Na escada
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No alto da escada teve coragem para começar o fim. Já não podia ser, entre eles. Não se formava uma imagem quando queria pensar nos dois juntos. ‘Havia outro’, disse. Não que ele não soubesse. Mesmo assim a reação foi brutal. Ele agarrou com as duas mãos o corrimão da longa escada em L, que veio inteiro ao primeiro puxão. Como se tivesse levantado o dorso de um enorme animal, de uma proto-lagarta, os pregos-patas visíveis na parte inferior da barriga desnuda. Foi então que o terror a levou a negar tudo.
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Não tivera todo esse terror quando dias antes ele apontara a arma para ela. Ao contrário, enfrentou-o; desafiou-o a atirar, que estava disposta a enfrentar esse fim, tudo para que ele soubesse – para que ela soubesse – que pertencia a si mesma. Ser de si mesma é o que seria a qualquer preço. Ele então se acovardara – deixara que tomasse corpo por inteiro a covardia que era da sua natureza, coisa feia de se ver, como a barriga da lagarta. Todo aquele medo não a fazia, entretanto, querer pensar num futuro como fora o passado. Não formava imagem. Há muito saltara à frente de si mesma. Vivia ali numa espécie de limbo, esperando o tempo de viver.
A inevitabilidade de esse acontecer assim por essa forma surgira de um lugar incerto. Nele nela, num quando e circunstância que antecipava os dois. Nascera n’algum estranho, desarvorado mito. Não era, portanto, como se jamais tivesse duvidado de que aquilo era preciso. Da necessidade, da inevitabilidade, daquilo, é o que digo. Pensar pensava, e pensava mais ainda, sobre se era preciso, se era inevitável e necessário que viesse a ser. Ou não, se não era nem necessário, nem inevitável nem preciso. Passava assim os dias a equilibrar-se, ou desequilibrar-se, no mesmo pêndulo. Era ou não era, evitável, inevitável, certo ou errado, normal ou absurdo, preciso. . .impreciso. Totalmente impreciso, é o que era. Mas vinha, sim, viria, assim mesmo, tanto que veio.
Porque até então nunca lhe ocorrera que não era necessário ser necessário. Não era preciso. Nunca lhe ocorrera que tudo o que ela tinha de fazer era querer, e então decidir e em seguida agir. Querer sim, talvez fosse necessário. Mas precisava de uma inevitabilidade só pra se livrar da culpa. Boba, como se algum dia alguém pudesse se livrar de culpa. Nada era necessário, nada era preciso. Inevitável só a agonia de se ver só, só, completamente só diante do que vinha, sem ter quem lhe dissesse “você não tem saída, o que vai acontecer é necessário e preciso”.
Ela então moveu a primeira pedra. Deu partida ao acontecer. Primeiro o homem veio de longe só para vê-la, enfrentando tempestades e precipícios. Tinha sido muito bom pensar nele vindo de tão longe, a neve fustigando o para-brisa do carro, as correntes que tivera que prender às rodas para evitar derrapagens. Havia algo de dramático nisso. Algo de ousado e trágico e austero mostraria a ele, a ele, que era de si mesma, que se pertencia. O mundo de repente ganhava consistência, era uma bola de sorvete verde num cone, sabor de hortelã e menta que lhe gelava as faces por dentro. Era bom. Eppur si muove, pensou, se tu tens vontade, e mais ainda, se tu tens coragem. E se tu fazes, emendava o pensamento.
Então calma. Tinha que voltar a pensar agora em por que se encontrava ali, à espera do homem da neve. Tinha que lembrar e estabelecer a razão exata. Finalmente pensou. Era a diferença. Era o outro. Não podia ser mais, com o apenas um. Nem viveria com o desconhecimento do outro. A diferença, a pura e simples diferença. Ninguém nunca ter visto algo diferente do que sempre vira, ou via, não podia ser. Mas isso não lhe acalmava o coração. Parecia estar solto, dentro do seu encaixe de ossos e agitava-se, como lebre que quisesse desembaraçar-se e correr na campina.
Até aquele ponto ainda poderia recuar. Mas não, o que faria com a diferença? Não ter nunca visto algo diferente do que sempre vira, ou via, não podia ser. Nunca ter visto, nem experimentado. Não que esperasse que outro fosse tão diferente assim capaz de fazer uma enorme diferença, capaz de criar um fato totalmente novo. Não era como se tivesse chifres, ou coisa assim, radicalmente diversa. Era simplesmente o ser outro. Ela ia introduzir a novidade absolutamente escandalosa de um outro. Que a faria ser e além, ser de si mesma. Daí a lógica, finalmente – a existência do outro, a imagem do outro, a visão do outro. A visão do outro, sim, por que até então jamais havia sido vista por outro, a ponto de duvidar se existia.
Agora estava exausta. Não só pelas providências. Mas pelas longas horas que passara como se na sua cabeça um menino e uma menina jogassem peteca. Arremessavam a peteca de um lado a outro. A peteca desse jogo não caía nunca, peteca vai peteca vem. Era desesperador. Era uma forma de não acontecer? Era uma forma de não vir a ser? Era um pensamento enredado nos próprios saltos, embaraçado neles. Por isso dera esse passo, e saltara, para fora dos saltos, para fora dos laços.
Mas claro que havia sofrido a influência do tempo em que vivia, tempo em que tudo acontecia. Menos a ela. E o que via era a si mesma como alvo de risadas – olha a boba, olha a boba, enquanto todo mundo já fazia tudo por aí, e todo mundo já vira quase tudo. Ela pensando que estava à frente de seu tempo. Ela somente, nem fizera nem vira, a não ser a si mesma quando se punha a se olhar de fora de si. Quando retrocedia um passo e via somente a si mesma, a mesma de si mesma, a mesma de ontem, a mesma, quase, de quando nascera. Não! Desprezava aquela imagem. Havia de ter outra. Assim não era, nem se pertencia. Era preciso fazer. Fazendo, escreveria. Seu destino, sua vida. De repente atrapalhava-se com o que vinha antes, o escrever ou o viver. Bem, não havia tempo para pensar nisso. Esse não era um tempo de reflexões. Era um tempo de júbilo. Era o tempo em que seria.
Aconteceu enquanto viajavam, o que explica a neve e todo o resto. O lado prático das coisas não fora tão difícil! Contou com ajuda. E o principal interessado, além dela, ficara interessadíssimo, a ponto de viajar, quilômetros e quilômetros na neve espessa para encontrá-la. Ela orgulhou-se da imagem que tomava forma, um homem singrando a neve em demanda dela, os pneus do carro amarrados por correntes, o risco dos despenhadeiros. O vento implacável, talvez chegasse a cinquenta milhas por hora – assinalava a sublimidade dos acontecimentos. E era tão inevitável que já trazia o desejo do outro engajado, como um carro que tráz atrás engatado um bagageiro. Os acontecimentos perfilavam-se, belos, notáveis, como se atravessassem um desfiladeiro. E tudo começara com um simples imaginar. Pensando, apenas. Depois uma pequena gota do pensado saltara para fora do seu leito próprio do pensar, fora daquela exata trilha, daquele tedioso e previsível jogo de petecas, fora colhido pelo mundo, armava-se em trama, conectava outras vidas. E eis que ali se encontrava ela protagonizando acontecimentos impensáveis, eventos imponderáveis, ocorrências imprevisíveis. Que poder começava a ser o dela, ela pensava, continuando a pensar, sempre.
Bem, enfim chegava o dia. E era chuvoso. Apropriado, pensou, aquela chuva fina, mas densa, o ar saturado de certa bruma, as árvores, a relva, a estrada que se desenovelava e grudava ao solo como uma serpente chata, aplainada, a perder de vista. E foi encontrá-lo na outra cidade – Eppur si muove, enfim. Por isso precisava escrever, porque nem tudo estava escrito. Nem tudo estava escrito, pensava.
O que sabia com certeza é que nem tudo, nem nada, estava escrito, a não ser que escrevêssemos. E era preciso escrever, assentar em papel. Logo isso? Ou logo aquilo? E por que tinha de ser? Por que tinha de ser escrito, logo isso, por que tinha de acontecer, logo isso, por que o mundo, a sua vida, não podia passar sem isso, sem aquilo? Agora já não sabia o que vinha antes do ser, o acontecer ou o escrever o acontecido. Bem, mas o fato é que acontecia, estivesse ou não estivesse escrito. Ela, uma haste de junco que de tão tensa nem se vergava ao vento.
Depois foi a turbulência e o tumulto até que chegassem ali, ao topo da escada. Ela esperando para começar a viver. Mas ele sempre regressando à casa, soturno, corrompendo o ar com aquela raiva represada, nas carnes, nos músculos, o terror cozinhado lentamente no forje do ódio, a violência exsudada gota a gota no olhar que a evitava, o negror, as sombras, as sombras, enquanto ela, furtando-se, pensava na imagem que teria o viver que ainda ia começar. No fundo da retina ela tomava a forma do ventre da lagarta em carne viva.
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Sueli Cavendish é professora Dra. Adjunta do Departamento de Letras da UFPE – ensaísta e tradutora. Em julho de 2008 lança a primeira edição de Eutomia – Revista de Literatura e Lingüística (www.revistaeutomia.com.br/v4) voltada para a publicação da produção teórico-crítica em Letras e Lingüística e de textos ficcionais-poemas e contos. A revista acaba de lançar a sua 8ª edição. Autora dos capítulos de livros “A Inflexão Modernista e Pós” in “Do Jeito Delas: Poesia Feminina em Língua Inglesa” (7 letras); “O Homem sem Conteúdo” in ‘Nove abraços no Inapreensível’, org. Alberto Pucheu (Azougue), Reflexividade e Diferenciação do Humano: Poe, Borges, Rosa, Faulkner (UFRJ/Aquarela).Traduziu William Faulkner: Contos de Collected Stories de William Faulkner – “Aquele Sol Noturno”, 2011. “Folhas Rubras”, 2011. ”Havia uma Rainha”. 2008. “Ad Astra”, A Tarde de uma Vaca” 2007, “Carcassone”, 2001, entre outros. E-mail: suelicavendish@hotmail.com
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19 outubro, 2013 as 14:30
27 outubro, 2013 as 3:17