Hospital Terminal


 

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para o Dr. Ricardo Bento Terres

 

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PRONTO-SOCORRO É O INFERNO DE DANTE, DIA E NOITE. Meu plantão de sábado começou com uma mulher idosa, desacordada, com o coração acelerado num “galope”, como dizemos. Quase duzentos batimentos por minuto. Sem pulso na carótida. A palidez indicava insuficiência hemodinâmica. Teria sofrido uma hemorragia? Não havia tempo para investigar a causa.

O jeito era tentar uma manobra extrema. Pressionei as órbitas da mulher, enquanto massageava o seio carotídeo, junto à mandíbula.

— Não é melhor mandar a paciente pro choque? — falou Emiko, a japonesinha residente, branca feito papel.

— Não dá tempo. Ela morre no caminho.

É muito difícil fazer medicina pra pobre, neste país. Se o cidadão tem algum convênio ou pode pagar pelas tecnologias, o especialista pede mil exames, evita correr qualquer risco. Já em hospital público, a miséria é crônica. Falta medicamento, gaze, algodão, estetoscópio.

O único recurso é apelar para experiência, intuição e até mediunidade. Talvez a grande tarefa de um médico seja a de controlar o pânico de sua equipe.

Auscultando a mulher, o residente Moacir informou que o coração voltara ao ritmo normal. A manobra tinha dado certo.

— Mantenham a paciente em observação — recomendei à equipe.

Nesse instante, as enfermeiras Carmo e Valdira chegaram fazendo alarido.

— Doutor João! O senhor tem que ver uma coisa incrível! — Carmo intimou.— Lá na radiologia. Agora!

— É um milagre! — Valdira arregalou os olhos.

O homem estava estendido na maca, de olhos fechados.

Um negro corpulento, de cabeça raspada, com salpicos de sangue na camiseta verde-amarela da seleção. Tinha um ferimento na testa, a pele chamuscada de pólvora. Arfava como quem viu a cara da morte — e  escapou por um triz. Carmo me apresentou as radiografias do crânio.

Tiro à queima-roupa. Calibre 22, decerto. O projétil entrou pela têmpora esquerda e saiu pelo meio da fronte, ali na chamada “área de silêncio” do cérebro. Passou pela região supratentorial, e através do lobo frontal, sem causar nenhum dano ao cérebro. Sujeito de sorte. Um ferimento desses é um em 1 milhão. Bati no ombro dele:

— Amigo, está me ouvindo? Como é seu nome?

— Deodato.

— Muito bem, Deodato. Abra os olhos. Está me vendo? Está com a vista embaçada?— Espalmei a mão:— Quantos dedos você vê aqui?

— Cinco.

— Bom. Sente dificuldade pra engolir?

— Não, senhor.

— Dificuldade pra respirar?

— Não.

—Você comeu hoje?

— Sim, senhor, comi uma feijoada.

— Você defecou hoje?

— Hein?

— Você cagou hoje?

— Sim senhor.

— Levante o braço direito. Agora o esquerdo. A perna direita. A esquerda. Muito bom. Tá tudo certo com você, camarada. Parabéns. Escapou por um fio de cabelo. Nasceu de novo. Pode comemorar.

Tirando o susto, o homem não tinha nada. Eu disse à Valdira para fazer um curativo e dispensá-lo. Deodato soltou um gemido quase infantil.

— Tá sentindo alguma coisa, camarada?

— Tô cuma puta de dor de cabeça, doutor.

— Hum. Uma cefaleia normal, nesse caso. Qualquer analgésico resolve. Carmo, dá duas aspirinas pra ele e manda embora.

O chinesinho Liu Chih Yam já me chamava da porta, aflito:

— Doutor! Homem baleado! A PM acabou de trazer. Diz que é o cara que atirou nesse aí. Tá em estado crítico!

Mais um plantão infernal. Normal. Tem noites em que o pavor da equipe quase me afeta, e então me lembro que meu coração também disparava num galope, quando eu era apenas um jovem residente.

 

— Corta! — comanda o diretor Toni Diniz.— Parabéns, gente! Ficou muito bom! Vocês me arrancam lágrimas!

— Pausa de dez minutos, pessoal! — avisa a diretora assistente.

 

Sim, querida, podemos conversar uns minutinhos. É, eu considero Hospital Nacional uma das melhores séries já feitas pela TV brasileira.

Gosto de fazer o Dr. João Bueno. Ele ainda carrega uma grande amargura, por conta de sua impotência para salvar a humanidade. É um personagem que cresceu muito ao longo desses catorze programas.

Pena que este seja o último episódio da série. O elenco já sabe que não teremos uma segunda temporada. Embora a série seja muito bem escrita — e tenha um teor maior de dramaturgia que os outros produtos da emissora —, Hospital Nacional nunca saiu do rodapé do índice de audiência. Significa que o público não gosta de ver nossa miséria refletida na telinha? Não sei.

Devem preferir as promessas dos eternos vendedores de esperança: os pastores e animadores de programas de auditório. No entanto, temos uma audiência cativa de hipocondríacos, que enviam cartas e e-mails para a emissora, reclamando que os roteiros “falham na descrição de patologias mais complexas”, e que devíamos “informar melhor o público sobre doenças raras”. Como se fosse algum privilégio sofrer de uma “doença rara”.

Ironicamente, vão fechar o nosso Hospital Nacional no momento em que o país está recebendo médicos de Cuba, e de outros lugares, para atender à população dos cafundós, onde nossa juventude de jaleco branco não quer pisar com seus sapatinhos imaculados.

No mais, parece que um tsunami de ignorância se abateu sobre este país. Gente da minha geração, que foi torturada, massacrada ou exilada pela ditadura, nunca poderia imaginar que hoje veríamos nas ruas essa horda de analfabetos políticos clamando por “intervenção militar”. Nem essa corja de deputados-pastores, essa praga obscurantista que ataca o estado laico a golpes de bíblia, pregando a homofobia, demonizando o candomblé, açulando explosões de ódio e intolerância. E o mais escandaloso é que, exatamente como há cinquenta anos, essa histeria fascista é insuflada por uma mídia reacionária, aliada à direita mais jeca, mais vira-lata e lambe-botas.

Aliás, esta nossa emissora também está engajada nessa campanha de desestabilização de um governo eleito. Estão chocando o ovo da serpente. A farsa se repete como pesadelo. Meu consolo é que não vou assistir por muito mais tempo a esse espetáculo de estupidez.

Você se espanta de me ouvir falar assim de meus empregadores?

O que eu penso não importa mais, querida. Sabe por que? Porque vou morrer em breve. Este velho ator, que encarnou o doutor João Bueno, tem um câncer terminal. Sim, pode publicar isso na sua revista.

Diga lá pro seu editor que ele já pode ir preparando o meu obituário. Gostou da entrevista? Eu só dou entrevista boa.

Bem, com licença, é hora de gravar o meu monólogo final.

 

 

 

 

 

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Luiz Roberto Guedes é poeta e escritor. Publicou, entre outros, O mamaluco voador (2006), eAlguém para amar no fim de semana (2010). E-mail: l.r.guedes@uol.com.br

 




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