É a guerra, meu general
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O general, em mangas de camisa, os pés metidos em macios chinelos caseiros, mascava um palito na varanda, fazendo quitche! quitche! para a criação de penas no quintal e atirando-lhe generosos punhados de milho. Era um tempo bom, o pão era farto e fácil, tinha dias inteiros para fazer a digestão à sombra, enquanto catalogava as recordações de sua vida na caserna, para degustá-las com vagar e, talvez, publicar umas memórias.
Naqueles dias, verificava já o saldo positivo de sua existência: afora algumas trapaças, cometidas em nome do bom senso, do progresso, da necessidade de construir o amanhã e outras abstrações, e de algumas canalhices ocasionais, das quais ninguém está a salvo, concluía que, de fato, era o que se chama um homem de bem. “Varão de excelsas virtudes”, dizia consigo o general, que tinha um repertório regular de chavões.
“Estou seguro: haja o que houver, esteja lá em cima quem estiver, estou seguro. O que é do homem, o bicho não come.” E suspirava. Sentiria falta da cerveja vespertina. Ah, e de um bom charuto. O general fumava meia dúzia de puros por dia. Boa parte de sua vida estivera aureolado por densa nuvem cinzenta. Aliás, era assim que seus comandados o chamavam: Cacique Nuvem Cinzenta.
Os dias sucediam-se mansamente. Uma tarde, quando o general, qual pródiga divindade rural, chovia milho sobre os galináceos, um militar em farrapos, lavado de sangue, chegou à quinta em que o velho residia.
– Guerra – arquejou o soldado, caído na varanda, enquanto Doña Dolores, a mulher do general, o abanava com um leque.– Guerra – expectorou mais uma vez o ferido.– Soldado Escudero apresentando-se, senhor.
O general percorria marcialmente a varanda, chocalhava na mão uns grãos de milho, inquiria com presteza aquele cadáver iminente:
– Desde quando, soldado?
– Cinco semanas, meu general.
– Estranho! – E voltando-se para Doña Dolores:– Há quanto tempo não recebemos o jornal?
– Faz mais de mês.
– Os jornais foram fechados, general – informou Escudero.
– Hum… e os serviços de comunicação? Correio, telégrafo, telefone?
– Suspensos por medida de segurança nacional, mi general – ciciou Escudero com esforço.
– Bem. Com quem estamos em guerra?
– Com los babilones, mi general.
O general engoliu um palavrão. Que infames, nefandos, corruptos, canalhas subversivos seriam esses babilones? Puxou pela memória, mas a nomenclatura geográfica eram demasiado mutante nesses dias. Pediu à mulher que lhe trouxesse um mapa do continente, desdobrou-o ante os olhos opacos de Escudero.
– De onde são esses ratos de babilones?
O moribundo esticou um dedo trêmulo:
– Daqui, meu general. A capital deles chama-se agora Nueva Era.
– Impossível! – esganiçou o velho, arremessando o mapa contra as galinhas.– Impossível! Essa província pertence ao nosso território, é o berço natal de nosso presidente!
– Não, meu general: o presidente é natural da província de Tiburones.
– Soldado! Então eu não sei onde nasceu o presidente Domingo Palomo y Amor?
– Perdão, meu general, mas nosso bem-amado presidente chama-se Bienvenido Rey.
– Diabos, estou desinformado. Não devia ter-me afastado tanto. Negligenciei o mais alto dever de um militar, que é a defesa do solo pátrio.
Escudero não ousou concordar. O general prosseguiu:
– Quais são as cores dos ratos separatistas?
– A bandeira é a mesma, general.
– A mesma?
– Sim, há uma certa controvérsia, mi general. O inimigo afirma que somos nós os insurgentes. E, enquanto não se estabelece o contato diplomático, o conflito não cessa.
– Sim, sim… Bem, creio que devo combater do lado de cá. Com licença, preciso vestir-me.
– Boa luta, mi general – e Escudero tornou-se uma baixa de guerra.
– Parece que morreu – disse Doña Dolores.
– Sim, pode parar de abaná-lo. Vamos ver a minha farda.
– Estão passadinhas no guarda-roupa.
E o general foi barbear-se. Depois que a mulher aparou-lhe os cabelos, esteve largo tempo indeciso. Qual farda envergar? Azul? Vermelha? Verde? Amarela?
– Diabos, nosso exército parece uma banda de músicos. Talvez a vermelha, hã?
– Fica bem com seu tom de pele – opinou a mulher.
– Hum… Não, não. Guerra em começo, é melhor que não. Há que preservar uma certa postura.
Num lampejo de senso prático guerreiro, decidiu-se pela verde:
– É um alvo menos fácil.
Em seguida, mandou chamar Belisário, o caseiro da quinta, e deu-lhe ordens para selar Tamerlão, seu cavalo de desfile militar.
– Tamerlão morreu, senhor – informou Belisário.
– Tamerlão… morto? Quando? Como? – E limpou uma lágrima incômoda.
– Penso que de velhice, senhor. Faz aí uns quatro meses.
– Quatro meses! Por que não me disse?
– Perdão, senhor. Quis poupar-lhe o desgosto.
– Diabos! Tamerlão morto! E o cadáver da varanda não me disse onde é o teatro de operações.
– Além do rio, senhor – acudiu o solícito Belisário.
– Como sabe?
– Bem, de umas semanas para cá tenho ouvido um tiroteio. Pensei que se tratasse das escaramuças de sempre, com a guerrilha. Anteontem, a mulher do quitandeiro me disse que estamos em guerra.
– Diabos, diabos! Estou ilhado, ninguém me informa nada!
– Perdão, senhor – Belisário deixou pender a cabeça.
– Vamos, vamos, não é hora para recriminações inúteis. O fato é que estamos em guerra. Ande, vá preparar a charrete.
– Por que não vamos de carro, senhor? Eu o levo.
– Carro?
– Sim, adquiri o carro da viúva Ramona Morales.
– Puxa, não sabia…
– É um bom carro. Vamos?
– Sim, claro, con mucho gusto.
Lembrou-se de pedir o sabre à mulher. No varanda, o caseiro apontou o cadáver do soldado:
– Enterramo-lo na quinta?
– Não, ele já estaria em decomposição. É melhor que o enterre hoje mesmo.
– Perdão, senhor: não perguntei se o enterramos na quinta-feira, mas sim, se o enterramos em sua propriedade.
– Não, é melhor que não. Minha mulher tem um certo temor de cadáveres estranhos. Vamos levar o corpo conosco e deixá-lo no campo de batalha. Esse é o túmulo do bom soldado.
– Perfeito, senhor.
– Ponha-o no porta-malas.
– Hã… o porta-malas não fecha direito, senhor. O corpo cairá na estrada. Posso colocá-lo no banco de trás?
– Sim. Dolores: venha ajudar Belisário, não quero manchar minha farda.
Isto feito, o general beijou sua mulher e tomou assento, muito empertigado, os olhos cravados no horizonte. Partiram. Doña Dolores deixou-se ficar na varanda, acenando longamente com o leque. Durante o trajeto, uns quinze quilômetros, se tanto, o general cantarolava entre dentes o hino marcial “Negro, Vermelho e Amarelo Para Sempre”:
E como exemplo a cada nação
As cabeças inimigas rolarão…
Belisário sorria, sacudia a cabeça e os ombros no compasso.
Chegados ao rio, estacionaram. Uma ponte metálica ligava as margens. No lado de lá, batalhões de soldados agitavam seus fuzis, davam vivas e salvas, atiravam capacetes para o alto.
Uma onda de calor avassalou o coração do velho general.
Um oficial de estatura elevada e bigodão frondoso veio caminhando garbosamente pela ponte.
– Não sabia desta ponte – o general confidenciou ao caseiro.
– Nossos engenheiros trabalham rápido, senhor.
– Sim, são excelentes.
A chama do orgulho incandescia o coração do velho general.
O oficial o saudou com impecável correção e um sorriso crocodiliano.
– Sou o coronel Galván Galindo. Estamos felizes, senhor, muito felizes com a sua vinda.
– Vejo que sim, muito obrigado. Quando entramos em ação?
– Agora mesmo. Tenente Escudero, apresente-se!
O cadáver saltou para fora do carro com agilidade felina, fazendo continência ao superior com a circunspecção que lhe permitiam os farrapos e manchas de sangue:
– Missão cumprida, mi coronel!
– Parabéns, tenente. Vou recomendá-lo para receber a Estrela de Prata Com Esmeralda.
O general estava aturdido. Retorcia um botão dourado em sua túnica, balbuciava repetidamente uma conjunção:
– Mas…
– General Miguel Angel de Aragón y Olivares, eu o declaro prisioneiro de guerra.
– Compreendo. Cumprirão o tratado da Convenção de Cerro Caballito?
– Tem a minha palavra de oficial e cavalheiro.
– Eis o meu sabre. Mas não vejo como um velho general reformado lhes possa ser útil.
– Não? Com a sua captura, a vitória é nossa.
– Por quê, en nombre de Diós?
– General, faz duas semanas que o proclamaram presidente da nação.
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[Originalmente publicado na antologia Contos Jovens Nº 6, Editora Brasiliense, 1975].
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Luiz Roberto Guedes é poeta, escritor, publicitário e compositor. Publicou, entre outros, O mamaluco voador (2006), e Alguém para amar no fim de semana (2010). E-mail: l.r.guedes@uol.com.br
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