Minicontos


 

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INSTINTO

Ainda discutiram no aeroporto. Ela embarcou. Pane no avião: a voltar e reencontrá-lo, preferia a queda. Parecia-lhe mais segura.

 

ANOS DE PRAIA

Idosos. Eram capazes de adivinhar os desejos recíprocos: jornal, chá e, na hora certa (!), dizer boa noite e apagar a luz.

 

COLEÇÃO DE OUTONO

Demorou a sair do armário. Quando abriu a porta, estava coberto de mofo e fora de moda.

 

RITUAL

Benze-se, beija a foto, desliga o abajur e, a cada noite, morre.

 

RESPOSTA

Ela reclamava. Filhos, marido, a casa. “Quando acaba esse castigo?” O deslizamento de terra a tudo levou. Naquele dia, encharcada de dor, calou a própria vida diante do carro de bombeiros.

 

CASTIGO ORIGINAL

Acima do peso, mas feliz: o emprego! Não vendeu a quota do mês. Por castigo, vestiram-na de Eva: malha e píton de pano. O último dia da falsa primeira mulher. Amarrada à grade, enforcou-a a serpente.

 

BILATERALIDADE

Dora e Júlia amavam Pedro, que, meu Deus, feliz, também só se amava.

 

SEGUNDA CHANCE
Para Eltânia André

Deixaram-na família (Alzira, a irmã, morrera; filhos se esquecem), a juventude, saúde, amigos, o tempo… Oferecia uísque a Alzheimer e, em delírio e delícia, reencontrava o único amor.

 

EROS

Fugiu com a cunhada. Trinta anos depois, a condenação ainda os inflama.

 

ORGULHO

Um boa-praça, como se dizia. E famoso. Eram festas, presentes valiosos de lado a lado, parentes, afilhados. Só e quase cego, sequer enxerga a praça defronte da casa. Vermelhos os olhos e os braços – nos pontos em que as mãos do enfermeiro sem palavras o içam e arremessam no castigo de mais um dia.

 

CRACOLÂNDIA

Ele não exatamente a amava; não exatamente a agredia. Mas quando a barba a tocava, ela se perdia entorpecida.

 

REANIMAÇÃO

Despertou. “Está tudo bem”, disse-lhe o médico. Agradeceu quase comovido. Não pelo resultado. Era pela sedação profunda (naquelas horas, a vida não doía).

 

 

 

 

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Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro, em 1961, mas é mineiro de sangue e alma. Juiz por ofício, publicou, em 2011, Incompleto Movimento, pela José Olympio Editora. Tem poemas publicados em jornais e na internet. E-mail: alberto.bresciani@terra.com.br




Comentários (7 comentários)

  1. Basilina Pereira, Que beleza, Alberto! Ainda é você: com aquele poder de síntese (único), mas com o senso de humor mais aflorado. Que tal um livro só de minicontos? Eu vou adorar ler e tenho certeza de que muita gente mais.
    10 maio, 2012 as 20:32
  2. José Carlos Vieira, Alberto Brescianitem uma pegada bebop em suas palavras
    10 maio, 2012 as 20:44
  3. Noélia Ribeiro, Ironia fina, entrelinhas, elegância na escolha das palavras, imagens cortantes. Lindo!
    10 maio, 2012 as 20:46
  4. Maria Helena, Alberto me encanta desde o seu primeiro poema que li.Quanta beleza, quanta poesia!Suas palavras são certeiras,não se perdem, não se desviam do pensamento lógico que as guia. O mesmo poeta completo se mostra nesses belos minicontos, que emocionam, que nos seduzem, que nos fazem entrever a vida verdadeira de forma sutil e elegante. Parabéns, Alberto!
    11 maio, 2012 as 20:25
  5. carla, Com tanta sutileza vc consegue resumir vidas, sentimentos sem palavras, direto, certeiro. Quantas surpresas!
    16 maio, 2012 as 19:00
  6. NOVAS NA MUSA, […] Minicontos […]
    16 maio, 2012 as 23:46
  7. Tânia, Muito, muito bom. Sutil e sintético, com beleza de pensar. Beijos,
    7 dezembro, 2012 as 14:26

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