Chuva


 

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“Estranho poder esse, o da chuva / (e das bombas) / de nos reunir solidários / nos abrigos”

João Batista Jorge

 

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Vejo todas elas, pessoas, passando, não consigo acompanhar o ritmo. São dezenas por minuto. Começo a me cansar, meu pescoço gira, meus olhos vão e voltam, suor. Não é a chuva, quinze minutos à porta da pastelaria, 3 cigarros e apenas uma moeda no bolso. Você deve chegar a qualquer momento, eu espero. Estou esperando há muito tempo.

Não é aquela calça jeans, não é aquela saia curta nem a saia longa, não é o vestido, o macacão, o terninho de escritório, o crachá batendo nos peitos, a camiseta vermelha, grandes seios se escondendo molhados; nenhuma das sombrinhas que roçam quase furam meus olhos, a mão que joga a guimba no passeio; não é a sandália de couro nem a de borracha, a bota marrom até os joelhos, a meia listrada de várias cores acima de um tênis sujo, nenhum dos pés descalços pedintes; não é aqueles cabelos longos e pretos nem os louros curtos, não são os ruivos armados com cuidado, os crespos nem os invisíveis sob lenço anacrônico; não é a pressa tropeçando numa falha da calçada, não são passos tão lentos em outro tempo, pernas trôpegas de happy-hour; olhos escondidos por óculos escuros também não é, também não é qualquer desses olhos pretos nem castanhos nem verdes nem azuis, não é desses olhares inteligentes arrogantes atrás de lentes de graus modernos; não sei, não é ninguém que tenha passado por aqui nesta esquina nos últimos vinte minutos, mas eu ainda espero.

Foi para isso que vim. Sob a marquise, próximo ao tacho de óleo quente, ao lado do guichê do caixa, de olho no balcão onde estão a cafeteira, os molhos, os guardanapos, talheres e copos sujos, pratos com salgados, sucos, saleiros, paliteiros e alguns braços apoiados. Sabendo que atrás do balcão as garçonetes, todos os equipamentos e objetos necessários e, antes, os banquinhos, as lixeiras, os fregueses, talvez algum moleque querendo folgar trocado alheio. O chão sujo, lama trazida por pés famintos, líquidos derramados, respingos da chuva que se destaca na escuridão onde assustado um cão começa a ser no centro da cidade, início de noite fim de tarde de multidões que vão para casa, para trabalho, para bar, onde tanta gente. E se elas todas parassem agora? Não, assim você nunca chegaria e é preciso se ver, contas acertar, coisas não podem ficar assim, desse modo, de hoje não passa, mas, claro, na boa, diálogo aberto, sincero, franco, transparente, afinal, depois de tanto tempo, não é mesmo? Adultos?

Enquanto os pingos na marquise que é de zinco, algum metal sonoro, ouço o motor dos carros dos ônibus das motos; saltos afogando poças, as músicas que escapam dos aparelhos das lojas, das cabeçafones, sirenes vozes, ouço os prédios desta esquina reclamando alguma coisa importante, mas eu não entendo, ouço tudo que a hora produz na cidade e sua voz implorando que eu viesse, repetindo que era muito importante hoje, lágrimas talvez gemendo ao descer seu rosto, as narinas sugando restos de ar e muco, o clique do fone no gancho antes que eu pudesse dizer que.

A chuva ficou mais forte, a demora mais longa, pessoas se aglomeram perto de mim, preciso não queimar ninguém, joguei o cigarro fora, os cheiros são fortes, perfumes, ansiedade, raiva, frustração, impotência e isso me sufoca e me aflige além da conta. Volto para a pastelaria ainda mais cheia, cato minha única moeda, peço um pastel de bacalhau, que é mais caro, e logo ao morder, você chegando, fechando a sombrinha, olhando para o chão e puxando o capuz para as costas. É, finalmente você.

 

 

 

 

 

 

 

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Sérgio Fantini nasceu em Belo Horizonte, onde reside. A partir de 1976, publicou zines e livros de poemas; realizou shows, exposições, recitais e performances.Tem textos nas seguintes antologias: Revista Literária da UFMGNovos Contistas Mineiros (Mercado Aberto), Contos Jovens (Brasiliense), Belo Horizonte, a Cidade Escrita (ALMG/UFMG), Temporada de Poesia/Salto de Tigre (PBH), Miniantologia da minipoesia brasileira (PorOra), Geração 90, Manuscritos de Computador (Boitempo), Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê), Contos Cruéis (Geração), Quartas histórias, contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (Garamond), Cenas da favela – as melhores histórias da periferia brasileira (Geração/Ediouro), 35 maneiras de chegar a lugar nenhum (Bertrand Brasil), Capitu mandou flores – contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (Geração), Pitanga (Lisboa, Portugal), 90-00 – cuentos brasileños contemporáneos (Ediciones Copé, Peru), Rock Book – contos da era da guitarra (Prumo), Coletivo 21 (Autêntica) e Aos seus pés (Annablume). Publicou os livros Diz XisCada Um Cada UmMateriaes (Dubolso), Coleta Seletiva (Ciência do Acidente), A ponto de explodir, Camping Pop (Yiyi Jambo, Paraguai), Silas (Jovens Escribas) e A Baleia Conceição (Formato). Blogue: sergiofantini.blogspot.com E-mail: sergiofantini@gmail.com




Comentários (3 comentários)

  1. Igor de Albuquerque, Gosto do conto. Imagens muito bonitas, ritmo intenso, cidade aberta sob chuva. Me lembra a letra (provavelmente de Tatit) de “Ladeira da Memória”.
    23 maio, 2012 as 13:40
  2. admin, opa. gosto muito dessa música. a letra é o do Zé Carlos Ribeiro. Edson
    31 maio, 2012 as 20:51

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