Noites domésticas
Põe os meninos na cama, acende a luz do abajur. Hoje não contará histórias, talvez amanhã; amanhã, sim. Beija os três como quem cumpre algo sem estar presente;é um tronco curvado, pernas pesadas, braços sem vida; é apenas seu corpo que ainda está ali, um corpo sem cabeça, a cabeça há muito foi para outro canto. Um canto de descanso, murmúrio de água límpida de uma fonte, galhos em vários tons de verde dobrando-se em volta, a liberdade de fazer o pensamento passar por ali e beber dessa água murmurante para depois seguir.
E o pensamento segue, mas não para o lugar que ela pretendia. O pensamento faz um desvio inesperado, e adentra com pequenas variações por caminhos que ela certamente reconhece, o caminho de uma espécie de dor que não era, absolutamente, o que pretendia agora. Justo depois de beber água tão limpa. Justo depois de tanto cansaço. Não hoje; hoje ela não queria. Como se não soubesse que pensamentos não são filhos que obedecem. Como se tivesse esquecido que a pensamentos não se pode dizer hoje não, amanhã penso nisso. E é com certa avidez que ele a leva para um lugar qualquer meio obscurecido do passado, um lugar que é também uma fonte, uma fonte que é quase um beijo.
Mas ela não quer essa fonte. Não quer esse beijo.
Não quer pensar em possibilidades de vida que não foram. Não quer se ver sentada no muro, pernas perebentas, olhando meninos nadando na piscina. As crostas das perebas inflamadas formam um desenho bizarro na pele suja de criança em final da tarde; se ela coçar, sangram. A crosta branca do muro tem vários pedaços descascados onde aparecem os tijolos marrons e duros como lixas. Arranham seu joelho. Não chega a sangrar mas o arranhão lateja vermelho, e seus olhos ardem de sentimentos que ela não discerne bem: raiva, vergonha, vontade de matar alguém; de ser má. Só por causa das perebas que odeia, dos tijolos como llixas, ou do puro e simples cansaço?
Decide tomar um banho quente. Banho de banheira, demorado. Os filhos dormem, o marido fuma na varanda, o silêncio da casa completasua aparência noturna, como se barulho e silêncio fossem os móveis mais perceptíveis da sala, da cozinha, e do quarto das crianças à luz do dia ou como agora, na sombra.
Abre a porta do banheiro. A desarrumação razoavelmente normal nos finais do dia quase a desanima. Para um pouco, respira fundo. E de um só impulso recolhe as roupas, passa o esfregão no azulejo molhado, ajeita um pouco tudo, abre as torneiras da banheira,espreme o tubo de onde sai a gosma amarelenta do sabonete líquido de ervas aromáticas. Tira o vestido solto, a calcinha, o sutiã, levanta o tampo da cesta de roupa suja e coloca tudo como um embrulho só. Determinada, entra aos poucos na água tépida do seu banho de espumas. Não é uma fonte, mas é o que tem por hoje. Um banho que equivale a uma aromaterapia, segundo a propaganda no rótulo do sabonete.
Encosta-se na borda da banheira branca, fecha os olhos e seu pensamento por fim chega aonde ela queria chegar desde o começo da noite: ao nada.
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Maria José Silveira nasceu em Jaraguá (GO), mora em São Paulo, mas já passou por Nova Iorque, Paris e Lima. É formada em Comunicação (Universidade de Brasília), em Antropologia (Universidad Nacional Mayor de San Marcos – Lima, Peru) e mestre em Ciências Políticas (pela Universidade de São Paulo). Em 1980, fundou a Editora Marco Zero, da qual foi diretora até 1998. Maria José ainda trabalhou como editora na Cosac&Naify. Estreou como escritora em 2002 e já obteve vários prêmios. Começou inventando histórias com os personagens da Emília, Narizinho e Pedrinho para a “Revista do Sítio do Picapau Amarelo”. Mas foi com seu romance de estreia, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, que recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes como escritora revelação, ganhando o mercado e o reconhecimento de seus pares. Além de escritora, ela é tradutora. E-mail: mariajosesilveira@terra.com.br
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