Eis o mundo de fora – II


.

 

Eis o mundo de fora, de Adrienne Myrtes: um voo de adagas.


“A criança é a maior prova de que o homem não nasce bom ”
acompanhado de “Eu era criança e criança não tem alma” são dois pedaços que dão uma ideia do sabor do romance Eis o mundo de fora, de Adrienne Myrtes. O gosto talvez venha da minha realidade de professor de escola pública, mas eu não vim falar de mim. O trecho que me causou arroubo, sublinhado e circulado dentro do livro enxuto e certeiro de Myrtes, estão entre outros que fazem o texto da autora não permitir desvios.

O romance publicado pela Ateliê Editorial, joga você no meio da vida de Luis e Irene e tranca a porta; não tem jeito, o negócio é saber no que vai dar. E dá. Luís e Irene lembram aquele jogo, eu fazia muito no teatro, onde duas pessoas se encostam uma na outra, como uma gangorra. Se uma sair do equilíbrio, quiser mais espaço, as duas caem. Nenhum deles está em ponto de vantagem, dependentes e complementares. E, como eu disse, nós ficamos no meio, pois os dois são extremos, extremos circulares, que trocam o tempo todo de posição, mas nunca ficam na mesma plataforma. Irene é razão, Luis é desejo. O eixo onde nos equilibramos é a dor. Mas não é uma dor angustiada, daquelas que arrastam os “ais”, é uma dor de carne e metais contra. Aquela que te mantém vivo, que te faz saber que temos que resolver o aqui, porque entender a gente nunca entende e parar de sofrer, nem morto.

Irene está em uma janela e Luis em outra, mas os dois mantêm as mãos dadas e trocam impressões sobre o mundo de fora. Acumulam-se. Aliás, de fora de onde? De quem? Se é por dentro de Irene e Luis que vigiamos, através de seus fígados acinzentados. Seus olhos autoritários, que resultam em uma prosa lenta, cheia de axiomas ecoados, são nosso filtro presse mundo de mal resolvidos. A lentidão não dá sono, pois há uma velocidade na imersão, como nos filmes de interrogatório, assuntos delicados e de profundidade escaldante são colocados em cena, sem pormenores, sem imbróglios até o final marreta.

O giro da ciranda que os dois impõem é habitado por personagens como Dona Auxiliadora, a matriarca de unhas cravadas na terra familiar, com preferências e autossuficiências de carvalho, mas todo carvalho um dia cai e já diziam sobre quanto maior o tamanho, não diziam? Irene vê a avó no quintal e diz “Pensei em ir ao quintal desejar um bom dia a ela, mas o dia dela parecia bom o suficiente”.A impossibilidade do toque, o resguardo de Irene é marcado por ausências, da mãe, Lea, a comedora de criancinhas, de cigarro em punho e tintura de cabelo desbotado, toda mãe é Lea, todas elas nos destroem de alguma forma, nos iludem, Lea talvez seja a mais sincera. E então temos Raul, Moacyr, Lurdinha. Professores que nos fodem, amores interessados ou sem interesse algum. Todos julgados e sentenciados por Irene e Luis, Luis enxerga por Irene, Irene fala por Luis.

Um diálogo grego, uma canção de elevador, uma banda de coreto, Eis o mundo de fora me lembra tudo isso, em cada momento colocamos uma canção pra chorar, que ninguém é completo, que todos são injustos e mimados, que populamos o mundo com verdades inexoráveis enquanto estamos habitados por incertezas infinitas, que não é o que somos que nos faz ser, mas o que não somos que nos faz completar as frases que os outros dizem, citar as ausências e não visitar os parentes no natal. Irene e Luis são porções Freudianas dos dois lados que nos regem, serpente que morde o próprio rabo.

Ao terminar o livro e pensar na autora, recordei de outro pernambucano, Osman Lins, quando diz que “ninguém realiza obra válida, antes de alcançar, como escritor e como homem, um estágio, um grau de sabedoria que lhe permite conceber, no papel ou no espírito, um plano para a obra a ser realizada”. Conheci Myrtes no canto de olho nas baladas literárias, nas oficinas do b_arco, seu jeito sempre calado e sorridente não me permitiu meia dúzia de palavras, jeito que escondia uma prosa tacape, com um grau alto de sabedoria.

http://www.atelie.com.br/shop/detalhe.php?id=589

 

Claudio Brites

 

 

……………………………………………………………II

 

A xilocaína não serve para digestivo. Cheguei a essa conclusão após meu quase suicídio. Compreendi que ao tentar me esquivar da dor eu tentava mastigar a vida, ter dentes, sei lá. Coisa pra doido esquecer, não pensar, não especular. Porque de especulação em especulação posso dar de cara com minhas tripas, meus motivos subliminares e não sei se aguento, se quero ter olhos para me ver. Sou hipermetrope e gosto disso.

Irene diz que nos salvamos pela dor, que ela nos mantém vivos.

Quando pergunto de que poderíamos ser salvos ela sentencia: De nossa estupidez. Irene diz muitas coisas, nem sempre escuto, o vento fala mais alto e eu me distraio. Talvez Irene esteja certa, talvez a vida seja essa sucessão de cortes e recortes com que sonhamos e que sangram. Talvez só exista verdade no sangue e na respiração. Talvez a vida seja uma engrenagem com vontade própria. Talvez eu seja um idiota cem por cento. Existe ainda a possibilidade de que minha idiotice também faça parte dessa engrenagem e como tal eu esteja enquadrado, inserido à revelia.

Na verdade gostaria de ser salvo pela distância. Ficar afastado da vida, receber uma suspensão. Não estar com algumas pessoas, não precisar contar histórias, enredar fatos, encantar palavras para dar explicações. Explicações que não tenho nem para mim.

Não há justificativa para o desejo de morrer, ou mesmo para a incerteza de que tenha sido ele o que moveu minha mão direita sobre o pulso esquerdo. Com a lâmina. Não. Tenho certeza de que era a morte minha meta, não poderia ser diferente. Cortar o pulso não é coisa que se faça assim, por impulso. A lâmina na mão e o gesto nervoso tateando o pensamento. E a xilocaína? Acovardamento frente à morte? Acanhamento diante da vida? Porque a dor só é possível aos vivos. Não tenho certeza de que era a meta, minha morte. E Irene? Sorte. Irene é meu demônio particular, tem força pra me proteger. Da minha estupidez.

Irene é minha dor de dente.

Não sei, meu raciocínio é um cachorro correndo atrás do rabo, em eterna desconfiança. Tenho preguiça de pensar, às vezes. Ou apenas penso que tenho, porque a maior parte do tempo penso e repenso. Dispenso comentários, sei que estou sendo contraditório e redundante, se é que é possível ser as duas coisas ao mesmo tempo.

Estou refém, cativo na cama, converso com meu travesseiro, enfronho-me em minha dor.

Pode ser que eu esteja ficando louco ou pode ser que essa seja a sanidade possível para mim. Para a vida como ela se instala, porque minha vida é uma senhora gorda e preguiçosa espalhada no sofá da sala, sem a menor intenção de ir embora. A vida é a possibilidade que tenho no momento, o que me resta. Por isso o que tenho a fazer é me levantar da cama e começar o meu dia.

O dia caminha sem mim, não precisa de mim.

Eu adoraria não precisar de ninguém. Do amor de ninguém. Para não ter de me sentir assim, um fraco e sem Raul. Raul é meu ponto fraco, meu calcanhar. Mas não sou forte nem belo, não sou Aquiles. Luis é um nome sem rosto, um personagem que ignora seu papel. Não sou ninguém, sou um ator. Para os gregos e os romanos, o papel do ator era um rolo de madeira em torno do qual se enrolava um pergaminho contendo o texto a ser dito e as instruções de sua interpretação.

Estou atrasadíssimo no grego e no latim.

Sou os personagens que tenho deixado de encenar, as possibilidades misturadas nas coxias. Raul deve ter razão. Razões que não encontro agora, entre os lençóis, onde procuro me dissolver. Entregar-me à liquidez de não saber o que fazer de mim e do resto de desejo que balbucia em meu ouvido. Raul. Provavelmente tem razão. Eu bem posso estar misturando as histórias, mas não. O que encenamos no palco foi ação teatral, sei disso, mas a reação que ele acorda em meus músculos é meu corpo quem me conta, não um script. Quero escrever uma história na pele dele, com suor e sêmen. Suor.

Não sei se estou com febre ou se vivo em delírio.

Irene precisa voltar para me ajudar a acordar. Não quero me levantar, não quero tirar o pijama, menos ainda vestir uma roupa, não quero me preocupar com comida, não quero procurar um novo trabalho, não quero encontrar diretores, autores, outros atores, não quero a vida de volta. Não quero essa prática da qual a vida nos incumbe porque ela me pesa. Dá trabalho. Quero rolar na cama até Irene chegar e tomar conta de mim.

Ela achará um jeito de me fazer continuar.

 

 

.

Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Publicou o livro de contos: A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), a novela juvenil: A Linda História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007) este último em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil, 2007) entre outras. E-mail: adriennemyrtes@hotmail.com

 

 

Claudio Brites é pai de dois filhos. Formado em Letras e Mestre em Linguística, atualmente cursa graduação em Psicologia. Trabalha como professor no ensino público municipal e como editor na Terracota editora. Organizou algumas coletâneas, tem publicado textos esparsos e em 2010 lançou um romance, A Tríade, em coautoria com mais três. Seu primeiro romance, Talvez, foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural – Proac 2011 – da Secretaria Estadual de Cultura, e será publicado ainda este ano.




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook