A primeira aparição de Cleto Milano


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Conheci mais um doido. O nome dele é Cleto Milano. Chegou à minha vida pela mão das novas tecnologias. Nunca me vira nem ouvira ou lera meu nome, em qualquer lugar. Por acaso, aproximou-se do meu blog. E me mandou breve mensagem: “Sou escrevinhante de resenhas e gostaria de ganhar um de seus romances ou conjuntos de conto. Moro no Benfica, desde 1973”. Tomei susto medonho. Teriam as meninas me abandonado ou cedido lugar a velhotes? Sim, tenho me correspondido sempre com jovens, quase todos do sexo feminino. Deixei de lado o preconceito (também sou velho e não devo temer a aproximação de meus semelhantes). Não perdi tempo: “Expedirei, pelo correio, exemplar de Luz vermelha que se azula. Não precisa compor resenha. Basta meter a vista nos contos”.

Na comunicação seguinte, deu maiores referências de sua morada: “Escondo-me numa casa ampla. Não perto demais do Estádio Presidente Vargas nem suficientemente longe da Reitoria”.

A segunda carta veio recheada de informações: “Sou aposentado e desde jovem me viciei em letras. Mergulhei em quase todos os clássicos portugueses e brasileiros, sem esquecer outros estrangeiros”. Enviei os contos e aguardei pronunciamento de Cleto. E sabem qual o assunto da nova manifestação? Guardava diversos artigos, por ele elaborados ao longo dos anos. Um tratava de Dom Casmurro. Teria alguma novidade? As cidades e as serras inspiraram “estudo apurado, de vinte e tantas folhas”. Seria mesmo apurado? E mencionava diversos autores e obras canônicas. Nunca sequer aludira a existência dos manuscritos a alguém. Se eu poderia dar uma “opinião sincera”.

Perdi um dia a arquitetar justificativa da decisão de me manter longe de mais um aborrecimento. Ora, não estou para soletrar inutilidades, futilidades, infantilidades. Pensei numas grosserias: “Por favor, não me dadive nada. Continue dedicado aos clássicos. Infelizmente não disponho de tempo para examinar todos os escritos recebidos”. Mostrei-me sensato e apaguei da memória estas palavras e subitamente me transformei em sujeito cortês ou gentil: “Terei prazer (tenho certeza disso) de me afundar em seus ensaios. Prometo leitura demorada e atenta”.

Enquanto rasgava invólucros de embrulhos e folheava seus conteúdos, pensei: Melhor passar a vista pelos artigos de Cleto do que perder tempo com certos livrecos. Pois ele me dissera: “O senhor não acreditará nesta minha confissão: Sou ‘escritor’ inédito. Ou seja, um escrevinhador”. Ainda bem. Até pensei em me ajoelhar diante da primeira imagem e agradecer a Deus por aquele instante sem tortura. Assim, não teria o dever de manusear mais um amontoado de sandices e malfeitorias impressas.

Pois o desgraçado tem estilo, sim, senhor! Explorei cerca de dez artigos dele e não me aborreci nem me zanguei e “quando eu me zango, Marina, não sei perdoar”. Pelo contrário, ocorreu-me dar uns gritos de alegria. Um gato caminhava pelo dorso do muro. Assustou-se e, por pouco, não se despedaçou no meu terreno. Pedi-lhe desculpas e o chamei de “meu bichano”.

Conto essa história, com certo atraso. Há quase um ano chegou o primeiro recado de Cleto. E já não o vejo como doido. É sujeito parecido comigo. Muito parecido mesmo. Só difiro dele no essencial: sou cordato e ele grosseiro, não gosto de falar mal de ninguém e ele é dono de língua extremamente ferina, adoro clássicos, sem ficar cego aos novos, enquanto ele só conhece os antigos. Como eu, Cleto ganha presentes de editoras e redatores de versos e prosas. Isso acontece, porém, de uns meses até esta data. Antes, como ninguém sabia de sua existência, só folheava impressos comprados em livraria ou solicitados por correio.

Somos semelhantes também no modo de viver. Ambos reclusos. Com ele habita uma “secretária”, de nome Alice. E eu já tive uma empregada com esse nome. Seria a mesma pessoa? Contive a curiosidade. Não precisava descobrir a identidade da moça. Numa das mensagens, chamou-a de “jovem” e confessou: “Apresento-a, aos meus visitantes, como doméstica, embora exerça outras funções na casa”. Entendi a frase como uma confissão. Sou malicioso feito macaco. Se eu não estiver enganado, Alice é sua mulher ou amante.

Logo nas primeiras mensagens, revelou: “Não tenho lido quase nada. A não ser um ou outro clássico. Casualmente compro novidades (para mim). Pais e filhos, de Ivan Turgueniev, é uma delas. Também faço releituras. Dom Casmurro reli e desejo a ele voltar”. Nesse aspecto biográfico, parece menos pobre do que eu, pois nem aos clássicos tenho me dedicado. Aqui e ali, releio Machado, Eça, Pessoa, Kafka, Graciliano e uns poucos eleitos.

Convidou-me a ir à sua casa. Aceitei, se também viesse me conhecer. E assim aconteceu. Dirigi-me ao Benfica, ele veio ao Monte Castelo. Dei-lhe de presente Viagens na minha terra, de Almeida Garret. Tive pena dele. De sua velhice, aquelas rugas entrelaçadas, aquelas costas encurvadas, aqueles olhos mortiços. Imaginava-o mais viril ou menos próximo da senilidade. Brinquei com estas palavras. Sem constrangimento, ele retribuiu a descrição. E rimos de nossa miséria. No meio da conversa, ofereci-lhe água ou suco. Preferiu água. Eu mesmo corri até a cozinha. “Você mora só?” Dei-lhe esta resposta: “De vez em quando, prefiro estar só. As más companhias me têm feito um mal danado”.

Já quase na hora de se retirar (solicitou táxi por telefone), fez um pedido, seguido de extraordinária confissão: “Se você puder me emprestar algumas publicações novas…” Sorri. “Não sei qual a serventia de livros novos, se você só lê os antigos”. Justificou-se: pretendia instalar uma oficina de criação literária. Estarreci-me: “Como se dará isso, seu Cleto Milano, se você não tem experiência com criação literária?” Ele torceu o beiço: “Para ensinar a forjicar frases o professor não precisa saber usar a bigorna da língua. Bastam alguma leitura, perspicácia e conhecimento”. Eu não quis discutir o assunto. Afinal, ele iria embora logo. “Sabe qual o meu propósito?” Fiz sinal de ignorância com o lábio inferior. Ele se apressou em esclarecer: “Promover a leitura dos novos, por minhas alunas. E o hábito ou a técnica de comentar textos. Assim, matamos dois coelhos com uma cajadada: elas aprendem literatura e me ajudam a redigir resenhas”. E confessou: “Criarei um blog literário. Postarei nele meus comentários antigos e os novos. E, assim, me tornarei conhecido de editores e autores. Conhecido, receberei, todo dia, brochuras, compêndios, tomos, coleções… Tudo de graça, meu caro”.

Eu me sentia em estado de choque. Nunca ouvira proposta ou confissão daquele teor. Pareceu-me inescrupuloso demais o senhor Cleto. Pois eu estaria metido até o pescoço naquele imbróglio. E, enquanto o taxista buzinava lá fora, ouvi isto: “Meu único intuito é ‘conhecer’ mocinhas interessadas em literatura. Nada cobrarei. Tudo de graça ou com graça. Aliás, só quero delas a graça de sua juventude”. Abri o portão e ele se meteu no carro: “É tudo por divertimento, seu Nilto. Algo como terapia, passatempo…”. O carro se pôs em movimento e ainda ouvi: “hobby”.

 

 

 

 

 

 

 

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Nilto Maciel nasceu em Baturité, Ceará, em 1945. Formou-se em Direito pela UFC. Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco. Mudou-se para Brasília em 77 e regressou a Fortaleza em 2002. Editou a revista Literatura de 1991 a 2008. Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais. Participa de diversas coletâneas de contos. Cultiva a prosa de ficção curta e longa e, com menor intensidade, o verso. Dedica-se também a comentar livros. Exercita-se no blog “literatura sem fronteiras”, desde 2005. E-mail:niltomaciel@uol.com.br




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