Atravessar o que nos nega
…………………Atravessar o que nos nega: chegar ao Sim
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A posição de um artista é humilde.
Ele é essencialmente um canal.
MONDRIAN
MUSEU DA MEMÓRIA – Colagem do autor
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Meu amigo Jan Oldenburg, holandês, trocou a Holanda pela Amazônia – o que eu também faria para estar mais próxima da verdade das coisas, na Natureza – mas, em consequência, também Amsterdã por Belém – o que eu não faria nem morto pela violência das nossas ruas, bem mais capaz de se impor do que a incapacidade dos nossos governantes de a eliminar.
Assim, foi nestas ruas brutais que nos conhecemos.
Mas na Serenidade da amizade.
E Jan conheceu os livros de Andara. E se dispôs a traduzir o meu livro Ó Serdespanto e alguns cantos/poemas de Andara para a sua língua.
Jan é um tradutor minucioso, exaustivo, que não se limita às palavras e seu significado imediato. A impressão que se tem é que ele tenta o impossível: fazer do texto traduzido um gêmeo do próprio original.
Se no meu caso vai conseguir, não sei – mas tenho a impressão que ele espera me fazer revelar algum segredo que lhe permita atingir seu objetivo.
E assim vamos, através de uns diálogos entre Autor & Tradutor que parecem mais escavações de túneis descendo em minas profundas, que podem interessar a quem a Literatura, como se diz, interessar possa.
Lembro aqui alguns desses diálogos, e passo a você.
Se a Literatura, por acaso, lhe interessa.
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I
Duchamp e o Sonhador Prático
Jan,
eu digo a ele: quando falo que sou um Sonhador Prático, como Marcel Duchamp, é para que se entenda que não divido em um dualismo rígido a metade esquerda e a metade direita do meu cérebro – ou, mais precisamente: que não é por sonhar Andara que não mantenho um olho aberto sobre a estupidez do mundo ao meu redor – quer dizer, sonhar não é necessariamente se alienar, ao contrário: é um compromisso profundo, e já que citaste Dostoievski, um imergir no Subsolo Humano.
Duchamp perturbou instalando pregos em um ferro de engomar.
Mas em Andara onde predomina a Natureza – digo – não há nada da Civilização, nem suas cidades, nem seus valores, e muito menos sua Tecnologia: televisões, aviões, luz elétrica – tudo é substituído por Visões, asas de aves ou anjos e pela Claridade das estrelas, também pela que às vezes vejo no fundo dos olhos das pessoas e ou emitida pelas coisas – que segundo a alquimia de Paracelso tem cada uma sua própria luz que a esmagadora luz do Sol oculta. Daí o culto ao Sol Negro dos alquimistas.
Claro que eu também vou, como Duchamp, para o combate direto com a Civilização – mas não distorcendo como ele os utensílios que ela cultura. Meu combate é fazer a Floresta voltar sobre a Civilização que tenta a expulsar e tomar o seu lugar sobre a Terra.
Mas esse é um dos campos de batalha.
Há outro, essencial na Literatura: a libertação da Linguagem, para permitir a emersão de outras realidades – mantidas submersas pela Civilização, que teme Freud e o converte em Terapia para não ver seus abismos obscuros: o chamado Inconsciente. Para mim, mais um dualismo do Medo, porque não me vejo separado em Consciência e Inconsciente: eu vivo é em uma Esfera que é toda Consciência com seus claros-escuros para poder se dar conta tanto dos claros quanto dos escuros da Vida, imerso em um Oceano único, esfera onde apenas se dá que quanto mais à tona, mais claro, e quanto mais no fundo, mais escuro.
Por isso também Andara é obscura como as regiões visuais criadas por Hieronimus Bosch, que tu dizes ver nela – mas sua demanda é a de uma Ascensão, indo para a Noite Estrelada de Van Gogh, meu mais amado desses que pintam.
E são esses os meus caminhos, melhor chamar minhas trans-mutações alquímicas pela Palavra: Natureza & Civilização – como confronto, mas Claro & Escuro como diálogo. Ah, é nesse território verbal que tu estás te metendo, Jan.
É um percurso muito antigo. Mais Medieval do que Moderno.
E até mais ancestral, se eu for levar em conta a percepção que outros têm tido dele. Como a de um crítico francês, do Le Monde, Jean de tal, não lembro o nome todo, que após passar por Belém e levar livros de Andara para Paris me mandando um e-mail dizendo: – Escreves como João Evangelista, o Discípulo Dileto.
Mas eu não sou discípulo dileto nem detestado de ninguém: tenho é cúmplices que me precederam e que virão depois de mim como eu vim depois deles: Kafka, Beckett, Guimarães Rosa, Rulfo, Gombrowicz, Bruno Schulz, Krudy Gyula, Flann O’Brien, Céline, Giono, Melville, Hawthorne, Swift, Cervantes, Barthazar Gracián – digo com Alegria seus Nomes, e ainda: Vallejo, Lautréamont, Pessoa, Trakl, Celan, Rilke, Novalis, Hoelderling, Whitman, Emille Dickinson – e os conclamo para os nossos diálogos todos de uma vez.
Então, não como discípulo – muito menos como alguém que sofre de uma ansiedade de influência e quer matar seus antecessores, ou mestres literários, como investiga esses impulsos obscuros Harold Bloom – me situo no que Shitao, o Monge Abóbara-Amarga, compreendeu: a Criação do artista como Pincelada Única: ato unido ao Cosmos todo, descendo, em um Único Gesto, pulsação liberta das obstruções mentais, pelo corpo humano até a mão, o pincel ou lápis, e a tela ou papel ou a mão virtual que escreve hoje em dia palavras e pinta imagens que não deixam rastros.
Assim, sem seguir nada e ninguém, mas bem acompanhado pelos meus cúmplices, vou voando e tombando por mim mesmo – sempre lembrando o que Shitao disse: – Não sigo nenhum mestre, eles é que me seguem – o que nos leva a Borges sonhando Kafka como o criador de seus predecessores.
Quanto ao João de Patmos do Apocalypse que Andara também te faz lembrar, se tiver sido o mesmo João lembrado pelo crítico francês a propósito de Andara, aquele que num dos Evangelhos escreveu: – No Princípio era o Verbo, e o Verbo se fez Carne – essa Carne que os pregos de Duchamp querem dilacerar – e eu gostaria era de Cicatrizar. Pela Cicatriz Perfeita – que existe antes da ferida surgir.
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II
Andara: oO
Jan,
o que é fecundo nesses nossos diálogos é que fazemos muitas perguntas e damos poucas respostas. O que posso dizer dessa Literatura que faço, assim de visível e Invisível? Temos que voltar mais atrás:
atravessar o que nos nega, chegar ao Sim: e é assim que tu verás um S nestes dias cegos
Por que essa frase quis surgir logo nos primeiros livros visíveis, como eu chamo os livros de Andara que escrevo, pois o livro invisível de Andara é um nãolivro, que não escrevo?
Essa frase certeira para mim também é uma orientação incerta – pois é uma hipótese que exista um Sim – embora seja evidente quantos nãos há resistindo ao humano, por todos os lados, e em toda parte – estando o Antro mais oculto dessa resistência instalado, oh, justamente dentro de nós.
Teria sido por isso que me dispus a erguer um Real Imaginal – em forma de Sim – com a matéria prima visível, a natural – para a depurar de si mesma, enquanto saltam sobre nós, de nós próprios, os nãos da vida.
O que se sabe com clareza é que Viagem a Andara oO livro invisível se abre com um convite ao leitor:
Nós somos homens invisível
Depois de nascidos, visíveis.
Entre o início invisível e o invisível final, nós somos os homens visíveis.
Aproveitemos para nos ver
E também indica claramente onde o encontro do convite está marcado:
Esta viagem a Andara
E aonde mais?
Na vida.
Andara é perto e longe. Andara está dentro de ti. E fora. E dentro de mim.
Diz a voz
E também em Andara se anuncia:
Tu escreves um livro invisível.
E com a mesma clareza é dito o que são os livros visíveis que escrevo:
Situação dos livros de Andara: condenados à visibilidade para que Viagem a Andara oO livro invisível possa existir como pura ilusão.
Se essas declarações explícitas assim forem entendidas, então toda a Viagem se abre, para ser percorrida vivencialmente, reflexivamente, sobretudo contemplativamente: pois Andara nasce e se Nutre da relação de reflexos mútuos entre visível e Invisível, de um modo semelhante às emanações criativas do Uno – de que Plotino nos diz, nas Enéadas: – O Imanifesto manifesta o Manifesto e este, por contemplação do Imanifesto – logo, curiosamente, voltado para trás –manifesta, por analogia com o processo original, o Espírito.
Quem não entender pode traduzir Imanifesto por Deus, Manifesto por Mundo e Espírito por Ser.
Não é o caso de Jan, para quem entender a literatura que eu faço é o mais fácil. Difícil é obter a tradução gêmea que ele busca.
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III
No Lugar de Todos os Lugares
Um dia, Jan me encurralou, deixando a pergunta fatal para o fim:
– O mundo já teve visionários – de novo me refiro a Hieronymus Bosch (e não somente o apocalytico), pensei numa Hildegard von Bingen – que nos ensinavam como sonhar desperto. E acho que realmente e verdadeiramente o que as religiões (originais) procuram é aquele desligamento do mundo visível, tangível. O que é rezar se não entrar no misticismo percebível? Já numa ocasião te referiste a Bach, no momento não acreditava numa ligação de Andara com as fugas, e nem agora acredito. Penso mais nas músicas pentatonais, estilo Gregoriano, por exemplo, ou nos mantras do Budismo. Mas, e isso me surpreendeu – escutando uma obra do Stockhausen (o primeiro compositor de música eletrônica) tive visões de Andara. Agora te pergunto: se isso é todo eletrônico (quer dizer a-natural), como manter a naturalidade dos teus Andares?
Ah, mas eu já sabia as respostas antes de responder:
Quanto a Bach ter contaminado a tessitura musical de Andara: sim: por isso Andara é fuga do manifesto através dos caminhos semicegos dos livros visíveis que escrevo, aliás, que se inscrevem em Mim.
Quanto a Bosch ter contaminado a tessitura verbal de Andara, sim:
por isso Andara sendo região intermediaria entre a Terra e o Céu, espelho de reflexos entre o visível e o Invisível que está por trás das estrelas.
Quanto a Hildegard von Binger, veio depois, já durante a Viagem, como uma das confirmações doadas por outro a minha necessidade de sonhar desperto.
Também se ouve Cantos Gregorianos em Andara? Sim E mantas do Budismo? Sim: mantras de todas as espécies, sobretudo os silenciosos: páginas em branco cantam nos livros enquanto as palavras falam, mas às vezes rosnam, ainda o Animal em nós.
E Stockhausen?
Embora não seja um dos meus favoritos, quando ele captou, pelas ondas de rádio, a Música involuntária dos homens aqui na Terra ecoando no Cosmos, acho que buscava o que na Palavra busquei: trans-figurar a Literatura em Escritura – um mesmo buscar algo mais Primordial – retornar à Raiz de tudo.
E como Andara se consente ser habitadas por tantos visitantes estrangeiros a ela?
Assim: sendo Lugar Sem Lugar.
Ou: Lugar de Nenhum Lugar.
Para poder ser Lugar de Todos os Lugares, e tudo acolher em sua Unidade. Nela.
Mas para isso o criador da obra deve ser o canal de que fala Piet Mondrian, holandês como Jan, no alto desta página.
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IV
No Tempo da Hipótese
E disso, digo a Jan, nasce uma delicada Teia de Espelhos e quase insuportável Tensão: Tensão que só pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro tempo que não mais o da Literatura instalada ora no Presente, ora no Passado, ora no Futuro, mesmo quando ela, a Literatura, mescla todos esses modos de tempo numa só Espessura de Tempo. Espessuras comunicantes. Para Andara, nada disso resolvia mais: a sua exigência extrema, a exigência que me fazia e continua fazendo, do seu início até hoje, é a de uma Abolição de qualquer Espessura.
Mais que uma região sonhada no Cosmos, essa Andara tem sido para mim uma estranha Residência, exposta a todos os Ventos, onde tenho habitado desde que iniciei a Viagem.
Sob essa pressão, aonde ela me conduziu aos meus limites, junto com os sem-limites dela, os sem-limites em que queria se instaurar, explodi para fora e para dentro de mim num Tempo Verbal que fosse o Único em que Andara pudesse se dar não se dando entre o Invisível e o Visível, e falar não se falando: – o Tempo da Hipótese. Do fosse, houvesse. O tempo do quem sabe?
Sem habitar o Tempo da Hipótese, na Vida como na Arte, só se pode permanecer aqui. Fixo.
Mas viajar não é preciso, Pessoa?
Tentemos, pois, sim?
Vicente Franz Cecim nasceu e vive em Belém, na Amazônia. Autor de Viagem a Andara oO livro invisível. Blogs: Diário d oO livro invisível http://diariodoolivroinvisivel.blogspot.com.br/ e Andara: VozSilêncio http://cecimvozesdeandara.blogspot.com.
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3 abril, 2014 as 23:42
4 abril, 2014 as 13:17