Ele (um conto fora das antologias)


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Um dos fenômenos mais interessantes da comunicação de massas é a ascensão e queda meteóricas de certos ídolos ou personalidades. O que talvez confirme a profecia de Andy Warhol de que no futuro todo mundo será famoso por quinze minutos.

Ele foi um caso assim. Não se sabe muito bem de onde veio e por que permanecera por tanto tempo no anonimato, sendo o que realmente era: uma singularidade excepcional da natureza. Metade animal, metade homem, tornando quase impossível a diferenciação do que seria ou não humano em seu corpo, em que se podiam observar até algumas características pertencendo à escala vegetal, como pequenos ramos brotando das orelhas. E ele tanto podia ser uma amostragem da raça humana em decadência quanto um exemplar da evolução dos animais.

Algumas pessoas o achavam encantador; outras o detestavam. Mas num ponto existia unanimidade: ninguém permanecia indiferente à presença dele. No primeiro dia em que foi à televisão, participando de um programa popular, metade do público aplaudiu de pé sua exibição, enquanto a outra metade vaiava, indignada. Foi um dos dias em que ele se encontrava mais desinibido e chegou, vejam bem, a improvisar alguns números, sem qualquer condicionamento prévio. Ele cantou, dançou, tocou bateria, imitou artistas famosos; respondeu (na sua linguagem peculiar, é claro, necessitando de um intérprete especializado) às perguntas da direção do programa; acariciou as pernas de uma dançarina, como se fosse um inocente, embora muito precoce menino e, finalmente, mijou no palco e deu uma banana para o público. E, paradoxalmente (ninguém entende o povo), foi nesse momento que seus fãs mais o aplaudiram. Mas quem não gostou foi a Censura. O programa esteve suspenso por duas semanas, enquanto ele foi vetado, por sua imprevisibilidade, a participar de espetáculos televisionados ao vivo.

Mas ele devia mesmo possuir alguma inteligência, ainda que rudimentar. Do contrário, como explicar a sobriedade com que se comportou em outro programa, gravado para uma audiência mais qualificada? Quando, após árduas negociações e tráfico de influências, ele recebeu autorização para apresentar-se em público, desde que uma fita fosse previamente exibida aos censores. Pois as autoridades, embora desejando evitar influências maléficas sobre o povo, não querem impedir – e até incentivam – as diversões mais sadias desse mesmo povo, como no caso do futebol, que vive um momento de grande incrementação, depois da conquista da Copa de 70.

E nesse segundo programa, denominado, com um certo exagero, Classe Aele realmente maneirou. Não só omitiu a mijada e a banana, como se absteve de sua perfeita e abominável imitação de Alice Cooper, considerada melhor do que o original. Alguns entendidos chegaram a dizer que o cantor, músico e compositor, AC, deve ter tido alguma informação a respeito dele. Nesse caso, seria Alice e não ele o imitador.

Mas falando desse programa, para o qual ele foi preparado durante semanas, não sendo poupado, ao que informaram, dos métodos reflexo-condicionadores mais severos, pode-se dizer que ele esteve impecável. O que não impediu que certos críticos – que nada mais são do que castradores profissionais – arrasassem sua interpretação, ao piano, de uma valsinha de Chopin. Eles falaram em execução no sentido do ato do carrasco executar um condenado, o que traduz é a má-fé desses críticos. Como se fosse justo utilizar em relação a ele os mesmo critérios adotados para os músicos clássicos profissionais. Em contrapartida, esse rigor de julgamento comprovou que já o consideravam uma personalidade digna de observação no mundo artístico.

E o que esses críticos não conseguiram explicar satisfatoriamente foi como ele efetuou aqueles cálculos matemáticos. E também a pintura instantânea e espontânea de inúmeros quadros abstratos, embora fosse um pouco constrangedor vê-lo todo lambuzado de tinta. E ainda os três pênaltis batidos com êxito contra o goleiro Félix. E muitas coisas mais, quando, apesar de uma sobriedade no limite que caracteriza o programa Classe Aele foi aplaudido demoradamente, enquanto a câmera, em close, captava lágrimas de emoção de seus dois olhinhos e meio.

De todo modo, contra ou a favor dos críticos, ele se transformou numa estrela de primeira grandeza. Seu retrato passou a sair constantemente nos jornais; ele era convidado para festas; alguns colunistas faziam alusões a casos amorosos dele, mesmo sendo difícil, ou grotesco, ou repugnante, imaginá-lo capaz de – bem, digamos assim – desincumbir-se de certas funções, como um homem normal. E o que aquelas atrizes ou modelos iniciantes, incluindo sua noiva recente, deviam estar querendo era publicidade, nada além do que publicidade.

E talvez encontremos aí um de seus maiores pontos fracos: a vaidade. Um narcisismo explicável pelas circunstâncias, mas ainda assim ingênuo. Como se ele se sentisse todo poderoso e acima do mundo mediano das pessoas normais. E ele deve ter acreditado que as pessoas, inclusive aquelas belas mulheres, o amavam por ele mesmo e não por sua fama, além de uma imagem habilmente explorada por seu empresário (proprietário?).

O caso era que ele, como a maior parte das celebridades repentinas, não se encontrava preparado para a embriaguez, angústia e ansiedade do sucesso. E a derrocada começa exatamente no momento em que se alcança o topo.

Ele começou a levar uma vida de dispersão e futilidade, bebendo em excesso e experimentando algumas drogas, de efeito imprevisível para o seu cérebro ainda não devidamente investigado. Um cérebro que talvez já sofresse, sem estímulos artificiais, alguns efeitos semelhantes aos do ácido lisérgico.

E a verdade é que ele passou a agir de um modo incompatível com um profissional. Em primeiro lugar, descuidando-se dos ensaios, dos exercícios de condicionamento, sem os quais ele nada era além de uma espécie de polvo humano descoordenado. Sem capacidade de reagir aos estímulos apropriados, houve um programa de televisão em que ele apenas se limitou a balançar ridiculamente seus estranhos membros, sendo retirado do palco sob intensa vaia.

Depois, talvez magoado com a hostilidade do público, ele passou a faltar a alguns compromissos, recusando-se, também, a receber a imprensa e até mesmo chegando às vias de fato com um repórter especializado em escândalos, que teria feito alusões equívocas a sua  “noiva”, que, no entanto, logo depois o abandonou.

Desse último golpe – a perda da noiva – dizem que ele nunca se recuperou. E, além disso, havia nesse tempo um certo tipo de controvérsia, bastante desagradável e que, segundos fontes bem informadas, o magoavam profundamente. Pois existiam pessoas cruéis ao seu redor – invejosas de seu sucesso – que faziam questão de explicar-lhe todas as minúcias dessas controvérsias. Como, por exemplo, uma especulação numa revista de amenidades, apesar de metida a séria, dando conta de que a Igreja estaria procedendo a cuidadosas investigações a respeito daquela “estranha criatura”. E que se tudo não passasse de uma farsa – alguém fantasiado ou alguma experiência criminosa de laboratório – esta seria certamente desmistificada. O fato já teria chegado ao conhecimento de teólogos eminentes, pois ele estaria servindo de reforço a heresias, como a não existência de um criador consciente e também de um paraíso e do pecado original. O mundo não passaria, então, de um acidente fortuito. Tese esta, aliás, defendida pelo famoso cientista austríaco, Karl Fritz, cuja declaração, referindo-se a ele, a mesma revista de amenidades sérias transcreveu na íntegra:

Confirmando minhas teorias intuitivas, o mundo talvez não passe de um terrível acaso, quando acidentes biológicos poderão acontecer a qualquer momento, como a geração dos mais variados monstros, todos dessemelhantes entre si, de modo a impossibilitar uma classificação por espécies. Possuindo esses monstros como única prerrogativa e definição o fato de serem totalmente singulares e biologicamente anárquicos, não obedecendo a nenhum princípio. E o mais trágico é que eles poderão sempre se reproduzir (a reprodução interespécies), gerando um número crescente de seres cada vez mais grotescos e desiguais, até sobrevir um completo caos no reino animal, já havendo toda a organização social, a essa altura, desaparecido. Uma involução no planeta Terra, quando retornaremos ao período das trevas e extravagantes criaturas se amontoarão umas sobre as outras, explorando-se mutuamente e libidinosamente na escuridão, com suas antenas, órgãos sexuais e tentáculos”.

Esta última declaração embora ligeiramente anterior ao internamento de Karl Fritz numa instituição psiquiátrica, provocou grande, apesar de passageira, repercussão. E, para ele, convenhamos, deve ter sido muito penosa uma dissecação tão impiedosa.

Fontes, “sempre fidedignas”, informaram que ele ficou bastante ofendido e começou a definhar, física e psicologicamente. Parece que ocorreu uma grande briga dele com seu empresário, surgindo à tona o fato de que este último sempre o explorara vilmente, guardando para si todo o dinheiro dos contratos, enquanto o acalmava comprando quilos de amendoim, seu alimento preferido, e badulaques como espelhos, brinquedos de plástico, bonecas meio eróticas.

ele se recusou, a partir daí, a qualquer aparecimento público, inclusive na rua, onde antes provocava engarrafamentos e aglomerações. A verdade é que ele perdera a inocência das criaturas selvagens e teve vergonha. Um complexo de inferioridade manifestou-se em toda a sua plenitude e alguns rumores circularam dando conta de que, depois de alguns tratamentos inúteis de reflexologia, quando os médicos procuraram reembalá-lo (recorrendo também a operações plásticas) e recondicioná-lo, para depois devolvê-lo ao mundo das medíocres normalidade, ele tentara o suicídio. Fato que os jornais teriam sido proibidos de divulgar, evitando traumas na população mais humilde e sobretudo nas crianças, entre as quais ele sempre gozou de enorme popularidade.

Mas nada se sabe, ao certo. A única verdade é que ele desapareceu de circulação e vai sendo rapidamente esquecido, pois o espetáculo não pode parar e outras estrelas, da mais variada qualidade, tomaram o seu lugar em nossa constelação.

No atual cenário artístico temos, por exemplo, a figura de El Muchacho, nascido em Bonsucesso e que se faz passar por mexicano. Mas o que importa é que El Muchacho é um sensível e romântico cantor de boleros, agradando, sobretudo, na faixa das empregadas domésticas. Alguns intelectuais, porém, começam a debruçar-se diante desse novo fenômeno da comunicação, cientes de que o futuro tende a dissipar a diferenciação entre o erudito e o popular, o inteligente e o burro, o bom e o mau gosto, além de várias outras dicotomias quadradas. O que é comprovado, inclusive, pela admiração que Stockhausen – após afirmar que o hard-rock pode conduzir ao fascismo – confessou possuir pelas guarânias paraguaias, que começam, agora, a ser consumidas por um público de qualquer idade, classe ou nacionalidade.

Quanto a ele, que é quem interessa – de vez em quando a gente toma conhecimento de alguns rumores ou maledicências a seu respeito. Dizem os seus detratores que ele simplesmente não existe, nunca existiu. Que se tratava apenas de um homem comum (provavelmente um débil mental), cuidadosamente maquiado como os monstros de cinema. E que se elecontinuasse aparecendo, a trama seria descoberta, se é que já não o fora, explicando-se, neste caso, o seu desaparecimento como uma providência secreta da polícia, colocando seus responsáveis na cadeia, enquanto ele próprio teria sido recolhido ao manicômio judiciário. E uma piada circulou no meio artístico, contando que ele fora vendido a um jardim zoológico estrangeiro.

Mas para nós que gostávamos dele não por sua imagem artificial e sim por sua figura (humana ou animal, não importa) de grande e espontânea sensibilidade, foi com grande emoção que lemos um pequeno texto do Acadêmico Anastácio Boaventura, publicado no Jornal de Letras, a respeito da última aparição dele, num circo da Praça Tiradentes, um pouco antes de seu colapso nervoso:

Havia em seu rosto – embora procurasse esconder-se atrás de uma extroversão defensiva – um horror a sua própria condição, ele se examinando nos olhos dos outros. Um sentimento entre o medo e a raiva, a vergonha e a dor, além de uma profunda e enigmática introspecção.

Como se ele realmente pensasse igual a um ser humano normal. E, tendo sido o único de sua espécie e mesmo espécie única entre todas as outras, elerefletisse isso em seu rosto desesperado, apesar de falsamente alegre: a angústia de ser igual apenas a si próprio e destinado a permanecer uma raridade, examinada com nojo, curiosidade, riso e temor. E, sendo uma criatura híbrida, metade animal, metade homem, talvez ele estivesse expressando em seu rosto a profunda melancolia por não ser um homem igual aos outros ou, então, simplesmente um animal vulgar e que, como todo e qualquer bicho, não se fizesse indagações”.

Mas se esse texto emocionou a nós, seus admiradores incondicionais, foi com grande revolta que tomamos conhecimento de uma notícia – ou melhor, uma cruel insinuação – em determinado jornal de segunda categoria, referindo-se à participação dele numa exposição itinerante, pelo interior do país, denominada Maravilhas Patológicas do Século Vinte. Exposição que incluiria o boi hermafrodita, o cavalo de cinco patas, o porco elétrico, a trepadeira carnívora, a mulher pigmeu (o jornalista insinuava que era muito requisitada para certas práticas orais), o sobrevivente de Hiroshima, além dele próprio, que seria, é claro, a maior atração.

 

 

Obs.: esse conto, publicado no livro Notas de Manfredo Rangel, Repórter, de 1973, constaria do livro 50 contos e 3 novelas de Sérgio Sant’Anna (Companhia das Letras, 2007). Foi um dos retirados, para o volume não ficar grande demais. Também não constou de meu Contos e novelas reunidos (Cia. das Letras, 1997). A republicação se faz necessária porque Notas de Manfredo Rangel, Repórter se encontra há muitos anos esgotado. A atmosfera do conto Ele é típica do início dos anos setenta.

 

 

(Texto revisto pelo autor)

 

 

 

 

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Sérgio Sant’Anna é carioca e um dos principais escritores brasileiros. Tem 18 livros publicados, inúmeros prêmios (Jabuti, Portugal Telecom, APCA) e livros traduzidos para vários idiomas. Seu livro mais recente é O conto zero e outras histórias, Companhia das Letras. E-mail: sergiosant@openlink.com.br




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