Eis o mundo de fora


 

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Irene sempre diz muitas coisas. Luis também. Os protagonistas Luis e Irene dizem o tempo todo. E nós, leitores, podemos escutá-los no que eles próprios ao dizerem talvez não suportem ouvir. Irene e Luis nos trazem notícias da vida e da morte. Cantam a morte, cantam a vida. ‘Eis o mundo de fora’ talvez seja o mundo de Irene e Luis visto por nós, que acessamos a ambas as vozes que se intercalam nesse dueto. Mas talvez não seja simples assim, na medida em que Irene e Luis podem não ser os protagonistas. Talvez sejam a morte e a vida, e Irene e Luis sejam apenas cantados por elas. Quem canta quem? Como desembaraçar a vida da morte? Luis de Irene? Irene de sua avó? Esse jogo de possibilidades vocais, narrativas, de ponto de vista, numa espécie de mise en abime é o que, por um lado, permite a carnadura do romance e, por outro, o que o volatiliza para que nele nos instalemos e o vivamos como algo muito conhecido, ainda que esquecido e mesmo ocultado. Como nos separar de Irene e Luis? Se o mais improvável deles torna-se tão provável na leitura, ao leitor, como a tentativa de suicídio de Luis. O mais comezinho e cru nesse romance é o que paradoxalmente assume outra dimensão. Os odores, os resíduos, os pruídos, os líquidos mais humanos acenam como índices de transcendência — que parece não se cumprir, eis a graça. O vocabulário muita vezes contundente, realista ou até mesmo médico-científico nos traz de volta ao chão, ao rés do chão, nos frustrando expectativas de saídas edificantes. Não nos enganemos: se cada capítulo parece se resolver nele mesmo, tão amarradinho, à moda do repente, não há sedição. Este romance de Adrienne Myrtes lateja. Afinal, não à toa Irene diz muitas coisas, e entre elas que nos salvamos pela dor, que ela nos mantém vivos.

Luciana Penna é escritora e roteirista

 

 

 

I

 

O diabo tocava flauta doce e me seduzia com olhos de bode.

Era o grande Pan sorrindo sob os cílios. Pulei da varanda para cair em seus braços. Dez andares. A flauta se transformou numa cobra e armou o bote. Gritei. O diabo gritou. Era uma voz desenraizada dos nervos.

Coisa medonha.

Mas não era o diabo nem eu. Era Luis gritando na porta do quarto.

Reconheci. Caí do sonho sobre a cama e pulei dela ainda sonolenta.

Ele já entrava. A porta aberta, a luz colada a suas costas. Desviei o olhar para o braço direito dele que se dobrava, a mão comprimindo o antebraço esquerdo. Pulso.

Um tom de vermelho pintava um pano torcido que o ajudava a apertar o braço e aquilo era sangue. Sangue que empapava o pano, uma camiseta torcida com a qual ele tentava segurar a hemorragia. Meu raciocínio demorava, as ideias se encostavam na parede da cabeça para ficarem de pé. Às cegas. Minhas mãos ao contrário raciocinavam independentes, iam cumprindo o necessário para prestar socorro. Meus pés obedeciam as mãos, seguiam sem questionamento.

Vi-me pegando a calça que estava jogada em cima de uma cadeira, puxando uma blusa do armário. Vestida, correndo para a cozinha e ligando para o ponto de táxi. O número, um ímã, na porta da geladeira. Voltando ao meu quarto, Luis ainda lá, agora sentado na cama. Chorando. Meus lençóis espalhando o corpo de uma mancha. Voltei a escutar seu lamento. Gemia.

A dor. Eu não consigo. Irene, me ajuda.

Coloquei a bolsa no ombro e peguei-o pela mão. Comprimi uma toalha limpa no corte. Ele retraiu o braço involuntariamente e me seguiu.

Irene, me diz que vai parar. Eu não aguento.

Saímos.

No táxi Luis chorava calado. A dor agora parecia maior. Situação absurda: Luis apertando o corte, tentando segurar a vida, prender seu fluxo do lado de dentro das veias. O sangue, quase bonito, fugindo dele.

O táxi rodando macio. Mudo. As ruas passavam sem nos cumprimentar, nem nos viam, abismadas em seus respiros. A respiração de Luis tropeçando em meu ouvido.

Silêncio.

O hospital com a boca aberta para nós. A mão enluvada das enfermeiras. Das auxiliares. Da luz branca que nos tocava no ombro, de leve. Um corredor parado, coagulado de queixas, pessoas, cortes, fraturas, dores expostas em veias e nervos, atropelados pela falta de espaço.

Um homem, sentado, sustentava a bolsa de soro pelo fio do equipo igual a um balão num parque de diversões.

Se eu não estivesse anestesiada eu bateria em Luis.

Que merda foi essa?

Perguntei baixo. Só pra mim.

Luis não ouviu. Os olhos parados nas mãos da auxiliar de enfermagem que fazia o curativo no meio do corredor. Gestos rápidos, bruscos, eficientes como devem ser quando se lida com gente em histeria. Parecia se perguntar se Luis não tinha coisa melhor a fazer àquela hora da  madrugada,  quando os seres humanos deveriam estar   dormindo, trepando ou se embriagando. Mas essa pergunta era minha. Tonteira.

O branco do hospital me dando enjoo. Vertigem de alvura. As imagens inspiravam, expiravam, evaporavam no éter. Odor cegando o nariz. Afastei-me um pouco, os olhos procurando um bebedouro. Achei. Um  braço engessado equilibrava uma criança e fazia malabarismos para brincar com o jorro da água salpicando o chão ao redor. Desisti de ir até lá e engoli a saliva tentando umedecer a garganta, mas era difícil parecer normal quando se está prestando assistência a alguém que desistiu de se suicidar.

Eu quis matar Luis.

O celular conduziu a informação das horas de dentro da bolsa até meus olhos, ainda tontos com tanta luz branca. Pisquei tentando guardar a informação. Seria bom dormir um pouco antes de ir trabalhar. E Luis teria de ficar bem. Os quatro pontos no pulso esquerdo iriam mantê-lo quieto por algum tempo, quatro espaçados e frouxos pontos. Aquilo ia cicatrizar de qualquer jeito. Fui até ele e fiz um carinho em seu cabelo. A auxiliar de enfermagem me olhou solidária, em seguida orientou como cuidar do corte nos próximos dias e o prazo para a retirada do fio de sutura. Luis segurou em minha mão e eu o levei embora dali.

Outro táxi e estaríamos de volta para casa. Ele encostou-se em mim procurando colo. Abracei-o.

Você ainda me ama?

Eu estou me controlando pra não te bater.

Eu amo você muito.

Bicha louca.

 

 

 

 

 

 

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Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. É também artista plástica. Publicou o livro de contos: A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), a novela juvenil: A Linda História de Linda em Olinda (Editora Escala educacional, 2007) este último em parceria com o escritor Marcelino Freire e participou, das antologias Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004) e 35 Segredos para Chegar a Lugar Nenhum – Literatura de Baixo-Ajuda (Bertrand Brasil, 2007) entre outras. E-mail: adriennemyrtes@hotmail.com




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