Natal Solo
Nunca me esqueço do choque que senti na primeira vez em que pensei no infinito. Não foi bem pensar, refletir, verbos esses da racionalidade ocidental, que me chegam agora, como sempre, verbos que eu não sabia manejar então. Lembro: minha racionalidade engatinhava, e eu tentava traduzir palavras em conceitos. Infinito, a palavra. A tentativa não rendeu conceito, só sensação. Sensação de me rachar inteira para tentar comportar um todo que não me cabia. O verbo ser ficou dependurado no borda do abismo: infinito é… Só o eco repetia. Então — digo eu agora, e não então —, o que se deu foi um intuir, ou talvez nem tanto. Foi mais um pressentir misturado a ressentir. Um (p)ressentir de algo imenso e sem nome. Rendeu-se um choque, palavra esta, a única, que me coube. Pois um raio se despejou no meu cocuruto, e o (p)ressentimento calou (no sentido de descer e de silenciar), atravessou-me garganta, peito, abdome. Coisa indescritível. E assim é que agora preciso de um mundo de palavras para tentar contar o que na verdade deve ter durado um átimo, se muito. Choque: sensação de impotência por não comportar o todo. Fulminada eu me percebi, e acolhi o fato, ou melhor, o fatum que, intuí, jamais entenderia.
Minha idade? Sete anos.
De assim profundos (p)ressentimentos é e será sempre feita toda infância.
Incompreensões outras, mais rasas, me perturbaram também, mas nem tanto. Coisas não insolúveis para qualquer simples mortal, menos para mim. Coisas como, por exemplo, senos, cossenos e operações correlatas, além do postulado de que só enxergamos uma face da Lua, a iluminada.
Demorei a entender esse fenômeno. Pensava nisso naquela noite de Natal, pensava nessa faceta da minha infância, olhando os paralelepípedos de uma rua do centro da cidade, centro abandonado em noite de Festa, rua erma. Infinito? Andava esquecida dele, largado no fundo escuro acima das lâmpadas da cidade. Olhava os paralelepípedos que me mostravam, um por um, só sua face iluminada, reluzente sob a luz dos postes. Compreensíveis paralelepípedos, enfiados no chão sujo, a darem só uma face a bater, para todo o sempre de sua existência de reles calçamento, a mostrarem só a face lisa, escovada e cinzelada pela vida que transita por cima, pois escondidas e condenadas ficam as outras todas faces, fuliginosas, promíscuas, a se entredizerem redundantes nas funduras do solo, por entre rachas e sujeira. Assim cismava eu, porque cismar é estabelecer um elo entre o compreensível e o incompreensível, de modo que os dois se enlacem. É assim que muitos dos que não compreendem nada acabam (pré-)sentindo tudo.
Sempre. Sempre é outra palavra que, pensada nua e pura, deixa a alma transida. O sempre do chão, do céu, do cimento das paredes, do vidro das lâmpadas era uma bofetada em meu rosto provisório.
24 de dezembro, e eu esqueci: a cidade do trabalho fica deserta, eu não sabia. Fui lá, aos paralelepípedos, procurar o mesmo bar, o mesmo café, o mesmo jazz das noites boêmias para não me encontrar sozinha, e me encontrei… Como não saber que na noite de todo 24 de dezembro o dono fecha o bar para cear com a família, o garçom vai tomar champanhe em outro lugar, os músicos do jazz enfiam os instrumentos nos estojos? Como não lembrar que noite de Natal é aquela em que a cidade não trabalha, porque abrir o bar, servir às mesas, tocar saxofone, tudo isso é trabalho?
Olho os paralelepípedos com vontade de me sentar no meio-fio para descansar e ter a privança desse chão que eu sempre só olho do alto de minha medíocre estatura. Mas não me sento. Um som se faz ouvir, o único, além do ronco dos motores na avenida mais próxima, roncos esparsos nesta quase meia-noite santa. Além do som de meus próprios passos, ouço um apito, um sibilo quem sabe, um arrasto talvez de folha metálica, qual? Não vejo nada, ninguém. Uma fileira de lojas fechadas, janelas cegas, recintos surdos, ninguém poderá ter feito barulho nenhum, devo estar delirando, melhor ir embora, desmedir a distância que me separa naquele ermo sonambúlico de uma sala qualquer, onde ao som de implacável jingle bells as pessoas se felicitem com taças de vidro cheias de sidra, sorriso congelado na cara, palavras ferreteadas na língua, um antro, que seja, onde meus ouvidos adultos se atulhem de gritos infantis que não dei quando era hora… Qualquer coisa serviria nesse momento em que eu saía, levando-me abalada para a casa vazia de onde me enxotara uma hora antes, abalada como qualquer um que não encontre o desejado no lugar em que o deixou.
Entrei em casa. Não, não estava lá também o corredor de quintal onde na manhã de todo 25 de dezembro começava, sempre, a ser montada com portas velhas e cavaletes a mesa que receberia a comilança de primos, tios, cunhados, irmãos, genros, noras, sogros, enfim o espectro inteiro dos complexos entrelaços que constituem a taxionomia de toda família. Não estavam lá seus sons nem seus cheiros. Lá não. Estavam no não-lugar infinito da memória, esse deslugar que se realiza como um raio em céu preto quando sonhamos, quando nos levamos de volta àquilo que não está onde deixamos. Talvez por isso eu tenha me enganado tanto, indo buscar onde não estava a festa que não me esperou, da qual me desgarrei aos sete anos, quando, sentada perto da cabeceira daquela mesa de corredor, esperava a chegada de meu pai a me trazer a boneca do Natal. O almoço nunca tinha sido servido sem ele. Mas ele não vinha. O tempo passou, devagar, mas passou. Quantos primos já relambiam os dedos com restos de asas de frango, quem era mesmo que já trazia a salada de frutas, como eram os inextinguíveis ruídos chochos e desenxabidos de todo fim de festa, quem era mesmo o rebento que cortava esse sussurro apagado da frustração muda com o estrépito de choro sonolento, quando ele chegou? Quem abriu o portão para ele entrar? Tudo isso se perdeu. Ficou a ausência do presente. Ele também não tinha fome. Esperamos à toa, chorava quase minha mãe. Ele está bem tocado, já bebeu bastante, dizia ela pelas costas daquele que, sumido já nas entranhas da casa, sem dizer nada, decerto buscava um colchão onde arriar a carga do álcool cansaço.
Não, não está mais lá, onde deixei, o corredor espaçoso onde todo dia 25 de dezembro…
Mas outro ruído vem chegando. Esse, lá da rua. Vozes: um canto desencontrado, um coro desvertebrado, desacompanhado por tamborins pusilânimes. E o som é um zunzum que vira batuque que vem de descanto em descanto, virando algazarra, já quase retumbando debaixo da minha janela. Vou até ela e a escancaro. Pela rua abandonada, sob a luz dos postes, um magote: homens e mulheres saídos de um nada de escuridão, de não sei que baixios de semibarro, passam desfilando, cordão molambento a cantar um sambinha de Noel para a noite, para si mesmos, num pré-carnaval sonolento, um cacho de solos juntados à pressa, um feixe de solidões, um grumo de festejo insano e esfarrapado que passa e depois se impregna no tecido infinito de uma noite de Natal.
A única janela aberta é a minha.
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Ivone Benedetti nasceu em São Paulo. Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo. Ali também defendeu tese de doutorado em 2004, pelo Departamento de Letras Modernas, Francês: Charles d’Orléans, tradução de uma poética, em que fez um estudo da obra desse poeta medieval francês e da tradução de sua poesia. É tradutora e escritora. Trabalhou para várias grandes editoras brasileiras, entre as quais WMF Martins Fontes, L&PM, Objetiva, Paz e Terra, Estação Liberdade, além de vários institutos e fundações: OSESP, Tomie Ohtake, Bienal. Pela WMF Martins Fontes integrou a equipe de produção de vários dicionários, entre os quais o dicionário Martins Fontes de italiano-português. Em 2009 estreou como ficcionista, lançando o romance Immaculada, pela WMF Martins Fontes, que foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010, categoria estreante. Em 2011 lançou o livro de contos Tenho um cavalo alfaraz, também pela WMF Martins Fontes. Tem contos publicados na revista Cult e no jornal Rascunho. Está em fase de finalização o seu segundo romance, ainda sem título definido. E-mail: ivonecbenedetti@gmail.com Site: http://www.ivonecbenedetti.com.br/
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16 janeiro, 2013 as 2:12