Marcelo Nocelli à queima roupa
.
1-) A vida possui elementos ficcionais em sua tessitura, até que ponto você se utiliza destes elementos para digamos ‘proustianamente’ criar seus livros, escrever é ‘roubar’ da vida ou inventá-la?
Proustianamente é superlativo literário que não cabe aos meus livros… rs* Mas creio que para criar uma obra literária tomamos muito emprestado da vida. A matéria-prima para escrever vem da vida, aquela que eu vivo, aquela que eu observo, mesmo de longe, aquela que eu gostaria de observar e até aquela que eu nunca gostaria de viver. Quando escrevo imagino como se aquela criação realmente tivesse acontecido ou estivesse acontecendo diante dos meus olhos. Acho que a vida ainda é maior que a arte.
Sem vida não há arte. E arte sem vida, não é nada.
2-) Na sua opinião existe alguma função social do escritor ou temos a liberdade da precariedade como disse certa vez Cioran?
A liberdade para criar é fundamental. No meu caso, o primeiro compromisso é com a linguagem. Uma preocupação estética. Tenho três livros publicados e considero meu projeto literário ainda bem em início de construção. (O ideal é que ele nunca possa ser dado como pronto). Sou pouco ligado à teoria. Sou um leitor fervoroso de ficção, em especial a literatura brasileira contemporânea. Troco facilmente a leitura de um livro ou artigo teórico ou mesmo de um ensaio filosófico por um romance, mesmo que este seja de qualidade duvidosa. Digo isso para pontuar, não só meus pontos fracos na literatura, mas também para justificar minha preferência pela liberdade da precariedade.
Dia desses terminei de ler A consciência de Zeno, romance do escritor italiano Italo Svevo, publicado, originalmente, em 1923. O livro me encantou. É muito bem escrito, tem enredo e personagens muito bem construídos, mas outra coisa me chamou atenção no romance: o contexto histórico. Zeno, personagem principal do livro, vive o tempo e o espaço do autor – Trieste (cidade ao norte da Itália) nos anos 20 – expondo ao ridículo os valores morais da burguesia da época (que infelizmente não mudaram muito) e valendo-se da psicanálise como livre associação de ideias, satirizando, inclusive, a ciência criada por Freud, de quem Svevo era tradutor na época.Aprendi muito da burguesia italiana do começo século XX com este romance.
Eu gosto de situar os meus textos no meu tempo. Quando penso num possível enredo, penso sempre no meu tempo. Mesmo nos contos do meu Reminiscências, os personagens estão sempre lembrando algo, um tempo passado, mas estão no presente. Gosto dessa ideia de registrar o meu tempo nos textos literários, não como um espelho do mundo social, mas parte construtiva dele, ou seja, assim como a texto sofre a ação do meio em que é produzido, sobre ele, age como elemento de reflexão, o que não deixa de ser um ato social, mas não como compromisso. Penso que se um autor escreve uma obra com intuito principal de cumprir alguma função social, terá grande chance de se distanciar de uma obra artística para cair noutros terrenos…
.
.
3-) Fale um pouco sobre seu primeiro livro O espúrio, o que o motivou a escrevê-lo e como você o avalia hoje e sobre seu mais recente Reminiscências, de onde surgiu a ideia para ele e ainda dentro da dimensão da primeira questão, o que nele foi retirado da sua e o que é invenção e por que?
O espúrio tem um enredo que eu gosto muito. Mas é mal escrito. Naquela época eu ainda pensava que ter uma boa história era o principal para se ter um bom livro. E, claro, como a maioria dos pretensos escritores inéditos tinha ânsia de vê-lo publicado logo.
Quando eu estava na função de secretário geral da UBE (União Brasileira de Escritores) em 2014, fui convidado para organizar uma antologia de contos de autores brasileiros com até quarenta anos, inéditos na Alemanha para publicação por lá. Conversando com a editora (uma brasileira que vive na Alemanha) falei sobre o meu livro O espúrio. Meu comentário se deu porque ela havia mencionado uma cidade que estava no meu romance. Então ela ficou curiosa. Pediu para ler e resolveu traduzir e publicar o livro. Mas indicou algumas bobagens que eu deveria corrigir. Além dos apontamentos dela, por conta própria, tive a oportunidade de tirar boa parte de trechos que tanto me incomodavam. Para se ter uma ideia, o livro saiu aqui, em 2007, com 282 páginas e a versão que mandei para a tradução tinha apenas 170. Melhorou muito, mas ainda assim, pra ser razoável precisaria reescrevê-lo inteiro. Depois disso escrevi uma novela policial, O corifeu assassino (publicado em 2009, com 128 páginas). Nessa época eu estava cursando Letras e fazendo algumas oficinas e cursos voltados para a literatura. Estava deixando de ser apenas um leitor voraz (que tinha se precipitado em publicar um livro) para tentar ser um escritor, no sentido de buscar técnicas e entendimento para tanto.
Já os contos do Reminiscências eram textos que eu havia começado a escrever desde a época d´O espúrio, que fui, ao longo dos anos, mexendo aqui e ali, lapidando aqueles textos tão brutos, contando com a leitura de amigos da faculdade. Depois veio a amizade com Jucimara Tarricone (que havia sido minha professora) e que, com duras e necessárias críticas, me abriu os olhos, me apresentou teorias e mudou minha forma de enxergar a literatura. Mais tarde, apresentei os contos como projeto literário na oficina que fiz com Luiz Antônio de Assis Brasil (em 2012). Quando terminei essa oficina, tive o original aprovado para publicação numa editora de porte médio. Mas nessa época eu já estava com o projeto da Editora Reformatório bem adiantado, e decidi que não seria interessante iniciar uma editora ao mesmo tempo em que publicava um livro por outra, então, decidi que o livro deveria sair pela minha editora. Foi a segunda publicação do nosso catálogo. Fiquei feliz com o resultado.
4-) Você aponta em uma de suas entrevistas que li, Cyro dos Anjos como uma referência, um amigo meu, Gilberto Mendes me disse certa vez que escrevemos para merecer ler os grandes escritores. Que escritores formam seu desejo de escrever, quais livros você apontaria como colunas do seu ser como leitor?
Cyro dos Anjos é aquele autor que eu gostaria de ser quando crescer. Seus livros têm tudo o que considero próximo da perfeição literária: bem escritos, linguagem apurada, personagens marcantes e enredos bem construídos. São de fácil entendimento e prazerosos de ler, mas nem por isso banais ou simplórios, ao contrário, e acima de tudo, são de uma beleza e poeticidade raramente alcançadas na prosa.
João Antonio é outro autor que forma esse desejo de escrever.
No mais, Graciliano Ramos, Machado de Assis e Mário de Andrade formam minha santíssima trindade da literatura brasileira.
Há ainda uma lista enorme de escritores brasileiros contemporâneos e de estrangeiros de todos os tempos que a cada vez que leio, penso que não mereço escrever.
.
5-) Bergson afirma que o passado é o verdadeiro tempo, nos contos de Reminiscências percebemos a força deste axioma, estamos presos no passado e a memória é o lugar onde a vida realmente acontece, você concorda com esta minha abordagem?
Sem dúvida. Na maioria dos contos de Reminiscências o passado, além do verdadeiro tempo, é também o espaço. É pra onde os personagens viajam através das lembranças, na busca de reencontrar um lugar onde um dia já estiveram e que só podem revisitar dentro deles mesmos. Olhar pra frente (para o futuro) é algo muito incerto. Enxerga-se pouco. A visão é mais ampla quando olhamos para o passado. Outra coisa que me fascina nessa questão é o fato de que podemos até guardar imagens nítidas na memória e mantê-las arquivadas, lá no fundo, mas quando recorremos as lembranças, podemos moldá-las de acordo com a nossa vontade. Mesmo que eu tenha na memória os acontecimentos de todo um dia no passado, em seus mínimos detalhes, posso lembrar apenas o que me interessa e da forma que mais me agrada, apenas o que foi prazeroso, deixando arquivado na memória todo o restante deste dia, o que pode tornar essa lembrança um tanto duvidosa, mas isso é o mais maravilhoso.
6-) Parafraseando Clarice que repetia incessantemente esta questão em suas entrevistas, o que é vida para você?
Essa é a mais difícil das questões. Não sei responder. Como disse Albert Camus: “na verdade a vida não tem muito sentido”. Mas, como disse a própria Clarice: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
7-) Se o escritor em você pudesse fazer uma pergunta essencial para o editor, qual seria esta pergunta e como você a responderia?
Pergunta: Com sinceridade, o que você achou do meu livro?
Resposta: Poderia ser melhor. Mas são os editores que dependem dos escritores, sempre e em todos os sentidos, nunca o contrário.
Saiba mais sobre Marcelo Nocelli, aqui.
.
Marcelo Ariel é poeta, coordena cursos de criação literária em Santos e São Paulo, mora em Cubatão, autor dos livros Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (Patuá), O rei das vozes enterradas (Córrego), Não -Eu (Dulcinéia Catadora), entre outros. Em 2016 deve lançar Com o Daimon no Contrafluxo pela Patuá e A criação do mundo segundo o esquecimento / Diários- 2010-2015 pela Imaginário Coletivo. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com
Comente o texto