O canto verde das maritacas
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Das coisas que herdamos dos nossos pais, herdei o álbum duplo – dois LPs – Histórias da música popular brasileira, de Silvio Caldas, ao vivo. A música de abertura é o samba Onde o céu azul é mais azul, da autoria de João de Barros, Alcir Pires e Alberto Ribeiro:
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Eu já encontrei um dia alguém
Que me perguntou assim, iá, iá,
O seu Brasil o que é que tem
O seu Brasil onde é que está?
Onde o céu azul é mais azul
E uma cruz de estrelas mostra o Sul
Aí, se encontra o meu país
O meu Brasil grande, e tão feliz
E tem junto ao mar palmeirais
No sertão seringais
E no sul verdes pinheirais
Um jangadeiro que namora o mar
Verde mar, a beijar brancas praias sem fim
Quando baila o ar
Um garimpeiro que lá no sertão
Procura estrelas raras pelo chão
E um boiadeiro que tangendo os bois
Trabalha muito prá sonhar depois
E se é grande o céu, a terra e o mar
O seu povo bom não é menor
Mas o que faz admirar
Eu vou dizer guarde bem de cor
Quem vê o Brasil que não tem fim
Não chega saber porque razão
Este país tão grande assim
Cabe inteirinho em meu coração.
Embora não seja tão famoso quando Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, ou Aquarela Brasileira, de Martinho da Vila, quando se trata de sambas de exaltação do Brasil, eu prefiro Onde o céu azul é mais azul.
Quase todo nacionalismo é burguês; boa parte dos valores nacionais servem, predominantemente, para encobrir a luta de classes e alienar o proletariado. Os sambas mencionados podem ser lidos assim, principalmente aquele que eu prefiro. Nesse samba, todos os brasileiros são felizes; jangadeiros, garimpeiros e boiadeiros dividem o paraíso e suas riquezas; não há conflitos, não parece o mesmo Brasil da prosa de Graciliano Ramos. O samba lembra mais utopias católicas do que a terceira internacional.
Contudo, em épocas de imperialismos culturais, valores nacionais, dialeticamente, podem ser convocados para resistir. Nessa resistência, a utopia do samba citado bem que poderia ser a utopia socialista, em que o homem, regido não mais pela exploração do trabalho alheio, vive em harmonia e pacificamente com a natureza.
Hoje vou falar do poeta Edson Cruz e de seu novo livro O canto verde das maritacas. A capa do livro é verde, os pássaros são maritacas… seria Edson Cruz um poeta nacionalista? Se nacionalismo for fazer apologias de jagunços e bandoleiros reacionários – Lampião e padre Cícero combateram a Coluna Prestes –, de beatos fanáticos – o Antonio Conselheiro apoiava a monarquia –, fazer peças de teatro de valor bastante discutível, valorizando tudo isso sem o menor senso crítico – Ariano Suassuna apoiou a ditadura militar – … desse tipo de nacionalismo, certamente, o Edson Cruz está bem distante!
Na poesia do Edson, o nacionalismo transcende a apologia de estereótipos regionais para se concentrar, talvez como nenhum outro poeta contemporâneo, no papel político da língua portuguesa. Para verificar isso, vale a pena ler o poema Lágrimas:
Ano Bom Arzila Ormuz Azamor
Ceuta Flores Agadir Safim
Tanger Acra Angola Mogador
Aguz Cabinda Cabo Verde Arguim
São Jorge da Mina Fernando Pó
Costa do Ouro Portuguesa Zanzibar
Melinde Mombaça Moçambique
Guiné Portuguesa Macassar
Quíloa São Tomé e Príncipe Mascate
Fortaleza de São João Baptista de Ajudá
Socotorá Ziguinchor Bahrain Paliacate
Alcácer-Ceguer Bandar Abbas Cisplatina
Ceilão Laquedivas Maldivas Baçaim
Calecute Cananor Chaul Chittagong
Cochim Cranganor Damão Bombaim
Dadrá e Nagar-Aveli Damão Mangalore
Diu Goa Hughli Nagapattinam
Coulão Thoothukudi Salsette Masulipatão
Surate Nagasaki Timor-Leste
São Tomé de Meliapore Mazagão
Malaca Molucas Guiana Francesa
Nova Colónia do Sacramento Bante
Brasil
Macau
Portugal
Oh sal que corrói a pele de nossas almas.
Vou fazer uma lista de tudo que acho muito bom nesse poema:
1) antes de tudo, listas são legais; fazer listas agrada a muitos artistas. Peter Greenaway é um mestre em fazer listas – obsessivamente, quase todos os seus filmes são baseados nelas –; na pintura, Pieter Bruegel e Giuseppe Arcimboldo fazem coleções de imagens; na MPB, Lenine compõe, muitas vezes, fazendo listas; Lágrimas, do Edson Cruz, é uma lista de palavras. Uma lista não é apenas uma ordem de coisas; ela expressa um fazer seletivo, as listas são escolhas. Toda lista define um campo semântico; esse campo é construído nas relações entre seus membros e os critérios que os unem.
2) quando poemas são listas, elas são feitas de palavras; palavras têm expressão acústica; alinhadas em versos, elas se realizam via prosódia; na poesia, a prosódia é o próprio verso. Em outras palavras, além de seus significados, versos formados por listas de palavras são fluxos sonoros; a lista de palavras é também um poema sonoro.
3) fluxo de ideias, mas também fluxo entoativo, o poema reflete, antes de tudo, sobre a língua portuguesa naquilo que mais a caracteriza linguisticamente: sua fonologia, o nível da língua que transforma a prosa em poesia. Leia Lágrimas em voz alta só para ouvir a língua portuguesa!
4) trata-se da lista dos lugares por onde os portugueses espalharam a língua portuguesa no mundo; o poema nos dá uma dimensão política a respeito de nossa língua que nunca vi em nenhum panfleto nacionalista. Em seus versos, Lágrimas pergunta a seu leitor: “você sabia disso?”
5) estabelecendo uma tensão entre sua dispersão enquanto língua e os motivos políticos responsáveis por isso, o último verso é uma alusão ao poema Mar português, de Fernando Pessoa:
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Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
6) em Lágrimas, Portugal deixa de ser o centro linguístico para se tornar mais um falante da lista; o sal que nos corrói é a língua portuguesa.
7) em Lágrimas, a pátria não é simplesmente a língua – isso seria mais uma frase de efeito, outro estereótipo –; as palavras da lista são lugares, todos eles dispersos pelo planeta; portanto, são culturas distintas. Muitas pátrias, ao que tudo índica, sem as devidas noções políticas e semióticas da mesma língua.
A lista poderia continuar, mas ainda quero comentar outros poemas do “Canto verde”.
Dos poemas concisos do Edson Cruz, escolhi cinco – os três primeiros não têm título –:
Sabiá trinando.
Parece que a vida toda
carmim se aveluda.
Zunido de cigarras.
Infância estourando
meus tímpanos.
As copas das árvores
varrem as nuvens do céu.
Bafejo de zéfiro.
BUDA
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Um tigre de ternura
com o Sutra do Lótus
em riste.
PSIU DE LUZ
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Milagres latejam
na noite escura.
Vaga-lumes
dando um rolê.
Se no primeiro poema – “sabiá trinando” – Edson se vale de uma figura recorrente no imaginário brasileiro, que aparece em poemas e canções quase sempre significando a brasilidade, nos demais poemas isso desaparece. Os títulos de seus livros – Ilhéu, Sortilégio, O canto verde das maritacas – remetem ao Brasil, muitos de seus poemas são revestidos por pessoas, tempos e espaços brasileiros, mas sua militância pela língua vai bem mais longe, valendo-se do português para falar de outros temas, entre eles, o budismo. Nesse budismo em língua portuguesa, o sabiá do primeiro poema é levado para dentro do haikai; sua significação é renovada quando, ao se tornar parte desse imaginário poético, afasta-se do já tão mencionado passarinho das arengas nacionalistas.
Outro tema caro ao Edson Cruz é o tempo e sua passagem. Edson não luta nem se revolta contra a morte, ele negocia com o tempo, não como Fausto, trocando sua alma por simulacros da juventude, mas desviando-se dela, olhando-a de soslaio para mirar outras possibilidades, vivendo outras mitologias:
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RELÓGIO DE AREIA
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Meu filho de três anos
adora manipular ampulhetas.
Observa atentamente o relógio
de areia
como quem assiste à dissolução
de um império.
Ele é o senhor do tempo
e nem imagina o quanto
me faz barganhar
com Tânatos.
ZOOM
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Carpe diem.
A vida é
curta.
Carpas riem.
O azul do dia
zune.
O céu refletido
nas águas.
Lume.
OVO
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como voltar a um lar
que nem sequer existiu
fazer o movimento pendular
recuperar a mãe
que me pariu?
Por fim, é preciso falar de outra face de sua militância a favor da língua portuguesa: Edson é o responsável pelo espaço da Musa Rara, ele concebeu e mantém o site. Suas passagens pela internet não são recentes, ele também concebeu e editou o site Cronópios e a revista Mnemozine, essa última junto com outro militante das Letras, o Marcelo Tápia.
Já que você, leitor amigo da poesia, está por aqui, consulte as páginas do site e, mesmo rapidamente, encontrará várias pessoas que o Edson hospeda na Musa Rara – só colunistas, há 28 ensaístas e escritores –, todas dispostas a encampar a mesma luta. Também disposto a promover o diálogo, a Musa Rara não é porta voz de apenas uma vertente da crítica e da poesia em língua portuguesa; ao compor o site, Edson tomou o cuidado de convidar várias correntes de pensamento, distanciando-se dos gostos unificados, sempre estranhos à criatividade.
No Brasil em que pastores dão golpes na receita federal em cada esquina, mas presidentes golpistas não se incomodam em fechar o Ministério da Cultura, resistir ao fascismo pode ser bastante custoso; poucos estão dispostos, como o Edson Cruz, o Eduardo Lacerda e o Vanderley Mendonça, a financiar projetos e investir em livrarias, editoras, sites…
Em nosso próximo encontro, vou falar da poesia de um grande amigo, o Paulo César de Carvalho, e de seu livro Amor: uma palavra & muitas letras.
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Visite meu site http://seraphimpietroforte.com.br/
Se você gosta de histórias em quadrinhos, conheça o Pararraios Comics, visite o site www.pararraioscomics.com.br
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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olhar; Análise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicações; Análise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SM; Irmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto foge; Palavra quase muro; Concretos e delirantes; Os tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com
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