Flores para Honoré
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Não era nossa primeira vez em Paris. Desta feita, eu apenas acompanhava minha mulher, Stella Mariz, a escritora brasileira de novelas policiais, que vinha lançar a edição francesa de seu best-seller tupiniquim “Morte sobre o túmulo de Balzac”.
Acordei no hotel com essa imagem, “o túmulo de Balzac”, flutuando na mente, entre farrapos de sonhos desconexos. Eu já tinha visitado o Museu de Balzac, anos antes, na rue Raynouard, em Passy, sua última residência em Paris. Fotografei lá seu busto em mármore (obra de David D’Angers, 1844) executado seis anos antes da morte do escritor, quando ele, segundo a lenda, clamou em agonia que lhe chamassem o Dr. Bianchon, uma de suas criaturas.
Portanto, devíamos uma visita e um buquê de flores a Honoré, já que Stella Mariz tinha arquitetado seu who-dunit envolvendo Paris, Rio de Janeiro, a máfia chinesa, diplomatas ligados ao narcotráfico e o tombeau de Balzac. Fui eu que acabei sugerindo a ela esse plot rebuscado, por força do meu culto: andava relendo um dicionário enciclopédico dos personagens ficcionais de Balzac.
Assim, acordei Maristela e a informei do meu propósito. Ela resmungou qualquer coisa como “nem precisa ir lá, dá pra ver o túmulo pela internet”, abraçou um travesseiro extra e voltou a dormir.
Fui palmilhar o Père Lachaise sozinho. Achei o caminho entre as árvores despidas pelo outono. Assinalando o túmulo, um pedestal elevado suportava a nobre cabeça em bronze, cópia do mármore assinado por D’Angers.
Depositei sobre a laje o buquê de rosas brancas que trazia. Meu estado de espírito era tão reverencial quanto o do garoto Antoine Doinel ao acender sua velinha devota diante do retrato do escritor, no filme Os incompreendidos, de Truffaut.
Contemplando a face esverdinhada de pátina, lembrei que Honoré certa vez tinha escrito, em carta à Condessa Hanska, que havia decidido “levar meus ossos até o Brasil, num empreendimento louco, que escolhi justamente por causa dessa loucura”.
Mas ele abandonou esse vago projeto, e o Brasil ficou privado da glória de um dia abrigar os ossos imortais do criador da Comédie Humaine. Agora, eu estava ali, em meu nome e no de Stella Mariz, para lhe render um tributo amoroso. Quando me afastava do túmulo, apanhei uma pedrinha no chão e guardei-a no bolso, como souvenir.
No trajeto de volta ao hotel, passei por uma banca de livros usados e meus olhos foram atraídos pela capa de um deles: 1850 — Le tombeau d’Honoré de Balzac, de Stéphane Vachon. Folheei o volume: uma coletânea de artigos publicados na imprensa parisiense por ocasião de sua morte. Achei que seria o presente perfeito para minha mulher.
Escrevi a dedicatória com uma pena de ganso:
Para Stella, avec estime et affection, H. de Balzac.
Acordei desse sonho estranhamente nítido e informei Maristela do meu desejo de dar um pulo ao Père Lachaise.
“Você vem a Paris pra visitar cemitério e museu”, ela falou sem abrir os olhos. “Deixa pra ir à tarde, também quero ver o túmulo.”
A sepultura era modesta, sem nada da grandeur da campa de Balzac. A cabeça do ídolo vinha sendo pintada, pichada e manchada por gerações de fãs. Em torno da tumba, um alegre bando de rapazes e moças bebiam vinho, tocavam violão e cantavam “when you’re strange, no one remembers your name”, com vários sotaques.
Very strange, indeed. E achei ainda mais estranho quando Maristela depôs seu ramalhete de flores sobre o túmulo grafitado, encenando literalmente o título de seu livro, recém-lançado na França: Des roses rouges pour Jim Morrison.
[22/03/2013]
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Luiz Roberto Guedes é poeta e escritor. Publicou, entre outros, Calendário Lunático — Erotografia de Ana K (2000), O Mamaluco Voador (2006), Minima Immoralia/ Dirty Limerix (2007), Meu Mestre de História Sobrenatural (200 8), e Alguém para amar no fim de semana (2010). E-mail: lrguedes@hotmail.com
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2 abril, 2013 as 16:57