Mundo sitiado


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Me apresentar? Sei falar de mim não. Às vezes, vejo assim, como um caleidoscópio de fragmentos muito antigo, sabe? Contíguo num quase total desconhecimento de mim. Às vezes, nem sei se existo mesmo e acho até jamais saberei. Nem sempre sou coisa alguma.

Mais objetivo? Como falar? Muitas vozes, sabe? São muitas vozes entoando falas e todas dizem coisas demais. Mas há um tom maior. Um tom retumbante que afina tudo isso. Um interstício grave assim meio desarmônico, mas que nunca desarranja.

Divagar menos? Bem concretamente, então, imagina o vazio. O vazio vazio mesmo. Às vezes, sinto esse vazio, aqui dentro, sabe? Então existe, não é assim?

Aspiração? Tenho não. Não sei… Queria a centelha do absurdo em mim preservada. Capaz de desabitar o deslugar para morar dentro. Um (descentro), meu vazio vazio esvaziado. Mas quando cai a noite há desassossego nos meus desertos e aí pedra é pedra, cadeira é cadeira, chiclete é chiclete, tudo tal qual deslugar de utilidades. Uma bestidade! Já nem sacis ou curupiras. Nem o homem do saco! Talvez meus desertos estejam empobrecendo de vazio e meus fios perdidos num emaranhado de bordados inúteis. Desvida crescendo sem que eu me dê conta, sabe?

O que é desvida? Como falar? Desvida não é a morte, porque a morte é inerente à vida, não? Acho que a desvida é de plástico, sabe? Uma coisa assim criada prum viver inventado. Explicar mais? Ah, não sei falar… É meio assim, você acha que está vivendo e não está. E não necessariamente está morrendo, sabe? Pra mim? Ah, pra mim seria a morte! E porque não digo morte? É que pra mim o que é morte, noutras bocas se chama vida. Ah, sei falar não, vê?

E como digo que cresce? Não digo! Apenas uma desconfiança. A desvida não é assim não. A gente não se dá conta e, quando vê, já foi, passou o trem, o barco apitou… E você plastifica a vida num documento de identidade, acha que é alguém, vive como alguém que acha que é e meio que já não sabe de si, já não se pergunta mais, sabe?

Eu não soube te responder? Como assim? O quê? Ah, é verdade, sei falar não. Quase um total desconhecimento de mim, eu disse. Mas acho estranho dizer alguém. Num sou ninguém não, sabe? Talvez, muita gente, muitas vozes, muitas cabeças encarnadas num corpo orgânico demais… às vezes, de menos. Sei lá. Mas dizer assim na lata alguém, ah, isso eu não digo!

Onde eu moro? Como assim? Você acha relevante? Talvez o lugar fale menos do que eu agora. Oquei! Você acha que o lugar sempre diz muito. Mas sabe que eu vejo assim? Vejo haver algo de pasteurização no lugar onde eu vivo que, apesar de diferentes, faz com que todos os lugares sejam muito iguais. Cais e cais de pedras! O único lugar possível é dentro, mas tantas vezes tão repleto de foras. Aí dá medo.

Medo? Tenho medo de ficar vivo por mais ou menos tempo. Tenho medo do tempo mais ou menos, sabe? O tempo inútil das utilidades. Tornar-me útil neste tempo menor de agora. Neste tempo reduzido. Neste!

Da morte? Já não tenho mais muito não. Uma realidade com a qual se vive latente ali. Acostuma-se. Poderia ser aqui e agora, não? Já atravessei o Letes tantas vezes! Tenho certeza!!! Dá um frio na espinha, eu acho. Um saber inconsciente, sabe? Mas não é medo. Às vezes, até conforto. Medo só quando se sabe atravessando o Letes como num susto. Quando nem se sabe ainda quem se é. Digo, quando nem há lugar pra desconfiança de não ser coisa alguma, sabe? E nem reminiscência, nem uma gota do Letes sobra ali. E rompem-se os fios. Aí dá medo. Mas meus fios ainda não se romperam. E além do frio na espinha, há sempre o voltar pra casa. Mas a casa é sempre onde se está, não?

A casa? Como falar? Habita-me como numa memória clandestina. Um desatino, meu instinto em desvario. Antes mais raro, hoje cotidiano. Fato é que ao longo dos anos passei a desconfiar se estou de verdade, sabe? Como se o lugar-casa fosse espaço insuficiente para se deixar ser. Um mundo sitiado. Uma rama de fios paralelos confeccionando desvidas, sei lá. Será uma forma de eternizar o mundo? Aí dá medo.

Medo? O mundo sitiado dentro. A casa tomada, sabe? Como se não houvesse casa, não poder voltar, não saber habitar… nem dentro. Ser nada dentro. Aí dá medo. Medo de mim.

 

 

 

 

 

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Silvia Nogueira integrou a primeira turma do curso livre de preparação do escritor (clipe, casa das rosas) e participa do coletivo literário palavraria. publicou o livro de contos imagens da rua, poemas em revistas eletrônicas (como a Cronópios e a Germina) e algum de-dizer finando em papel: poesias na plaquete língua mariposa (org. Claudio Daniel); vi-me (agenda CCSP); micropeça transmelhança, jornal GLBTUVXZ (org. Marcelino Freire); participação no livro-livre (org. Reynaldo Damazio). E-mail: silnogueira75@gmail.com

 




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