Eis o mundo de fora – III
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Eu precisava parar a dor.
Luis estava sentado diante de uma xícara de café que ele nunca acabava de mexer. Encontrei-o febril, depois de medicado, estava bem.
Mas que dor, criatura?
Perguntei impaciente com aquele movimento circular infinito. Não consegui fazê-lo trocar o pijama, mas ele tinha me deixado pentear seus cabelos. A testa dele em minha mão confirmava a ausência de febre.
A minha, é lógico.
Luis estava com pena de si, aquilo me irritou. Voltei ao meu lugar na mesa e olhei-o com indiferença.
Café precisa ser forte. E quente.
A dor me manteve vivo, eu não aguentei.
Quantas decepções o levaram a isso? Raul era a ponta de um iceberg cravado em seus olhos.
Não suporto café fraco. Frio então, chega a dar náuseas.
Eu não mereci a morte.
Percebi nele uma tristeza maior que simples autopiedade. A colher devolveu a mão dele à mesa e descansou no pires. Luis olhava para a xícara de café sem a mínima disposição para tomá-lo. Tomei o meu café e continuei olhando para ele.
O cheiro também é muito importante. O cheiro precisa incomodar o nariz. Não é curioso que algumas culturas leiam o destino na borra do café?
Irene, Irene, você não entende. Eu estou apaixonado pelo Raul.
E Silvio?
Sinceramente, não me interessa.
Luis falou com uma simplicidade quase santa e continuou hipnotizando a xícara. Seu egoísmo é comovente. Você quer tomar esse café de uma vez?
Luis pegou a xícara com calma e bebeu o café sem dar atenção a minha ironia. Colocou a xícara vazia de volta sobre o pires e passou a alisar a toalha da mesa como se aquela tarefa fosse salvar sua alma. Levantou o rosto e eu vi seus olhos borrados.
Você não compreende, não é?
Luis precisava de mim e eu precisava tirá-lo daquele estado. Eu não saberia lidar com aquele tipo de dependência se ela continuasse por mais cinco minutos. Enquanto empilhava as ideias desenhava com o polegar sobre o indicador da mão direita xilocaína.
Até compreendo que você queira morrer, mas passar xilocaína no pulso antes de cortar achando que não ia sentir dor é demais. Nunca vi nada tão gay.
Luis equilibrou um riso torto na boca.
Os gays não são tão frágeis. Sou eu.
Reorganizo a afirmação: você nunca foi tão Luis.
Eu consegui me superar, não foi?
Continuou alisando a toalha. Fui até ele e o beijei.
A toalha já está apaixonada, larga ela. Vamos, levantando da mesa e cuidando da vida. Você lava as xícaras porque eu fiz o café, depois se arrume que precisamos ir ao mercado.
Recomeçou a exploração. A cada dia você se parece mais com sua avó.
Não gostei da observação, fiz de conta que não ouvi. Fui ao quarto pegar a bolsa.
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Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Publicou o livro de contos: A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), a novela juvenil: A Linda História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007) este último em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil, 2007) entre outras. E-mail: adriennemyrtes@hotmail.com

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