Carne Viva



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Não precisava falar uma palavra. Um sorriso estranho e impudico dizia tudo. Nunca vi nada igual. Tinha dezenove anos, mas parecia concentrar os humores, instintos e desejos de todas as mulheres do mundo. Desde a fêmea primordial à mais libidinosa ninfeta do presente. Duvido que qualquer homem, com votos perenes de castidade, resistisse àquele olhar. Eu resisti. Durante pouco menos de dois meses. Encontrávamo-nos todos os dias. Motivos de natureza profissional.

Nunca fui indiferente à ebulição das paixões. Pelo contrário. Dono de um temperamento extrovertido, trago comigo, desde a mais tenra puberdade, o instinto pegajoso da lascívia. Então, por que resisti tanto tempo? Porque a repressão dos tabus e dos preconceitos era mais forte. Foi mais forte. Nada teria força suficiente para conter, por muito tempo, aquela avalanche. Ademais, vestígio remanescente dos meus ancestrais caçadores, o perigo estimulava o desejo. Ensaios unilaterais praticados dentro do automóvel, só serviam para transformar em incêndio, o que era uma fogueira.

Casado, trinta e seis anos. Num lugar de tamanho médio onde vigoravam resquícios da Inquisição. Era noite. Um vento escuro entrava pelas janelas do carro. Mas um sol de meio dia concentrava os seus raios sobre o capô. Eu dirigia, mas não guiava. Quase não via por onde passava. E me sentia vigiado pelos olhares do universo. Parecia percorrer uma longa pista de corridas construída especificamente para aquela viagem. E que jamais haveria uma chegança. Parte da platéia era de censores que meneavam as cabeças. A outra, era constituída de sátiros que incentivavam e aplaudiam.

Não se perdeu tempo com preliminares. Havia urgência urgentíssima. Dilaceramos as roupas um do outro como se a intenção fosse nos esfolarmos mutuamente. Atirou-se na enorme cama redonda e eu sobre ela.

– Assim não. Urrou. Por trás!

Virei-a de bruços e pus um travesseiro sob o púbis.

– Empina a bunda, sua puta.

– Também não quero compaixão. Enfia de uma só vez. Rugiu alto enquanto comprimia, com os dentes, o outro travesseiro.

Invadi-a com dificuldade. Forçando muito a penetração. Uma dor consentida resultou num grito. E a seguir em gemidos prolongados. Não tenho idéia de quanto tempo durou. Pode ter sido um minuto ou uma hora. No cérebro não havia espaço para outro pensamento. Também, não havia descanso. Os movimentos eram cada vez mais rápidos e as estocadas, violentas.

– Mais depressa seu cavalo. Disse com uma voz rouca. Voz de maluca. Me dilacera, me faz sofrer, me mata pelo amor de Deus.

Ante essa mistura de concupiscência e blasfêmia não me contive. E explodi. Irrigando copiosamente aquelas entranhas mornas e tenras com esguichos rítmicos e vigorosos.

Pode-se esquecer acontecimentos marcantes. Jamais experiências iguais a essa. Permanecem indeléveis como marcas de gado, infligidas a ferro em brasa. Mesmo que há muito tempo as lesões já tenham cicatrizado. São momentos amalgamados de violência e prazer. De mistérios e sortilégios. E quanto mais o tempo passa, mais cresce a sensação de que se viveu num mundo irreal. De fantasia e de magia. Às vezes parece até que nem existiu.

 

 

 

 

 

 

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Raymundo Silveira é médico e escritor. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em 2011 recebeu o Prêmio Nacional de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”, promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Foi um dos vencedores da Bolsa Funarte de Criação Literária – 2010, com o livro “Medicina Crônica”. E-mail: raysilveira@uol.com.br




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