perdi a imaginação porque não a vou perder. Mas antes foi fixá-la: fará qualquer coisa no tempo que não existe. Repetirá o que fez no futuro. Repetirá o que fêz no futuro. Ritmo. Prosseguimento. Todos nós nos escondemos. Escolhi o deserto. Escolheu a floresta. Acorde. O sonho não vem da música nem do sono. Há os que querem habitá-lo. Há os que querem habitar o outro lado. Talvez tudo seja onde nos escondemos. Durante a noite sua vida estava em todos os sentidos. O lugar era acolhedor e a água refletia as imagens. Às vezes algo acontecia, entre uma preposição, numa transferência de palavras. Podia-se avistar uma palavra olhando o texto de relance e ela ali não estava. O verbo estar não necessita ser verbo. Sua vida variava com as frases e as estações. Aprendeu a amar e chegar muito perto da origem das coisas. A casa está vazia e, sobre-além, caminhando, seu tripulante. Aprendeu a guiar-se na escuridão e na luz. Dia ou noite. Não vou contar. Nada depois do ponto. Perdemo-nos na floresta e tivemos mêdo, de onças, da noite, da falta de água. Aproximamo-nos de uma cidade de pedras estranhas vindas do núcleo da terra. Ali a água, a noite e a fauna atuaram. Ali estão gravadas as faces. A paisagem oscila entre a completa floresta e o descampado. É fácil descobri-las. Elas sorriem e não se desvendam ao crepúsculo. Em fileiras, uma face para cada um. O pio e o crocitar dos pássaros ao crepúsculo é paralelo a esse sorriso que decompõe com a noite.

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