A poesia de Delmo Montenegro
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Quem me falou do Delmo Montenegro pela primeira vez foi o Fabiano Calixto. Foi em 2005, na Casa das Rosas, o Fabiano me avisava do lançamento de Ciao cadáver, publicado pela editora Landy, na coleção Alguidar, dirigida pelo Frederico Barbosa.
Desde aquele tempo, somos amigos: o Delmo, além de escrever o prefácio do meu primeiro livro de poemas, O retrato do artista enquanto foge, praticamente organizou o livro para mim; em 2008, estivemos juntos no projeto Fome de formas; a poesia de Delmo é sempre citada nos meus trabalhos. Hoje vou falar do seu livro mais recente, Recife, No Hay, de 2013, uma das obras vencedoras do Prêmio Pernambuco de Literatura, mas antes gostaria de relembrar o Ciao cadáver.
Todos os poemas do Ciao cadáver são fantásticos, Delmo é uma voz singular na poesia brasileira contemporânea. Para fruir melhor de sua poesia, bastante hermética, vale a pena começar pelo segundo poema do livro, “Apocalipsis cum figuris”.
Em linhas gerais, “Apocalipsis cum figuris” é um longo poema, em que Delmo intercala imagens de partituras de música erudita contemporânea com versos curtos, formados por vocabulário sintético, basicamente substantivos e compostos nominais inéditos em português. No poema há, pelo menos, a realização de quatro temas:
(1) o tema da navegação, em que é narrada uma viagem de barco, atualizando a versão de Delmo do tópico da nave dos loucos;
(2) um tema musical, expresso pelas partituras, no qual o poeta aproxima as vanguardas da música às vanguardas da literatura;
(3) um tema mítico, desencadeado por referências ao I-Ching, a última imagem do poema é um hexagrama;
(4) há metalinguagem, o poeta explicita seu fazer literário em passagens do texto.
O poema de Delmo reflete, no mínimo, um dos procedimentos mais recorrentes da poesia pós-moderna: a referência a outros textos como procedimento de composição, que, segundo Marjorie Perloff, encontra suas origens em obras como Passagens, de Walter Benjamin, cuja composição é feita com 75% de textos alheios.
Essa, porém, não é a qualidade principal do poema. O que me chama a atenção em “Apocalipsis cum figuris” é como Delmo, valendo-se da estética pós-moderna, foi capaz de subvertê-la não em suas formas de entender e explicar o mundo, mas em sua sensibilização diante daquilo que ele nos conta: Delmo, contrariamente às distopias da pós-modernidade, faz um poema otimista, lembrando as esperanças no futuro, próprias da modernidade.
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Em seu otimismo, Delmo enuncia sua poesia não como virtuosismo literário, mas como aposta em inteligências capazes de navegar nas ondas na Música Nova, valendo-se de toda consciência ou loucura derivada delas.
De 2005 a 2013, o que mudou naquele poeta? Do transatlântico de “Apocalipsis cum figuris”, repleto de malucos – me lembro da nave dos loucos em Seraphim Ponte Grande –, o poeta segue em uma prancha de surfe, como no poema “Surfin’bird”, bem mais conciso, que começa assim:
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vamos para a praia dos nervos
para as geleiras
infames
desossar orquídeas
montar na prancha dos assassinos
o grande
kahuna
espera
por
nós
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Delmo continua a insistir no potencial poético da referência, mas não vou me deter nas muitas leituras que podem ser traçados via “o grande kahuna” e suas mitologias, ou pelo título do poema, o mesmo do conhecido rock’n’roll do grupo The trashmen. Isso não muda na poesia de Delmo, o que parece mudar é o tom eufórico do “Apocalipsis cum figuris”: já não há mais a comunidade em seu transatlântico, o poema surfa sozinho na prancha; da nave dos loucos, ele segue agora na prancha dos assassinos; o destino é a praia dos nervos e as geleiras infames.
O tom distópico permanece ao longo do livro. Só para citar alguns versos, separei estes:
(1) os animais velozes da dor / não / cansarão / de / visitar / a / minha / casa
de “Os animais velozes”;
(2) último jato de amor / sobre // a // flor morta
de “Viaduto Santa Efigênia”;
(3) os poetas são como / dinossauros // todos vão ser extintos
de “Dinossauros”;
(4) solte sua voz / valvulada // durma comigo // seja meu cadáver esta noite
de “Eros Unbound”.
A disforia, porém, não deve ser entendida como o enfraquecimento de sua poesia; ao insistir nesse tom, Delmo não pode ser confundido com poetas frouxos, cuja poesia parece se afirmar apenas nessa ou em outras vocações sentimentais.
Se em Recife, No Hay, Delmo tematiza a distopia, isso se faz em meio a todos os demais temas, bem mais constantes, contundentes e definidores de sua poética:
(1) pleno domínio da linguagem verbal e das formas poéticas;
(2) o universo escatológico;
(3) o imaginário noturno;
(4) a poesia maximalista, que se projeta para fora do texto, disseminando sentidos;
(5) a preferência pela poesia violenta – na dedicatória do livro ele me escreveu “entre a síntese e a destruição, espero que aprecie este Recife, No Hai” –.
Por fim, termino essa breve notícia sobre Delmo Montenegro com seu poema “A tartaruga negra”. “A tartaruga negra” talvez seja o poema mais disfórico de todos os poemas do livro, mas nele, mesmo em meio a todas as disforias de Recife, No Hay, surge a energia vital do poeta, que atravessa todas as destruições.
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em Dujiangyan
na província de Sichuan
um menino
preso sob as ferragens
terá as pernas
amputadas
para que os bombeiros
possam fazer o resgate
enquanto os enfermeiros lhe cercam
o sheishuku explode
de suas pernas:
Gui Xian – a tartaruga
Baihu – o tigre
Quinglong – o dragão
Zhuque
– a fênix
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Caros leitores
Daqui a 15 dias volto para falar da poesia de Claudio Daniel e de seu Livro dos Orikis.
Por falar em música contemporânea, gostaria de indicar meu novo livro A significação musical – um estudo semiótico da música instrumental erudita, da editora Annablume.
Visite meu site
www.seraphimpietroforte.com.br
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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de:Semiótica visual – os percursos do olhar; Análise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicações; Análise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SM; Irmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto foge; Palavra quase muro; Concretos e delirantes; Os tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com
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1 março, 2017 as 20:38