O diretor e as pepitas
O diretor do Colégio Estadual Octávio Mendes onde Dedé estudara recepcionava os novos alunos com sabedoria e uma pitada de bom humor. Ele repetia a mesma boutade todos os anos: “Só há duas coisas que desejo que não se esqueçam. Leiam sempre boa poesia e conservem livres os intestinos”. A risada era geral.
O diretor sabia que a felicidade humana não seria possível sem um bem-estar biológico e sensório. Se os intestinos não funcionassem, a alma se constiparia e até os dias mais radiantes pareceriam como se estivéssemos em um inferno de incessantes sofrimentos.
Quanto a ler boa poesia, havia controvérsias, mas provavelmente ele dizia isso porque imaginava que nos momentos decisivos ela, a poesia, seria a única a nos confortar.
Os professores mais próximos do diretor contam que ele fundamentava durante o ano as suas ideias, entre um cafezinho e outro, relatando causos e histórias que soavam verídicas, ou pelo menos eram bem contadas.
Duas delas ele as ouvira de poetas e todos sabiam que levava mais a sério o que os poetas diziam do que aos historiadores. Os únicos historiadores que parecia respeitar eram o grego Heródoto e o marxista Eric Hobsbawn. O fato é que vários professores de história haviam passado pela escola e ele não tinha se dado bem com nenhum deles.
A primeira história tratava de uma senhora encontrada nos escombros de Bahn, a cidade iraniana que sofrera um grande terremoto.
A cidade é um desses monumentos nacionais com suas casas de milhares de anos. E ela havia sido praticamente destruída. Na poeira da catástrofe aconteceu algo que fora replicado pelas televisões de todo o país.
Os militares e bombeiros cavavam nos escombros em busca de vítimas. No terceiro dia após o abalo, conseguiram afastar os destroços e retiraram de lá uma senhora que aparentava ter uns 90 anos. Quando ela viu a luz da vida, estonteada depois de vários dias na escuridão da morte, a primeira coisa que fez foi declamar algo que parecia ser um poema.
Os bombeiros ficaram estupefatos. O que ela estaria dizendo? Só poderia estar variando. Um deles conseguiu discernir o que ela cantava com seu fiapo de voz. A senhora recitava um poema da tradição persa, que versava sobre a maravilha do universo e de estar viva.
A segunda história narrava o último escrito público do filósofo pragmático Richard Rorty. Ele havia passado a vida toda pensando e escrevendo sobre a elaboração da linguagem e do pensamento. Chegara a afirmar que dizer que o mundo está ‘diante de nós’ significava dizer que o mundo não é uma criação nossa, que a maior parte das coisas no espaço e no tempo seriam efeitos de causas que não são estados mentais do homem. A ‘verdade’, porém, dizia ele, não estaria diante de nós. Ela só existiria onde há linguagem, onde há a criação e o engenho do homem.
Rorty havia sido diagnosticado com um câncer terminal e, em suas últimas semanas de vida, sentia que gostaria de ter passado mais tempo com alguns versos de Swinburn que agora borbulhavam em sua memória como pepitas.
Seu filho, ao ouvir isso, fica pasmo e lhe pergunta se a filosofia não havia lhe servido para nada, se não lhe oferecia nenhum conforto neste momento. Rorty diz placidamente: ‘Não, nada’.
Enquanto seu filho coloca mais café em sua xícara, o filósofo recita com sua voz monocórdica uma das pepitas afloradas:
Agradecemos brevemente / A todos os deuses que há / Por não se viver para sempre; / Por jamais os mortos se erguerem; / Por chegar, por mais que volteie, / O rio sem dúvida ao mar.*
Dedé recordava de tudo isso ao ler o e-mail sobre o velório de seu querido diretor do colégio. A notícia de sua morte embaçara a leitura e tudo perdera a sua forma definitiva. Depois de tantos anos, aprendera muitas coisas. Algumas pelo estudo, outras por tentativas e erros. Além, ou aquém a tudo, o ouro das palavras do diretor reluzia em sua memória e, ao invés de submergir, erguia-se como um deus imortal.
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*Tradução de Antonio Cicero.
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Edson Cruz é escritor e editor do portal MUSA RARA (www.musarara.com.br). Graduado em Letras pela USP, publicou quatro livros de poesia, uma adaptação em prosa do clássico indiano Mahâbhârata e um livro de depoimentos sobre o que seria a Poesia. Seu livro Ilhéu (Editora Patuá) foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014. Em 2016, lançou O canto verde das maritacas (poemas, Editora Patuá). E-mail:sonartes@gmail.com
6 março, 2018 as 21:39
6 março, 2018 as 21:40