Livro de Orikis


 

 

Conheci o Claudio Daniel em 2005, também foi no projeto Rompendo Silêncio, da Casa das Rosas. Desde então, somos amigos; devo a ele quase todos os meus contatos com poetas contemporâneos. Sempre gostei de seus trabalhos, Claudio é um poeta consciente da semiose verbal da poesia, ele sabe que o poema é, antes de tudo, um trabalho com a palavra.

Hoje vou comentar seu novo livro de poemas, o Livro de Orikis, da editora Patuá – www.editorapatua.com.br –, mas antes vou relembrar um poema mais antigo, “canção da árvore de mil folhas”, do livro Sutra, de 1992.

 

o que exprime

essa esgrima silenciosa

esse pugilato de sombras?

simulacro de suave tigre de água e leo dragão de vento

flama de branca acácia e de salmão-pequeno

que combate no limiar entre a pele e a alma.

o que irradia

esse lento balé de plumas

esse desfile de facas e leques?

dança que traduz em passos de pantera

a canção da árvore de mil folhas

que não sabe da língua

mas do coração

 

Aparentemente, este poema se aproxima da fala coloquial, valendo-se, em sua expressão prosódica, de metrificação livre, nenhumas rimas e, em seus conteúdos semânticos, de significados pouco delirantes, buscando manter os limites de um mesmo campo conceitual. No caso, trata-se do campo semântico do Tai Chi Chuan, pois os sintagmas nominais “árvore de mil folhas” e “pugilato de sombras” são epítetos do Tuey Shou, um treino básico de ataque e defesa, realizado em dupla, em câmara lenta, mas que também pode ser feito rapidamente. Todavia, nada mais falso do que essa aparência de facilidade.

Em linhas gerais, o poema está dividido em duas seções frasais; são duas perguntas e suas respectivas respostas, que podem ser reduzidas a este esquema sintático: [o que (exprime/irradia) (esse/essa) X? Y].

Nessa disposição, as frases X e Y são sintagmas nominais com a mesma estrutura sintática: um substantivo modificado por adjetivos, que podem aparecer nas formas de adjetivos simples, locuções adjetivas ou orações subordinadas adjetivas.

X:

– esgrima silenciosa

– pugilato de sombras

– lento balé de plumas

– desfile de facas e de leques

Y:

– simulacro de suave tigre de água e leo dragão de vento

– flama de branca acácia e de salmão-pequeno que combate no limiar entre apele e a alma

– dança que traduz em passos de pantera a canção da árvore de mil folhas que não sabe da língua mas do coração

 

Na formulação das frases interrogativas, há ambiguidades sintáticas, pois não se pode afirmar, com certeza, se os sintagmas X e Y são sujeitos ou objetos dos verbos. Disso decorre que não se sabe qual deles é a pergunta e qual é a resposta. Para dar apenas um exemplo desse processo, não se sabe ao certo se é a sintaxe é “essa esgrima silenciosa exprime simulacro de suave tigre de água” ou “simulacro de suave tigre de água exprime essa esgrima silenciosa”.

Considerando que os verbos “exprimir” e “irradiar” podem ser aproximados semanticamente, os sintagmas da primeira e da segunda perguntas podem ser intercambiados.

 

sintagma nominal                     verbo             sintagma nominal

esgrima silenciosa                     exprime         simulacro de suave tigre de água e leo

pugilato de sombras                  irradia            dragão de vento

lento balé de plumas

desfile de facas e leques                                    flama de branca acácia e de salmão-

pequeno que combate no limiar entre a

pele e a alma

 

dança que traduz em passos de pantera

a canção da árvore de mil folhas que

não sabe da língua mas do coração

 

Essa sintaxe regular é revestida por uma semântica também regular, pois as duas perguntas são interrogações sobre o mesmo objeto narrativo; em ambas se trata do que esse objeto é capaz de expressar, seja como ele se apresenta – os substantivos e seus adjetivos –, seja o que ele faz – os verbos “exprimir” ou “irradiar” –.

Verifica-se,sob a linearidade prosódica,o objeto narrativo está definido em um labirinto semiótico. Já que os sintagmas nominais podem ser alternados nas funções de sujeito ou objeto direto dos verbos sem comprometer essa semiose, pelo contrário, enriquecendo-a mais, o poema de Claudio, a seu modo, esconde um labirinto barroco. Isso significa que, sob sua estrutura linear, escondem-se outras possibilidades combinatórias além daquelas explicitadas no texto.

Desse modo, prosódia, sintaxe e semântica estão em função do mesmo projeto discursivo, que seria o de revelar uma existência semiótica que, se for traduzida poeticamente em palavras, só o pode ser prismaticamente, dada à sua natureza próxima dos labirintos.

O leitor me perdoe a explicação um pouco técnica, mas é justamente o trabalho poético com as estruturas linguísticas uma das maiores qualidades da poesia de Claudio Daniel. Mas qual foi o motivo de relembrar “a canção da árvore de mil folhas” para falar do Livro de Orikis?

Se sob a linearidade prosódica de um poema, cujo tema é o Tai Chi Chuan, Claudio oculta labirintos barrocos, que formas estariam ocultas sob seus Orikis, poemas também de cunhagem religiosa?

Antes de tudo, Claudio tem o mérito de, em um livro no qual predomina o culto dos orixás, haver escapado de quaisquer apelações folclóricas ou regionalistas, que, via de regra, acompanham o tema. Aliás, já em Sutra, Claudio também escapa de exotismos orientalistas; seu Tai Chi não dialoga com a subjetividade vulgar, mas dialoga com labirintos barrocos e com as poesias modernas de múltiplas soluções combinatórias.

Seu Oriki para Oxum, por exemplo, o próprio Claudio me disse, dialoga com as formas paralelísticas das Cantigas de Amigo. Estes são os versos iniciais do seu Oriki de Oxum:

 

Fêmea-das-águas
senhora do Ijexá.

Dona das danças
desliza no vento.

Oxum ibuanyá:
ouve meu lamento.

Senhora da brisa
atende meu intento.

Sábia òbòmèjá
púbis-pensamento

que fere com ferro
e cura o ferimento.
.

Para explicitar as engenhosidades poéticas de Claudio Daniel na semiótica do oriki, vale a pena citar um oriki tradicional – reproduzo abaixo os primeiros versos do oriki de Oxum, transcriado por Antonio Risério –; para confirmar a referência apontada pelo próprio poeta, cito também uma Cantiga de Amigo – são os primeiros versos de uma cantiga de Martim Codax –.

 

Oriki de Oxum

Oxum, mãe da clareza
Graça clara
Mãe da clareza

Enfeita filho com bronze
Fabrica fortuna na água
Cria crianças no rio

Brinca com seus braceletes
Colhe e acolhe segredos
Cava e encova cobres na areia

 

Cantiga de amigo

Eno sagrado, en Vigo,
bailava corpo velido:
Amor ei!

En Vigo, (e) no sagrado,
bailava corpo delgado:
Amor ei!

Bailava corpo velido,
que nunca ouver’ amigo:
Amor ei!

 

Ao ler o oriki de Oxum transcriado por Antonio Riserio – e confiando plenamente que em sua transcriação o original persista em meio às inevitáveis criações do tradutor –, verifica-se a exaltação de Oxum por meio de seus atributos e feitos mais significativos, ou seja, por meio de epítetos. Contudo, não há sinais de versificação ou de ritmos prosódicos estabilizados, como os que estruturam a expressão prosódico-fonológica da cantiga de Martim Codax: (1) seus versos formados por duas redondilhas maiores e um verso com três sílabas; (2) o paralelismo é intensificado por meio de rimas ou anáforas.

O oriki de Claudio Daniel, por sua vez, é uma complexificação dos dois procedimentos anteriores: seu conteúdo semântico é inspirado no oriki original, trata-se de louvar Oxum;e sua expressão prosódico-fonológica é inspirada na Cantiga de Amigo, seguindo paralelismos semelhante com rimas e versos curtos de cinco, seis ou sete sílabas.

Além disso, Claudio não traduz os versos em Ioruba, o que produz, no mínimo, dois efeitos de sentido. O primeiro deles diz respeito ao estranhamento diante de palavras estrangeiras, que, quando inseridas nos versos em Português, soam dentro da prosódia desta língua, soando como Português, mas, ao mesmo tempo, destoando dele. O segundo efeito, derivado do primeiro, aproxima o oriki de Claudio do experimentalismo da poesia sonora; ou seja, da poesia que se afasta da semântica. No oriki, a poesia sonora, ao lado de versos verbais, faz dela uma poesia vocoral – a poesia vocoral é, segundo o poeta italiano Enzo Minareli, um gênero de poesia em que são complexificados procedimentos poéticos sonoros e orais –.

Ainda dentro do universo temático religioso, os Tantras fantasmas, de Michael McClure, são poesia vocoral. Eis os últimos versos do tantra 39, das traduções de Daniel Bueno, Luiza Leite e Sergio Cohn:

 

Adeus, mamífero perfeito.
Vai-te com deus de teu sofá de seda e escuro dia!
AHH GRHHRUUUUUR! AHH RUUUUH. GARR
Naunhehhdahr adeus. Mehrghruurharrmahr
Rahuur, rahuur. Thehahh-oh oh thahrr
Nohgruuhrahhr.

.
Entretanto, as referências e inovações mais evidentes, mas não menos engenhosas, são os diálogos com a deplorável situação política brasileira, nos quais Claudio invoca os orixás para nos proteger e salvar do fascismo e da cleptocracia de parlamentares, pastores e jornalistas. Separei alguns desses versos:

 

(1)Oriki de Ogum

.
Comedor de cães
fulmina o racista.
Ogum Megê
queima o sangue
do fascista.
Megegê
golpeia o golpista
da revista.
Ferreiro-ferrador
forja a foice
forja o martelo.

.

(2) Oriki de Xangô

Oba Orungá dança alujá
queima o falo
do Bolsonaro.

 

(3) Oriki de Oxumaré

Danjikú
moça-menino
tira entranha
do intolerante.
Danjikú
macho-menina
tira entranha
do crente
demente.

 

(4) Oriki de Omulu, terceiro ponto:

Obaluaê
senhor dos exus
fulmina fascistas
na roda de exus.

Obaluaê
senhor das caveiras
devora burgueses
da tíbia às caveiras.

Obaluaê
senhor das palhas
esteja conosco
em nossa batalha.

 

Todavia, a contestação política de Claudio Daniel vai além dessas invocações. Enquanto manifesto político, creio que elas são as expressões mais evidentes de um processo de contestação bem mais profundo, no qual seus protestos se unem a outras vozes em polifonia, que é antes poética para, depois, ser política.

Ao convocar (1) Cantigas de Amigo, (2) Orikis, (3) literatura de esquerda – Ogum forja a foice e o martelo –, (4) poesia sonora, e – esta informação também me foi dada pelo Claudio – (5) o verso monorrimo do gazel e do jazal das literaturas árabe e persa, o poeta harmoniza vozes distintas complexificando-as na própria poesia. Nesse fazer poético, a consciência política está baseada no máximo de informações possível a respeito do mundo e de suas culturas; Claudio investe no pluralismo histórico para combater a unilateralidade fascista.

 

 

 

Caros leitores

Antes de tudo, desejo a todos um feliz 2016.

No final de fevereiro, volto para falar da poesia de Michel Temer e de seu livro Anônima Intimidade. Isso mesmo, o atual vice-presidente do Brasil é poeta!

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Visite meu site

www.seraphimpietroforte.com.br

 

 

 

 

 

 

 

 

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte nasceu em 1964, na cidade de São Paulo. Formou-se em Português e Lingüística na FFLCH-USP; fez o mestrado, o doutorado e a livre-docência em Semiótica, na mesma Faculdade, onde leciona desde 2002. Na área acadêmica, é autor de:Semiótica visual – os percursos do olharAnálise do texto visual – a construção da imagem;Tópicos de semiótica – modelos teóricos e aplicaçõesAnálise textual da história em quadrinhos – uma abordagem semiótica da obra de Luiz Gê. Na área literária, é autor de: – romances:Amsterdã SMIrmão Noite, irmã Lua; – contos: Papéis convulsos – poesias: O retrato do artista enquanto fogePalavra quase muroConcretos e delirantesOs tempos da diligência; – antologias: M(ai)S – antologia SadoMasoquista da Literatura Brasileira, organizada com o escritor Glauco Mattoso; Fomes de formas (poesias), composta com os poetas Paulo Scott, Marcelo Montenegro, Delmo Montenegro, Marcelo Sahea, Thiago Ponde de Morais, Luís Venegas, Caco Pontes, mais sete poetas contemporâneos; A musa chapada (poesias), composta com o poeta Ademir Assunção e o artista plástico Carlos Carah. E-mail: avpietroforte@hotmail.com


 




Comentários (1 comentário)

  1. Daniel Lopes, Que beleza de texto, instigante. Uma fera escrevendo sobre outra! Pretendo comprar o livro do Cláudio no sábado na festa de cinco anos da Patuá.
    18 fevereiro, 2016 as 20:35

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