As luzes do destino



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Na década de 1970, eu pernoitava a vinte e quatro quilômetros de onde trabalhava. Eram pequenas cidades satélites, mas separadas política e geograficamente. Entre uma e outra, nenhuma urbanização: apenas zonas rurais improdutivas e quase abandonadas. O único elo era uma estreita via asfaltada, ameaçada de ser engolida por denso matagal às suas margens, ora verde-musgo, ora ressequido, conforme o bom ou o mau-humor da natureza.
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Conhecia-a como o dorso e a palma da mão há mais de cinco anos, mercê das viagens diárias; inclusive nos finais de semana. Quem como eu, viajava à noite, podia avistar do cimo de uma colina situada a meia distância, a iluminação artificial dos dois lugares, a um só tempo. Enquanto me aproximava da cidade-dormitório, suas luzes surgiam e sumiam intermitentemente de acordo com os altos e baixos do terreno. O mesmo acontecia quando perfazia o sentido inverso.
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Naquela noite não foi diferente. Quer dizer, não foi diferente até a metade do trajeto. Depois de certo tempo, desde quando desci a colina, percebi que o percurso demorava mais do que o habitual. Fiz o que qualquer um faria: acelerei. Vinha a sessenta por hora, fui a oitenta, e depois, a cem – velocidade perigosa pela eventual travessia de animais de grande porte. Ora ou outra, jiboias corujas e tartarugas se atravessavam no caminho. Tratei de desviar o quanto pude. Ainda assim, esmaguei algumas.
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Não adiantou. Então, acelerei o veículo a cento e vinte quilômetros por hora. Curioso, embora distinguisse cada curva, cada árvore, cada detalhe do itinerário, e as luzes do destino continuassem a aparecer e a sumir nas mesmas proporções, ele não chegava. Melhor dizendo, eu não chegava a ele.
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Parei e consultei o relógio. Assustado, constatei que já tinham se passado mais de duas horas de uma jornada que costumava se completar em apenas quarenta minutos, a uma marcha regular. Sem cogitar de melhor escolha, anotei os algarismos assinalados no odômetro, e prossegui.
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Dirigi durante mais sessenta minutos a uma velocidade constante de cento e vinte por hora. A intermitência dos reflexos e os detalhes ao longo do caminho continuavam se sucedendo como numa viagem normal. Parei de novo e voltei a consultar o painel. A quilometragem indicada batia com o tempo: eu havia percorrido precisamente cento e vinte quilômetros. Ou seja, eu não delirava nem estava sofrendo alucinações, a menos que os instrumentos também estivessem. Um silencioso frio de medo percorreu-me o corpo e senti na boca um gosto áspero de morte. Voltei. Mas agora, na velocidade de praxe.
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Em pouco menos de vinte minutos encontrava-me mais uma vez no meio do caminho. Naquela elevação de onde se avistavam simultaneamente os dois clarões.
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Parei para pensar. Pode-se pensar sem ser preciso parar. Sei disso muito bem. Entretanto, alguma coisa – uma intuição ou premonição, talvez – me dizia que eu parasse. Tentei rememorar todos os pormenores da viagem, desde quando saí do trabalho. Esforcei-me para estabelecer uma ordem cronológica, mas não pude evitar que incidentes aleatórios se adiantassem e saltassem em feitio de livres associações, seguidas de insights. O primeiro foi um grande remorso por ter atropelado jiboias tartarugas e corujas, a troco de nada. Eu adoro animais. Gostava de soltá-los de jaulas, gaiolas e viveiros só para assistir aos shows da liberdade. Então, imaginei que não me perdoaria tão cedo (quem sabe, jamais) por ter sacrificado, sem necessidade, aqueles bichos, além de ter arriscado a minha própria vida.
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Enfim, concluí ter ido além do que seria prudente só para alcançar a minha meta. Como não havia mais nada a fazer, dei partida no automóvel e tratei de continuar o retorno para a cidade de origem.
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Desta vez não atropelei qualquer animal. Mas os mesmos estranhos fenômenos sucedidos durante a ida, se repetiram. As curvas, as descidas, as subidas ao longo da trajetória eram as mesmas. As luzes do destino também apareciam e sumiam como antes. Contudo, por mais que eu acelerasse, ele nunca chegou. Melhor dizendo: eu nunca cheguei a ele…

 

 

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira é médico e escritor. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010 ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de contos e crônicas: “Louca Uma Ova”. Em 2011 recebeu o Prêmio Nacional de Conto e Poesia “Correio das Artes 60 Anos”, promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos “Lagartas-de-Vidro”. Foi um dos vencedores da Bolsa Funarte de Criação Literária – 2010, com o livro “Medicina Crônica”. E-mail: raysilveira@uol.com.br




Comentários (2 comentários)

  1. Raymundo Silveira, Estou lendo “A Privataria Tucana”, de Amaury Ribeiro Jr.
    25 fevereiro, 2012 as 14:56
  2. fabio mungo, Existe as vezes momentos na vida, em que por mais que se corra, não saimos do lugar. Muito bom Raymundo.
    4 abril, 2012 as 19:41

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