Kundalini


 

Karen era proprietária de um centro holístico no interior de São Paulo, perto de Brotas, que oferecia excelentes promoções sazonais de Reiki, por exemplo a um custo de noventa e cinco reais por 20 minutos de sessão. A programação do centro incluía workshops de atenção plena nos finais de semana para paulistanos estressados, spa diário, curso de programação de cristais, meditando com aromaterapia e diversos tratamentos de beleza. Além de massagistas, esteticistas, cabeleireiros e nutricionistas, contavam também com atendimento endocrinológico, e ofereciam aos seus clientes atendimento de tarot da transformação do Osho e astrologia védica.

O centro ministrava palestras regulares sobre a terapêutica da obsessão e dependência de internet. Além do custo de inscrição, pedia-se a doação de um quilo de alimentos não perecíveis em prol das comunidades locais. As palestras eram ministradas pelo marido de Karen, um gaúcho de olhar hipnótico que fora discípulo de Bagwan Rajneesh nos anos 80, e um tarólogo de sucesso. Ele ainda atendia pelo seu nome espiritual, Vasant Sarita, e agora era CEO de uma famosa marca nacional de cosméticos.

Karen tinha estudado propaganda e marketing na UNIP, era excelente empresária e mulher de sucesso. Tinha dado entrevistas para a TV Folha Equilíbrio e Saúde entre outros sites, e aparecido em várias revistas femininas. Postava selfies sorridentes com filtros saudáveis no seu Instagram, incentivando outras mulheres a cuidarem de seu corpo e espiritualidade. As clientes adoravam suas dicas e seu estilo natural chic de se vestir e se maquiar, que combinava muito bem com sua personalidade. Postava também fotos com seu marido e seus gatos (não tinha filhos, tinha gatos). Malhava bastante, bebia pouquíssimo, praticava ioga e pilates, e tinha o mesmo personal trainer há anos. Estabeleceu uma parceria com um núcleo de emagrecimento, e juntos desenvolveram um aplicativo para agendamento de consultas e atendimento por skype.

No centro holístico havia ainda uma lojinha que vendia kits ritualísticos de proteção espiritual e amor, florais de Bach, shampoos importados a base de cânhamo e produtos naturais de Belém do Pará. Um grande sucesso era o perfume Agarradinho, da Chamma da Amazônia, o favorito de Fafá de Belém. Uma homenagem à espontânea sensualidade da mulher brasileira.

Karen tomava regularmente seus florais, e mencionava com frequência uma citação do Dr Bach nas redes sociais: ‘que possamos ter no coração a gratidão pelo criador, que em toda a sua glória colocou as ervas nos campos para a nossa cura’. Todos os dias ela acordava, se olhava no espelho, tirava suas medidas e comia mamão papaia. Ninguém desconfiava do seu passado destrutivo, da sua depressão após uma longa relação abusiva com um adicto psicopata que a ameaçara de morte, da sua dependência de cocaína e benzodiazepínicos que durou alguns anos. Ninguém imaginava a Karen das madrugadas nos porões das boates de São Paulo, indo comprar cocaína nas Águas Espraiadas. Não, ela saiu daquela roleta russa numa prolongada internação em uma clínica em Interlagos. Ela trancou aquelas memórias numa caixa imaginária, após limpezas com chás de Santo Daime e rituais xamânicos.

A mudança para Brotas e a criação do centro tiveram um efeito reconstrutivo em sua vida. Vasant ajudou Karen a livrar-se da obsessão com o seu ex e com as drogas, e a conduziu para um caminho espiritual. Ele foi um farol na sua vida. Ele, a equipe da clínica e seu psiquiatra. Jamais iria parar sua bupropriona, melhorou muito com aquela medicação. Devia muito também ao seu dermatologista. Ele era um artista, frequentado pela comunidade gay rica de São Paulo. Ninguém percebia os preenchimentos dos seus sulcos de outrora, sua botox discretíssima, a sua verdadeira idade.

A vida de Karen era feliz. Ela ganhava muito dinheiro, fazia viagens periódicas para Europa e Ásia, de onde trazia lindos panos, roupas e objetos, e tinha tudo que queria. Usava os melhores cremes importados e seu cabelo era sedoso de kerastase, mas havia um problema com aquela mulher: Karen era frígida. Isso a preocupava, mas ela culpava as barras que passou na vida e o remédio. Vasant estava mais focado no seu enlightenment espiritual e material. Ele havia proposto a Karen que procurasse outros parceiros. Como bom discípulo de Osho, não era possessivo e não incentivava que ela fosse. Afinal, ele precisava de um power exchange eventual com outros corpos, com outras espiritualidades. Era preciso seduzir as mulheres (e eventualmente homens) para que encontrassem o amor pela vida. Ela entendia e não se opunha, mas havia essa incompletude na sua vida, esse vazio holístico: a falta de libido.

Discutiu muito o problema com seu psiquiatra, um famoso especialista e professor doutor da USP que cobrava mil e seiscentos reais o atendimento no seu elegante consultório da Vila Olímpia. Ele explicou que a bupropriona era um antidepressivo que interferia pouco com a libido, e a referiu para uma terapeuta sexual de sua confiança. Ela passou a frequentar consultas caríssimas com uma psicóloga extremamente bem qualificada na área de sexualidade, uma morena com seios turbinados e cara de tarada.

Ao longo de uma detalhada anamnese a psicóloga chegou à raiz da questão: um abuso sexual na infância, por seu tio, havia afetado suas crenças sexuais e a conduzido às escolhas abusivas de seu passado e até mesmo à sua adicção à cocaína. A psicóloga chegou à conclusão que um trabalho corporal voltado para a espiritualidade poderia ajudá-la. Ela prescreveu como sexual healing sessões de massagem tântrica individuais, para vencer seus tabus, e posteriormente sessões para o casal. Vasant ficou muito animado com a ideia, sim Osho incentivava o tantra para abertura do chakra sacral. Para o seu mestre, o tantra era uma abordagem científica, uma alquimia, como ele não tinha pensado nisso antes? Passou a meditar sobre o seu individualismo.

Karen teve muita dificuldade nas primeiras sessões. O belíssimo massagista, um rapaz calmo, sensual e musculoso, ajudou a vencer suas defesas, que segundo ele estavam cristalizadas  numa atitude extremamente controladora com o corpo. Aos poucos, ela foi relaxando e criando confiança nele, que foi quebrando as suas couraças, os espasmos das suas tensões. E um dia Karen descobriu pela primeira vez a profunda alegria de um orgasmo sob seus dedos. Aos quarenta e cinco anos de idade! Sob o impacto daquela sensação, ela chorou de prazer e depois ficou meio desmaiada na maca de massagem, em êxtase. Foi como uma descarga elétrica, trazendo uma nova energia para a sua vida. A kundalini estava despertando. Era o começo de uma vida holística e plena. Tinha certeza que sua felicidade agora seria completa.

 

 

 

 

 

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Virna Teixeira é poeta e tradutora, e começou recentemente a escrever contos. Vive em Londres. Seu último livro, Suite 136, é uma coleção de poemas em prosa que reflete sua experiência de trabalho como médica em hospitais psiquiátricos ingleses. Virna edita livros bilíngues de poesia pela Carnaval Press no Reino Unido, especializada em poesia brasileira contemporânea, e também a revista literária e de artes visuais Theodora (www.theodorazine.com). E-mail: virnagontei@yahoo.com.br

 




Comentários (1 comentário)

  1. Davi, Adorei a densidade criada da agitação entre partículas de realidade num solvente ficcional… exala um perfume cuja nota lembra aquela de uma fruta vermelha em corpo translúcido 😉
    25 julho, 2018 as 19:00

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