Um poema-ensaio em cinco filmes
Godard
Um poema-ensaio em cinco filmes
( Partes 1 e 2)
.
- SOCIALISMOS
Referência: Os prêmios de Julio Cortázar
Krishnamurti, um grande pensador e educador libertário, disse certa vez que só pode haver relacionamento entre duas pessoas quando não há imagens entre elas (ver “O que você está fazendo com a sua vida?”, Ed. Nova Era, Pág. 204 ).
Obviamente, ele se referia às projeções que jogamos em cima uns dos outros. E não ao cinema. Se estivesse vivo, ele poderia dizer a mesma coisa, das várias redes sociais, que se alimentam mais do isolamento e das projeções de imagens sobre os outros e sobre elas mesmas, da construção de capas para encobrir o real. A vida exige a presença.
Vou tentar sempre relacionar o mundo da cultura com o campo do pensamento. Usarei, como Guimarães Rosa e Saramago ensinaram, uma acentuação errática. Sim, sou tão pretensioso quanto Godard e é com ele que começo. “Film Socialisme”, seu último filme, foi exibido no Cinearte Posto 4, em Santos, e me lembro que várias pessoas se levantaram antes do término da sessão: não conseguiram se relacionar bem com as imagens que querem ser mais do que imagens de JLG. Talvez porque, e ouso dizer isso, em suas vidas, as imagens sejam apenas imagens e nada mais, que pobreza. “Enquanto isso, sinto a fome do rico/no eterno azul do mar”, cantou o genial Arnaldo Batista, autor de um livro que passou em branco e deve ser lido com urgência (procurem “Um rebelde entre os rebeldes”, Ed. Rocco).
Não tenho linha de raciocínio. Tenho uma teia de citações que uso para construir um poema sutil, aí já é possível que você, mesmo no canto 4 do purgatório, ou seja, na fila do banco, se relacione com o poema pré-existente, justamente ao sair do banco, como pensou certa imagem de Godard em “Film Socialisme”. Godard poderia filmar a vida de Krishnamurti. Seja como não for, só pode haver relacionamento entre duas pessoas quando há a poesia de grandes e silenciosos pensamentos entre elas, como se fossem pontes entre imagens que querem ser mais do que imagens: imagens pensantes, imagens autônomas, como em Godard, Hitchcock, Chaplin… Voltarei a falar sobre isso em outras colunas. Na falta da poesia de grandes e silenciosos pensamentos, é claro que eu, sendo outras pessoas, me levantei da sessão de “Film Socialisme” antes do final do filme. Havia um rapaz negro, sentado ao meu lado, que nos olhou com um ar de reprovação e de ironia. Se não estamos enganados, ficaram na sala apenas ele e mais duas pessoas.
Os socialismos se dividem entre os socialismos das imagens e os socialismos dos valores. Em uma cena do filme, uma criança aparentando 07 ou 08 anos pergunta ao pai se ela pode se candidatar à presidência da França; em outra cena, a poeta e performer Patti Smith interpreta a si mesma, a cena da criança se liga a outras cenas da filmografia de Godard onde aparecem crianças-sábias, isso não vincula Godard a uma visão da infância relacionada ao Emílio de Jean Jacques Rousseau, a criança aparece nestas cenas como um símile ou equivalente de um Mozart na infância, como uma possibilidade anômala de potencialização de uma esperança. A cantora Patti Smith aparecendo como ela mesma, vincula a viagem do filme até as fontes da cultura europeia a uma gama de valores humanistas que só podem ser associados ao Rock and Roll como movimento comportamental, Patti Smith não está deslocada de seu mundo dentro de um filme de Godard e tem dentro da cena o mesmo valor de equivalência da criança mas em um contexto maior, semelhante ao da participação de Pina Bausch em La nave va de Federico F. , a vinculação com um real poético.
- NOSSA MÚSICA
Azul: Agora é um outro quadro e estou vendo Nossa música de mãos dadas com Isabelle, é a quarta vez que vejo o filme e desta vez dormi um pouco depois do Inferno e acordei na cena onde Godard fala sobre a imagem. Em Nossa Música existe o entrelaçamento entre ficção e realidade que JGL utiliza para investigar a permanência ou impermanência de uma possível poética da imagem. Como a ultima parte do filme e a primeira, as minhas mãos enquanto dormia se desconectaram das mãos de Isabelle, depois de ver o filme mais de duas vezes é fácil perceber que o inferno e o paraíso não estão de mãos dadas em um pacto de conciliação, existe uma simplificação que de fato amplia o significado da frase ‘o outro mundo’ aproximando este outro do Outro de Rimbaud. A mão de Isabelle dormiu junto comigo durante o Inferno de Godard, como o artista dorme dentro do jornalista ou o cineasta dentro do pintor e não o pintor dentro do cineasta,me parece que Godard ainda é um caso raro, talvez ele seja o último pintor e o ultimo jornalista investigativo a usar o cinema como veículo para a poética da imagem. Se havia Patti Smith em Filme Socialismos,em Nossa Música temos os escritores e poetas Juan Goytisolo & Mahmoud Darwich, a voz dos poetas equivale a uma canção de Horses? Sim, por estas e outras aproximações , discordo dos que vêem neste filme a busca por uma potência do falso,
Amarelo: Ao reconfigurar as palavras-movimento campo e contracampo como metáforas, ele as liberta do cinema e no que se refere a uma ambiguidade entre o ficcional inserido dentro do documental, JGL caminha para um lugar onde o documentário pode respirar um pouco do ar onírico da ficção e assim transcender os aspectos limitadores de uma visão dicotômica entre fato e ficção, trata-se repito de um embaralhamento e não de uma cartografia ambígua entre pintura e cinema, fato e ficção. Acordei com a voz de Isabelle me perguntando: ´Ariel , qual é o sonho do indivíduo?’
Vermelho: ‘ O sonho do indivíduo é ser dois e o do Estado ser um’ , a resposta, Godard prefere a arquitetura ao jogo. Uma arquitetura de interações entre a história da pintura e a história do cinema.
.
Equação oceânica
Solitária é a vida refletida nas redes sociais, peixes abissais paralisados por um ‘ sonhar com o Sol’. Estamos lendo Finita de Maria Llansol, livro que de algum modo dialoga com o My Life de L. Heijinian , gosto de imaginar estes diálogos entre singular e plural, isso deve ser a alma das redes, também lendo um livro de entrevistas de Deleuze como se fosse um livro de poemas e um diário. Uma frase de Finita me pensou, a frase é esta; ” Creio que onde há prazer, o conhecimento está próximo”. Um beijo na boca do fantasma reluzente de Maria Llansol por ter dito que o conhecimento está próximo e não que ele deve estar próximo e logo a seguir ela fala da luz dos peixes.
.
John Cage 100 anos 32 perguntas/32 respostas
Trad. Livre de Alexandre Cons ( Perguntas)
NICHI NICHI KORE KO NICHI: TODO DIA É UM LINDO DIA
E se eu fizesse 32 perguntas?
Ariel: Você estaria propondo 32 silêncios.
.
E se eu parasse de perguntar agora e sempre?
Ariel: O caos reina? Duvido, as perguntas são as coisas, elas são poemas e perguntas, ao abdicar da pergunta no agora e sempre temporal ainda assim as coisas continuariam a nos perguntar no agora e sempre espacial.
.
Isso tornaria as coisas mais claras?
Ariel: O opaciamento é o início da claridade, som da noite acabado, som da manhã chegando. Mas o opaciamento não equivale ao silenciamentom a luz sim, é uma espécie de silêncio.
A comunicação é algo que fazemos de maneira clara?
Ariel: A comunicação acontece em camadas de opaciamento e pequenas luzes, que são o anúncio de um conhecimento direto pela via da intuição compartilhada ou pela via dos silêncios compartilhados, ora cinema mudo, ora cinema falado.
.
O que é a comunicação?
Ariel: Luz simbólica.
.
Música, o que ela comunica?
Ariel: Luz invisível ou memórias ancestrais do indizível ou rastros harmônicos de uma destas duas coisas.
.
O que é claro pra mim é claro pra você?
Ariel: Apenas quando estas fronteiras se dissolvem.
.
Música são apenas sons?
Ariel: Não.
.
Então, o que ela comunica?
Ariel: Ela também comunica estados imanentes.
.
Um caminhão passando é música?
Ariel: Em alguns espaços-tempo ele é música, desde que o silêncio o envolva de um modo particular.
.
Se eu vir alguma coisa, eu também tenho que ouvi-la?
Ariel: Num sonho, sim. A música do sonho são as coisas.
.
Se eu não ouvi-la, ela ainda assim se comunica?
Ariel: Sim, a comunicação depende de uma abertura, de um estado de aceitação. A escuta pode ser absoluta, aí está a transcendência do eu.
.
Se enquanto eu vejo algo, eu não o ouço, mas sim
ouço outra coisa -digamos uma batedeira, porque
estou dentro de casa olhando pela janela-,
quem é que se comunica, o caminhão ou a batedeira?
Ariel: O mundo.
Qual deles é mais musical, um caminhão passando
por uma fábrica ou um caminhão passando por uma
escola de música?
Ariel: O mundo.
As pessoas que estão dentro da escola de música e
as que estão fora são não-musicais?
Ariel: Não acredito em exterioridade-interioridade da não-música.
.
E se alguém dentro da escola não escutar muito bem,
isso mudaria minha pergunta?
Ariel: Todos os sentidos podem a seu modo ‘ouvir’ , a escuta é cerebral e cada órgão do corpo possui um cérebro particular ligado ao cérebro central.
.
O que você acha que quero dizer com “dentro da
escola”?
Ariel: Disposição espacial para um tipo de escuta criativa, mas a disposição temporal para a mesma coisa não está necessariamente ligada a uma “escola”
.
Os sons são apenas sons ou eles são Beethoven?
Ariel: os sons são autônomos, energia autônoma.
.
As pessoas não são sons, são?
Ariel: Se a luz é som, ela são luz.
.
Existe alguma coisa que podemos chamar de silêncio?
Ariel: Sim, em algum lugar fora do mundo que está dentro do mundo.
.
Mesmo se eu me afastar das pessoas, eu ainda ouvirei
algo?
Ariel: O corpo do som.
.
Digamos que eu me ausente, indo para a floresta,
ainda vou ouvir uma corrente de tagarelices?
Sempre existe algo para ser ouvido, sem nunca existir
qualquer paz e quietude?
Ariel: Ausência não significa silêncio.
.
Se minha cabeça está cheia de harmonia, melodia e
ritmo, o que acontece comigo quando o telefone toca,
para onde vai minha paz e tranqüilidade?
Ariel: Como disposições, para todo lugar e toda parte.
.
E se fosse harmonia, melodia e ritmo europeus que
estivessem em minha cabeça, o que teria
acontecido se a música javanesa aparecesse na minha
cabeça?
Ariel: Comunicação, desde que a escuta se faça presente, sem projeções.
.
Chegaremos a algum lugar fazendo perguntas?
Para onde iremos?
Ariel: Para Aqui e Agora?
.
Estão são as 28 questões?
São questões importantes?
Ariel: São devires.
.
Por que você precisa proceder com cautela em termos
dualísticos?
Ariel: Para não ser engolido pela ilusão.
.
Terei mais duas perguntas?
Ariel: ……………………………………………………..
.
E agora, terei mais uma?
Ariel: ………………………………………………………
.
Agora que eu fiz 32 perguntas, posso fazer mais 44?
Ariel: ………………………………………………………
.
Eu posso, mas será que devo?
Ariel: ……………………………………………………….
Por que preciso continuar perguntando?
Há alguma razão para perguntar por quê?
Ariel: ………………………………………………………………..
.
Eu perguntaria por que se as questões fossem sons e
não palavras?
Ariel: provavelmente sim.
.
Se as palavras fossem sons, elas seriam musicais ou
seriam apenas barulhos?
Ariel: Como você mesmo disse, não existe o barulho.
.
Se os sons fossem barulhos, e não palavras, eles
teriam significado?
Ariel: Significado para a luz e para som, talvez seja possível transcender isso.
.
Eles seriam musicais?
Ariel: O que é o ‘não-musical’?
.
Digamos que existam dois sons e duas pessoas, e
todos são belos, existiria comunicação entre eles?
Ariel: Sim.
.
E se há regras, quem as faz, eu pergunto a você?
Ariel: A disposição para a harmonia, a disposição para o caos, ambos complementares.
.
Isso começa em algum lugar, e se começar, onde é
que acaba?
Ariel: Na resposta anterior.
.
O que aconteceria comigo e com você se tivéssemos
que estar em um lugar onde não houvesse beleza?
Ariel: Um novo tipo de beleza não conhecida.
.
E eu lhe pergunto, o que aconteceria com nossa
experiência de ouvir se os sons belos acabassem e se
o único som que restasse fosse feio, o que aconteceria
conosco?
Ariel: Isso é inimaginável.
.
Seríamos capazes de percebê-los de tal forma
que ficassem belos?
Ariel: Talvez.
.
Se desistíssemos da beleza, o que teríamos?
Ariel: O impossível nada.
.
Teríamos a verdade?
Ariel: Não.
.
Teríamos a religião?
Ariel: Talvez.
.
Teríamos a mitologia?
Ariel: Possivelmente
.
Saberíamos o que fazer com algo se tivéssemos esse
algo?
Ariel: Nós somos esse algo.
.
Teríamos uma maneira de ganhar dinheiro?
Ariel: Infelizmente sim.
.
E se ganhássemos, ele seria gasto em música?
Ariel: Duvido.
.
Se a Rússia gasta 60 milhões na Feira de Bruxelas,
sendo que muitos dos quais em música e dança, e os
EUA gasta 1/10 disso, ou seja 6 milhões, isso significa
que um em cada dez americanos são musicais e
‘kinestetas’ enquanto todos os russos o são?
Ariel: Isso é estatística e não estética.
.
Se abandonássemos o dinheiro, o que teríamos?
Ariel: Uma ética nova..
.
Já que ainda não abandonamos a verdade, onde é que
deveríamos procurá-la?
Ariel: Em lugar nenhum.
.
Nós não dissemos que não iríamos, ou apenas
perguntamos para onde estamos indo?
Ariel: Dizer é uma coisa projetada no ser e ser é um lugar
.
Se não dissemos que não iríamos, por que não
dissemos?
Ariel: Ver resposta anterior.
.
Se tivéssemos algum bom senso em nossa cabeça, não
deveríamos conhecer a verdade ao invés de rodar por
aí procurando?
Ariel: Bom senso e verdade não são irmãos siameses.
.
Por outro lado, como poderíamos ser capazes de beber
um copo de água?
Ariel: Com sede.
.
Nós conhecemos, décor e salteado, as religiões, a
mitologia, a filosofia e a metafísica das outras
pessoas, então que necessidade teríamos de ter
uma nossa, se tivéssemos alguma – mas não temos,
temos?
Ariel: Podemos ser?
.
Mas a música, temos alguma música?
Ariel: Podemos ser!
.
Não seria melhor apenas abandonarmos a música
também?
Ariel: Teríamos de encenar continuamente a volta do filho pródigo.
.
E então, o que teríamos?
Ariel: Exercícios de imaginação
.
Jazz?
Ariel: O Simurg
.
O que restaria?
Ariel: Não sei.
.
Você diz que este é um jogo sem propósito?
Ariel: Não.
.
Isso é o que é quando você acorda e ouve o primeiro
som de cada dia?
Ariel: O Simurg.
.
É possível que eu continue para sempre fazendo
perguntas, monotonamente?
Ariel: Como projeções elas não são monótonas.
.
Eu saberia quantas perguntas fazer?
Ariel: podemos ajuda-lo nisso, infinitamente.
.
Eu teria que saber como contar para poder fazer
perguntas?
Ariel: Sim, a matemática e a harmonia estão interligadas.
.
Tenho que saber quando parar?
Ariel: Silenciosamente, não.
Esta é aquela chance que temos de estar vivos para
fazer apenas uma pergunta?
Ariel: Mais de uma, como escreveu na sua partitura de silêncios, Clarice Lispector: A vida é uma pergunta.
.
Por quanto tempo ficaremos vivos?
Ariel: O tempo é a energia do silêncio, a vida também…
.
SILENCE, John Cage
.
Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008), Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco,2010), O Céu no fundo do mart ( Dulcinéia Catadora,2009), A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011) entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com
Comentários (4 comentários)
Comente o texto

24 setembro, 2012 as 13:34
4 novembro, 2012 as 18:19
3 março, 2017 as 21:44
3 março, 2017 as 21:47