O abraço dos cegos
Olhar para fora, à procura de um sinal que nos liberte de nós mesmos, às vezes é olhar para o mais opaco dos muros. Sim, existe uma clausura, um limite de chumbo imposto às intenções de sairmos de nós. Mas tão forte quanto a clausura é o desejo de fugir dela. Esta urgência de libertação só passa despercebida aos outros porque todos nós sofremos um treinamento social ininterrupto para ignorar-nos mutuamente com cuidado e cumprimo-lo à risca, pagando muito caro em solidão por isso.
Por esse desejo desesperado de escapar, muitas loucuras são cometidas (e muitas delas em nome do amor, que é a forma mais usual de a gente se arremeter contra o muro, na esperança de rompê-lo). Munindo-se de lucidez, um filósofo pode atacar o problema com mais honestidade (e desconsolo). Mas abordar a clausura, mesmo com a inteligência mais clarividente, não implica em extirpá-la e sim em revolvê-la sob todos os ângulos sem nunca atingir seu mais íntimo mecanismo de sombra.
O fato é que somos universos a anos-luz uns dos outros e, quando nos roçamos, a faísca que se produz é no mais das vezes atrito, não harmonia. Esta é a origem do culto da solidão preconizado por Proust, Virgínia Woolf, Clarice Lispector – a perplexidade de que um homem nunca se sintonize adequadamente com o outro, a estupefação com o fato de que não nos assemelhemos a ninguém e de que todas as relações sejam uma espécie de compromisso forçado para o espírito, uma opressão bem ou mal disfarçada. É duro olhar para o fundo de nós e notar que temos bem pouco em comum com quem quer que seja. Afinidades são constituídas em grande parte por complacências.
No entanto, não há saída pelos fundos, nossa solidão não nos pode conduzir senão a ela mesma. O salto para o Outro é a coisa mais desejada e evitada do mundo. Vivemos por um triz do conhecimento recíproco, mortos de curiosidade pela incógnita alheia, mas o “triz” é minado por obstáculos de toda ordem. Há bom senso demais apartando-nos da salvação. E ela não surge pela introspecção, pela auto-análise, escavação exaustiva de um solo morto. O eu sozinho é território franqueado a todos os delírios da vaidade, todas as bizarrices de uma falsa onipotência erigida no vácuo faminto. Por outro lado, uma vida social intensa é o meio mais seguro para não se chegar a lugar nenhum.
Mas se estamos no caminho mais escuro, se somos apenas treva pura e presunção, será forçado acreditar que tamanho breu não pode existir sem sua contraparte lógica de claridade? Deve haver promessas secretas em nosso interior; do contrário, não sobreviveríamos, não duraríamos tanto neste lugar que, convenhamos, é o deserto. Percorrer este deserto é a nossa missão, mesmo que não a aceitemos por longo, longo tempo. Conscientemente, só temos infinitos de areia, pedra, cacto, sol absurdo e, a certa altura, até as miragens nos faltam. Tudo não passa de um projeto ou uma ânsia, mas nos impele a, cegos, tatear, tatear indefinidamente.
Um dia tatearemos não pedra, espinho e pó, mas algo finalmente humano: um rosto. Aos poucos, roçando-o, arranhando-o, apalpando-o na obscuridade, movidos mais pelo antigo desejo do que por qualquer certeza, adivinharemos: é o rosto de outro cego. E o que ele fará, por seu lado, também será apalpar-nos, roçar-nos, arranhar-nos, adivinhar-nos. Assim, exaustos e reconhecidos, rosto a rosto, acabaremos abraçados. Não curados da cegueira, mas finalmente redimidos por outra espécie, totalmente imprevisível, de visão.
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