Matula


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No dia 31 de outubro de 2016, às 19 horas, na Casa Guilherme de Almeida, houve o lançamento do livro Matula, do meu amigo Moacir Amâncio, uma edição da Annablume.

Quem me apresentou o Moacir Amâncio foi outro poeta, o Álvaro Faleiros. Por volta de 2011, alguns professores da FFLCH-USP, que também fazem literatura, reuniam-se para conversar a respeito da poesia brasileira contemporânea; entre eles, estávamos eu, o Maurício Salles Vasconcelos, o Roberto Zular, o Álvaro e o Moacir. Por tudo isso, fiquei bastante feliz quando fui convidado para participar do lançamento do Matula e dizer algumas palavras sobre o livro.

“Matula é um livro marrano”, me dizia o autor quando o trabalho ficou pronto, ainda em PDF, antes de ir para a gráfica. Marrano é o cristão novo: o judeu, obrigado a se tornar cristão pelo milenar autoritarismo católico. Para me preparar para o dia 31, pedi ao Rodrigo Bravo, meu amigo e parceiro no livro “Ernesto na Torre de Babel”, que estudasse Matula comigo. Assim, bem acompanhado por três marranos – Moacir, Rodrigo e Ernesto Manuel de Melo e Castro, que é citado em Matula – eu certamente entenderia o sentido do termo “poesia marrana”.

A literatura é sempre engajada, seja com a burrice, o fascismo ou a malandragem, seja com a resistência a tudo isso. A literatura feminina resiste ao machismo, a literatura negra resiste ao racismo, a literatura homoerótica resiste à homofobia, a literatura de esquerda resiste ao capitalismo… a literatura marrana resiste, entre tanta estupidez, à opressão católica e ao antissemitismo.

Consequentemente, antes de falar de Matula, cabe indagar se haveria uma literatura antissemita, à qual a literatura marrana, necessariamente, se opõe. Os leitores atentos de José de Alencar sabem que a resposta é sim. Em “As Minas de Prata”, de Alencar, a vilania dos judeus chega a ser caricata, tamanho o antissemitismo do romancista; Amâncio chega a dedicar um poema a Dona Luísa de Paiva, personagem da obra.

Ora, tais ocorrências já seriam suficientes para justificar uma literatura afirmativa em sentido contrário. Consciente disso, Moacir Amâncio, professor de língua e literatura hebraica na FFLCH-USP, poeta e tradutor, resolve refletir sobre a questão em “Matula”, começando pelo título do livro: (1) matula significa alforje – no caso, uma metáfora para guardar e levar consigo os poemas e seus desdobramentos –; (2) matula também significa ajuntamento de gente ordinária, corja, súcia – nesse sentido, o título é provocação –.

A perseguição aos judeus não é novidade desde o Império Romano; cristãos e nazistas se especializaram em persegui-los. A própria academia não se incomoda de estudar filósofos da SS, como Martin Heidegger, cujas etimologias alçadas dos gregos são dignas da mentalidade de seu Führer, ou antissemitas inconsequentes, como Friedrich Nietzsche, cuja genealogia da moral não passa de empáfia nacional socialista avant la lettre.

Moacir não se detém rememorando o holocausto nem discutindo a política sionista do estado de Israel; em sua ação afirmativa, ele busca pelas origens judaicas obscurecidas na conversão obrigatória ao cristianismo por seus antepassados, por isso mesmo literatura marrana, e não literatura israelense ou místico-judaica. Nesse projeto, sua originalidade é evidente.

Eis os versos de “Na ibéria as chamas”:

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na ibéria as chamas

cresciam das masmorras

com lenha local

e dos aquém mares

onde dispersava

se em relva sem nome

 

O tema é explícito, trata-se da perseguição aos judeus realizado pela Santa Inquisição representado em duas de suas figuras mais tenebrosas: (1) as masmorras, onde se realizava a tortura em nome de Jesus; (2) as fogueiras em que judeus, mulheres e inclusive seus próprios santos, a igreja católica cuidou de queimar.

Essa triste lembrança não surge apenas como desabafo, ela se manifesta em versos, para ser exato, em redondilhas maiores – uma medida utilizada na época mencionada –; para ser mais exato ainda, a malha fonológica, formada por consoantes constritivas, encaminha, pelo menos, três efeitos semióticos.

As consoantes constritivas, como /s/, /v/, /r/ ou /l/, que “chiam”, opõem-se às oclusivas /p/, /t/ ou /k/, por exemplo, que explodem; no poema, as constritivas aparecem nas palavras /ibéria/, /as/, /chamas/, /cresciam/, /das/, /masmorras/, /lenha/, /local/, /dos/, /mares/, /dispersava/, /se/, /relva/ e /sem/. No poema, tais consoantes simulam, quando ressoam ao longo dos versos, pelo menos três músicas: (1) a música infernal das chamas ardendo sobre os corpos das vítimas; (2) a música das ondas do mar, por onde se dava a diáspora; (3) a música dos voos da Fênix, que ressurge das cinzas das fogueiras para se espalhar pelo mundo – isso se confirma no desenho da capa do livro, outra imagem da Fênix renascida –. Na semiótica do poema, as chamas afirmam os valores semânticos de /morte/; as ondas, os valores semânticos de /vida/; no voo da Fênis, a semântica morte vs. vida está complexificada no texto do poema.

O valor do livro, portanto, não está somente na referência aos marranos, mas na realização desse tema enquanto poesia. Para prosseguir nessa demonstração, escolhi outro poema, “a nau aportará um dia neste cais”:

 

a nau aportará um dia neste cais

vazio sempre mas jamais de passageiros

todos à espera desse algum por tudo incerto

tanto a partida qual também toda chegada

seja amsterdã quem sabe hamburgo ou mesmo o bósforo

ainda recife pode ser constantinopla

onde seremos por demais talvez em rhodes

faremos lá a nossa língua e outras folhagens

entanto até jerusalém porto será

para os jamais desencontrados mal seguros

como se o mar um ladrilhado logos fosse

mas com porém lugar aberto aos bambos pés

novos caminhos quando nunca sendo os mesmos

e os tantos olhos cegos a buscar navios

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O poema é todo formado por alexandrinos – os versos de doze sílabas –; a enumeração das cidades habitadas pelos judeus em suas diásporas não surge como uma lista, mas disposta em versos, como se dá nas epopeias, na poesia beat, no rap e no hip-hop.

Tudo isso faz de Matula, como o próprio Amâncio tematiza em um dos poemas, mensagem na garrafa lançada ao mar; cabe a você, caro leitor, conhecê-la:

 

como responder

à carta lançada

ao mar na garrafa

há dias mil e um

chegou à tua mão

como se esperava

tão exatamente

o mesmo frutar

 

Ao que tudo indica, alguns já receberam a carta. O Rodrigo Bravo, levando adiante as propostas do Moacir, já compôs dois poemas marranos – “Ladino” e o poema visual “Pilpul para Albert Einstein” –, que eu gostaria de mencionar aqui:
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Ladino

(para Moacir Amâncio)

 

Fui obrigado

a aceitar um deus falsete,

uma cobra serpeante, um carpinteiro,

que me tolhe a graça do viver em prol do Uno.

 

Fui forçado

a embarcar à terra das gerais

e bananeiras,

a adotar um berço, nova pátria,

um linguajar estranho e acre

um vão ceceio

(não falo a língua de Deus).

 

Foi a fé,

em um de nós, tão distorcido equivocado,

e substancializado num mítico

tropeço:
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dança profana de Elohim e Cadmo.

 

Mas,

Adonai,
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Ó Sérapis.

Há muitos caminhos pelo céu infindo,

além daquele que nos dita o homem mito.

Sou pão, sereno, agora apascentado;

Ah sim, Jah, we’ll share the same room.

 

Em Judá,

Be’reshit, (talvez um dia)

haverá de ser apenas leite

mel e alegria.

 

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…………………….Pilpul para Albert Einstein

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Também o Matheus Steinberg Bueno, poeta e aluno de literatura hebraica do Moacir na FFLCH-USP, compôs um longo poema, do qual eu cito este fragmento:

 

IX – Kadish para Gita Shlakman Steinberg

 

Aparição da musa da memória perplexo estonteante abato o

Caminhar

Luzes de Chanuká! Acende-se a oitava vela jorro de

Infância vertendo na visão um cenário turvo e maternal abastecendo o

Estômago dos filhos com Tsholent e Guefilte Fish depois de

Acender com a irmãzinha as luzes de

……………………………………………….Shabat

Em Iom Hashoá.

 

O Rabino recorda meu Bar-Mitsvá esperando o Minián de Arvit

Tragando seu charuto:

“Ponha o Tefilin vamos fazer um Kadish para Gita”

E uma força talvez a Shekhiná

Empunha os tendões e o pulso dobra os dedos que

Agarram as caixinhas como se agarra um

……………………………………………………Filho.

 

 

 

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Matula pode ser encontrado no site da Annablume neste endereço:
http://www.annablume.com.br/loja/product_info.php?products_id=2145&osCsid=8kqvj783717nc6i5f71e3eckd3

Visite meu site http://seraphimpietroforte.com.br/

Se você gosta de histórias em quadrinhos, conheça o Pararraios Comics,
visite o site http://pararraioscomics.com.br/

Também escrevo para o portal de esquerda Carta Maior, confira minha coluna “Leituras de um brasileiro”
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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com




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