Minha Vida


A diferença entre o barulho e a música em um livro que provocou um estranho silêncio e outras notas

Minha Vida, Lyn Hejinian, Dobra Editorial, Col. Passagens

Não tenho a menor dúvida de que a poesia norte-americana é um milhão de vezes mais enriquecedora do que o cinema e as séries de TV norte-americanas, estes últimos se tocam de leve na poesia que é produzida nos USA se tornam sublimes, por ser isto uma coisa óbvia como a morte, não consigo compreender o silêncio branco que se fez a propósito do lançamento no Brasil do contundente clássico da poesia norte-americana contemporânea My Life de Lyn Hejinian em uma tradução corajosa e límpida de Maurício Salles Vasconcelos. Nenhuma nota nos cadernos subculturais dos extintos jornais (respondida aí de modo irônico o porquê do vazio e da repetição da mesma borda de copo do já estabelecido e jamais a descoberta do original e por isso mesmo sempre novo). Nenhuma resenha (nem dos raros conhecedores da obra e importância de Lyn Hejinian ). A edição não é perfeita,  poderia ter sido bilíngue como a dos outros títulos da coleção Passagens  e ter preservado a capa do seu símile americano, o rosto meio ângelus novus, meio a irmã-de-Joni-Mitchell de Lyn Hejinian. Diz a apresentação do livro feita pelo tradutor :

“Associada à L=A=N=G=U=A=G=E  P=O=E=T=R=Y, da qual são, também, expoentes nomes como Charles Bernstein, Ron Silliman, Bob Perelman, entre outros, Lyn Hejinian é conhecida, sobretudo, por My Life, um pequeno “clássico” adotado em escolas, estudado em várias universidades, e admirado, especialmente, por sua peculiar composição autobiográfica, organizada em 45 blocos referentes a cada um dos anos de uma vida.

Ao mesmo tempo em que se funda no projeto de relatar a passagem de uma existência, apreendida até seu 45º ano, o livro de Lyn Hejinian interfere no sentido da sucessão. Marca o caráter de jogo, presente em seu empreendimento narrativo, orientado pelo trabalho da rememoração, que é, também, da ordem da imaginação, e se sustenta no plano eminentemente combinatório de linhas de prosa dispostas numa espécie de montagem poemática do tempo (a contar da ideia de consecutividade, de progressão).

O que Lyn Hejinian cria em Minha Vida é um jogo onde a própria realidade em seu aspecto de memória/sonho é convertida em metáfora e a musicalidade interior do tempo constrói um poema com fragmentos cadenciados de memória/sonho. Lyn se filia ao paradigma de tensionamento da linguagem como tessitura de experiências, conceito elaborado por Rimbaud em sua ‘ Carta do visionário’, ela de certa forma reelabora procedimentos de condensação e costura de camadas da realidade enquanto metáfora, utilizando verdadeiros planos cinematográficos mentais, leiam este trecho do  fragmento 2 de Minha Vida:

Você derrama açúcar quando ergue a colher. Meu pai encheu um velho vaso de farmácia com o que chamou de “vidros do mar”, lascas de garrafas velhas arredondadas e texturadas pelo mar, abundantes nas praias. Não existe s o l i d ã o. Isso acaba por se enterrar na veracidade. É como se alguém chapinhasse na água perdida dos próprios olhos. Minha mãe escalou a lata de lixo de modo a amassar o refugo acumulado, mas a lataria estava pouco equilibrada, e quando ela caiu quebrou o braço. Ela só podia aceitar, balançando o ombro. A família tinha pouco dinheiro, mas tinha um bocado de comida. No circo, somente os elefantes eram maiores do que tudo que eu podia imaginar. Pedra em forma de ovo de Colombo, paisagem e gramática. Ela queria algo onde o playground era terra, com grama, sombreado por uma árvore da qual pendia um pneu que era um balanço, e quando ela encontrou aquilo me colocou ali. Essas criaturas são compostas e nada do que fazem deve nos surpreender. [Como se dedicado a nós que “amamos ficar surpresos”]

Faço aqui uma elipse no meu texto para voltar para o momento da indignação total contra a  afasia voluntária de críticos, resenhistas e demais protagonistas gagás do chamado jornalismo cultural que ignoraram de modo retumbante o lançamento de ‘ My life ‘ no Brasil, são certamente os mesmos sacripantas que fazem eco para obras anódinas e badaladas, medianas e vazias de pensamento e experiências realmente desafiantes e do mesmo modo que ignoram a poesia de Lyn Hejinian, também ignoram a tempestade  cósmica que já se desenha no horizonte da cultura mundial, os livros de autores badalados da chamada new classe media do  Brasil, apenas sinalizam a imensa falta de projeto, pensamento e visão desta classe  e destes grupos  que defendem com o poder dos editais seus interesses de apropriação do território sem que saibam construir  nele , por absoluta ignorância das arquiteturas e musicalidades do espaço-tempo que existem, quando são visitados por algo belo, não conseguem sequer notar, vivendo no mundo da ausência de aura e de autenticidade, só conseguem ver e fala sobre o que já não existe.

 

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Nota final

O Evento cultural jamais será um acontecimento capaz de provocar alterações na realidade. Lírio Ferreira e sua epifania metacinematográfica chamada Sangue azul ficaram pouco tempo em cartaz , ainda assim , foi uma alegria rever Ruy Guerra neste conto epifânico sobre dois irmãos que se fundem com a natureza.

 

Para encerrar um aforismo retirado de Minha vida de Lyn Hejinian:

Atrás e para trás, porque, amplo e a mais. De tal modo esta arte é inseparável da busca de realidade. O continente é maior do que o conteúdo. Um rio enreda a península.”

 

 

 

 

 

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Marcelo Ariel nasceu em Santos, 1968. Poeta, performer e dramaturgo. Autor dos livros Tratado dos anjos afogados (Letraselvagem 2008); Conversas com Emily Dickinson e outros poemas (Multifoco, 2010); O Céu no fundo do mar (Dulcinéia Catadora,2009); A segunda morte de Herberto Helder (21 GRAMAS, 2011), entre outros. E-mail: marcelo.ariel91@gmail.com




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