Camafeu escarlate
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Por volta de 2012, o Claudio Daniel me apresentou o livro Camafeu escarlate, da Andréia Carvalho, publicado pela Lumme naquele mesmo ano. Ano passado, em 2015, ele me falou que a Andréia tinha mais dois livros: A cortesã do infinito transparente, de 2011, também da Lumme, e Grimório de gavita, de 2014, da Maçã de Vidro.
Nos comentários que faço a seguir, vou me dedicar ao Camafeu escarlate, escrito depois da Cortesã e antes do Grimório, mas que eu li primeiro – quero me valer daquela primeira leitura e das primeiras impressões que tive de sua poesia.
Em tempos das crises do sujeito e da representação, como soaria chamar a Andréia de bruxa? Ela é bastante bonita, a bruxa “horrenda” ela não pode ser. Também não poderia ser a bruxa bonita, mas maliciosa, isso seria machismo – projetar na mulher apenas a sensualidade – e misoginia – a mulher letal: cuidado, ela pode te matar! O cristianismo, enquanto epifania da culpa e da repressão, projetaria nela “a enfermidade do sexo”, que faz de toda mulher uma bruxa; assim foi com Joana D’Arc, mas também teria sido com Joyce Mansour.
Se toda mulher é bruxa – o ovário enquanto força, e não como histeria –, isso faria, da bruxaria de Andréia, força telúrica? Pensar assim seria ação afirmativa; contudo, também pode ser outro disfarce machista. Louvar mulheres porque são como a “terra”, geradoras de frutos, é metáfora bastante sugestiva, todavia, isso permite restringir a mulher somente a fazeres telúricos, reservando aos homens o pensamento olímpico, quer dizer, a metafísica – configura-se outro modo de excluir a mulher dos “assuntos dos homens”. Se Isadora Duncan dançando descalça é bastante telúrica, Hildegard von Bingen e Maria Curi são tão doutoras do pensamento como Alberto Magno ou Isaac Newton.
A bruxaria/poesia da Andréia pertence a esses dois universos: (1) é substância, celebra as festas da terra e da carne; (2) é forma, elabora a filosofia esotérica. Como ambos surgem complexificados em sua poesia, valendo-me dos seus poemas, começo com aqueles em que há ênfase na celebração.
Na mitologia egípcia, em linhas gerais, Set oscila entre destruir e proteger: Set assassina seu irmão Osíris e prejudica o sobrinho Hórus na sucessão ao pai; Set protege Rá durante seu ciclo noturno. As religiões são sempre polêmicas; com o passar dos anos, essas polêmicas tendem a crescer nas muitas interpretações sofridas ao longo da história. Por isso mesmo, não existem mitos originais, mas variações mitológicas de temas semelhantes. Se para a história e a antropologia os atributos dos deuses da antiguidade devem ser rigorosamente examinados, para a poesia moderna, isso não tem a mesma importância, uma vez que poetas inventam atributos, deuses e mitologias a todo momento.
Em sua mitologia, Set é associado à violência, escuridão, guerra, deserto, serpentes e, até mesmo, ao Satã do satanismo contemporâneo. É a esse Set, fruto das leituras modernas da história das religiões, que Andréia se refere neste poema:
infusão de set
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teus passos de angostura
deitarei
no sudário de ervas
da cova dos reis
o pulso mumificado
entre linhos e visgos
na terra messalina
que tudo doa
messias
assassinos
& aromas
além de agostos
de assopros
de angústias
em teus passos de angustura
rainha
vendada
maltrapilha
deitarei
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Esse poema está logo no início do Camafeu Escarlate; é o poema número 3, que, como os dois anteriores – o nº 1, sem título, e “ouro de ouroborus” –, tematiza ritos de transformação. Por justamente estarem no início dos 40 poemas do volume, seus versos podem ser lidos como batismo tanto nos ritos iniciáticos, presentes em outros poemas, como batismo necessário para percorrer as leituras, imprimindo na série de poemas uma narrativa, ao mesmo tempo esotérica – penetrar nos mitos – e metalinguística – penetrar no livro Camafeu Escarlate e em sua poesia.
Mas que batismo é esse? Cristão, certamente, ele não é; trata-se de paganismo e, quem sabe, satanismo – não o Satã do Exorcista, aquela bobagem, mas de deuses pagãos, reprimidos pelo cristianismo e suas mazelas. A imersão na bruma de Set encaminha o rito, infusões servem para curar; trata-se de mumificação, o rito tematiza o mundo da morte e sua superação. A morte simbólica rege todas as outras mortes; no símbolo, renascimento e morte são definidos em tensão dialética – tensão que se espalha por todas as figuras do poema: rainha maltrapilha, messias e assassinos, visgos e aromas.
Em sua mitologia, Camafeu escarlate traduz esse mergulho nas mitologias telúricas em dois movimentos: um que desce para subir, outro que sobe para descer – como em todo símbolo. Em “ponto cantado de mu”, invoca-se uma divindade atribuída à renovação da vida; o poema tematiza o mesmo que a flor de Lótus enraizada na lama:
ponto cantado de mu
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vê
quem te chama
sacerdotisa de lata
pupila extravasada
ninfa brusca
gêmea de prata
cnidária
dá-me a mão duende
dá-me a hóstia de alga
nutritiva
plástica
nem que me seja amarga
nem que me seja farta
nem que nela
tu te partas
em pláncton
em limbo
em trovejada
sou teu cavalo marinho
de opala
trote de jade na veia
de hades
dá-me a mão duende
no transe
que invades
a carne
putrefaz
para
que te
alastres
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Não vou me perder analisando o poema; chamo a atenção para dois efeitos de sentido: (1) um na invocação; (2) outro, as metamorfoses enquanto metáforas do renascimento. Nas duas primeiras estrofes, há uma invocação – “vê / quem te chama // sacerdotisa de lata / pupila extravasada” –; nela, é notável como a invocadora se funde com a divindade invocada. Depois do chamado inicial, não se sabe ao certo se a “sacerdotisa de lata” é “quem te chama” – a invocadora –, ou é a própria divindade – o invocado – manifestada.
Essa fusão das pessoas do discurso é gerada pela ambiguidade sintática em que ora a “sacerdotisa” é o vocativo – a deusa invocada –, ora “a sacerdotisa” é o mesmo sujeito da oração “quem te chama” – a invocadora. Nessa fusão, cumpre-se o rito em que a invocadora recebe a divindade invocada, tornando-se ela por meio da oração – no caso, oração com o sentido de reza, mas também com sentido de frase com verbo, a oração ambígua do poema geradora da fusão mítica. Por isso mesmo “ponto”; “ponto” no sentido de reza para receber o santo.
Quanto às metamorfoses, chamo atenção para o jade e sua cor verde. No livro O simbolismo do corpo humano, Annick de Souzenelle, opondo vegetais e animais, discute o simbolismo das cores verde e vermelho. Partindo da dicotomia básica do pensamento esotérico, material vs. espiritual, o vermelho seria homologado à matéria e o verde, ao espírito. Hades, ao dominar o mundo subterrâneo, estaria mais próximo do vermelho, entretanto, no corpo do Hades da Andréia Carvalho corre sangue verde; o símbolo tematiza a ascensão espiritual a partir do material – “trote de jade na veia”.
Já no poema “patris”, penso tratar-se do processo contrário. Em “patris”, o pai é o carbono, elemento químico fundamental da química orgânica, quer dizer, a química da vida, mas também está na formação do carvão e do diamante. Nos versos, a transformação do carvão em diamante pode ser correlacionada à depuração do mundo material, analogamente às transformações alquímicas do chumbo em ouro. Se em “ponto cantado de um” o sangue verde indica ascensão, em “patris” trata-se de descer à essência da matéria viva para produzir o brilho.
patris
.pai, meu pai carbono. ensina-me a trilha diamantina.
com menos arestas. com mais pontes. brilha tão simé-
trica tua face. e mesmo rude. cortante. percorro-te
as vias. Entendendo-as. nos conflitos, nos confrontos,
nas garras. defesas que navalham docilidades. mas
quero agora. ter-te na cinética da suavidade. um
poema. uma palavra costeira. nas metamorfoses dos
ciclones. espreito teus olhos neste imenso espelho
enviesado. e te invoco os químicos candeeiros. luzeiros
de farol em morro castigado. perfeitos equilíbrios na
noite sem lua. ando pelos dias. voltei para o mar. e
vi medos cansados. migrando como pássaros de gelo.
caminhos brilhantes. caminhos brilhantes. albedos de
apolo. mas ensina-me novamente. os caminhos que
me invocam. um versículo. uma missa verdadeira. nos
altares menestréis. fiéis escudeiros. da sombra de si
mesmo. espadachins de pan. bebendo ao pranto da
escura sentença.
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A filosofia esotérica pode ser confirmada em outros poemas, em que ela se explicita com mais ênfase, como, por exemplo, em “gálan” e “malleus maleficarum”: (1) em “galán”, práticas esotéricas são aproximadas da poesia e de sua resistência às alienações próprias do pensamento positivista, portanto, burguês; (2) em “malleus maleficarum”, Andréia se vale do famoso “martelo das feiticeiras”, o célebre livro da inquisição de combate à mulher, mas em sua versão feminista, com simbolismo pagão, basta conferir isso na invocação “cassandra circe isis istar innana astartéia babalon / irmã // em nome da mãe”.
galán
enquanto gritam
lá fora
proibido usar astrologia
utilizar talismãs
sussurrar sortilégios
viver poesia
há o sacrifício de virgens palavras
lá fora
a memória induzida por psicoterapia
lá fora
reabsorvo meu ectoplasma
a psique regurgita os sete véus
de um torah
minha eucaristia é interior
galán
sem roupa
todos somos judeus
galán
sem satã
todos somos seus
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malleus maleficarum
fui druida esta tarde
por ti irmão
deu-me de beber este cálice
o elixir de almas abatidas
brancas como o gelo dos precipícios
queimaram-me a garganta
com um fogo lento de carvalhos
no meu cozido de ervas curativas
delataram a corrosão
eu, irmã f. envelhecida, demonizada
em nome do pai, do filho e do espírito
acolhida assexuada
no círculo cardíaco de baphomet
serei druida
no amanhecer
irmão por ti
cassandra circe isis istar innana astartéia babalon
irmã
em nome da mãe
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Ainda no tema do Esoterismo, vale a pena lembrar novamente o simbolismo do corpo humano. A filosofia esotérica dá bastante relevância ao corpo humano enquanto símbolo em suas analogias com a natureza e com a metafísica, valendo-se, basicamente, das muitas referências feitas ao corpo nos discursos míticos e religiosos. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, o corpo é feito à imagem e semelhança de Deus, permitindo redes de analogias entre o corpo e o cosmos; na astrologia, cada signo do zodíaco rege uma parte do corpo.
Em religiões ascéticas, o corpo é visto como empecilho à ascensão espiritual, todavia, contrariamente, há crenças em que o erotismo, relacionado a símbolos cosmogônicos e à energia vital, é essencial para a transcendência. Andréia, obviamente, tematiza o simbolismo do corpo humano inserido neste último ponto vista:
amor tetrabiblos
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na cela que é corpo
fechado
planisfério
fagulha votiva
de hélio
agoniza
a virgem fria
dos cleros
na cela que é o corpo
outro corpo
herético
sigila
o cio hermético
almagesto
soubessem as negras centelhas
que esta crença liberta
extinguiriam todas as vendas
matéria dolorosa
evaporada
rezassem as missas vermelhas
que este júbilo desperta
constelariam todas as sendas
matéria gloriosa
revelada
na cela que é o corpo
outro corpo
duplicata
homúnculo & quimera
éter na terra
cinza no céu
hieros gamos na atmosfera
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Se hierogamia significa a união sexual entre seres divinos ou entre seres humanos e divinos, enquanto símbolo, essa união tende a valorizar o sexo, também, em suas funções míticas e religiosas.
Para terminar, em “apófis 3d”, ao lado de todos os temas e figuras da poesia da Andréia Carvalho mencionados antes, encontra-se, na descrição da vida dos gatos, uma indicação da sua postura de ser poeta:
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apófis 3d
enquanto as areias do egito
eclodem em maná
o gato quase selvagem
no sofá
a coluna de esfinge sonolenta
nem belzebu
afugenta
a pata desatenta
entre picotes de revista
sem foto ou ementa
à colisão
esquecida
enrosca-se na almofada
em órbita
de naja
quando apófis
sacudir a casa
com seus guizos e larvas
o miado despertará
namastês e saravás
toda eclosão esparsa
enfim
unificada
salvos serão
144.000 astronautas
sem raça, sem medo, sem pragas
o felino, a serpente
e as carcaças
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Em sua visão do felino, talvez Andréia veja a si mesma. Seu gato, símbolo do poema, já que nele nasce, é seu espelho enquanto poeta; ela o vê como se define a si mesma por meio da poesia.
Na próxima postagem, vou falar da poesia da Gabriela Marcondes.
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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de: Semiótica visual – os percursos do olhar; Análise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicações; Análise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SM; Irmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto foge; Palavra quase muro; Concretos e delirantes; Os tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com
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