Um homem que anda sobre a neve


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Há uma fartura de registros em vídeo do Godard do retiro suíço, inclusive, todos aqueles elaborados em complemento à mostra Voyage (s) en Utopie, grande retrospectiva multimídia de sua obra, instalada no Centro Beaubourg, em 2006. Desses documentos, um dos mais comovedores é talvez um flash de uma caminhada do cineasta por uma rua de Rolle, acessível no Youtube. Nessa particular tomada, evolui com alguma dificuldade pela neve que lhe entrava o passo um sujeito todo encasacado, de botas e cachecol de lã, que acena conformado para a câmera que o flagrou. Descobrindo com certa surpresa quem é o sujeito por baixo de seus agasalhos, o navegador da internet que porventura o visualize não poderá deixar de notar a solidão que agora cerca o homem que _ para dizê-lo ainda como o crítico do jornal Le Monde Jacques Mandelbaum _, esteve um dia no “centro nevrálgico do cinema francês”. No breve plano-sequência, o fundo atmosférico é não apenas glacial mas brumoso. “Bonnard dizia que em Rolle o azul vira cinza”, escreve Godard, numa carta datada de 1985 _ do arquivo da correspondênca da época do filme Détective _, comprazendo-se com o nevoeiro de seu interior natal, na periferia de Lausanne.

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Esse caminhante solitário que marcha sobre a neve propôs-nos pensar, um dia, que o cinema é a arte do século XX, o substituto do romance realista à bout de souffle, porque os traços que ali se imprimem já não são mais da mão do pintor, como os pôde preferir, em seu tempo, Baudelaire, que, como se sabe, reputou a exatidão da fotografia obscena, mas são rastros da referencialidade, capazes de nos fazer ver o mundo como pela primeira vez. Insistir nessa mutação das artes é “dogma fundador” dos Cahiers du Cinéma, como veremos dizer Antoine de Baecque, com a experiência de quem conhece não apenas todos os meandros da história da revista mas todos os meandros da vida de Godard (e de Truffaut, de quem também é o biógrafo).

Coincidentemente, é a imagem de um homem que anda sobre a neve que ocorre a Barthes evocar, para assinalar o alcance do significante fílmico, para ele infinitamente maior que o do significante verbal. Sobre isso, escreve: “No cinema, o significante em si está sempre presente, por natureza, seja qual for a retórica dos planos; trata-se, sem remissão, de uma continuidade de imagens; a película (de justo nome: é uma pele sem iância), prossegue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatutária do fragmento, do haiku. Coerções representativas  (análogas às rubricas obrigatórias da língua) obrigam a tudo receber: de um homem que anda sobre a neve, antes mesmo que ele signifique, tudo me é dado”. (Roland Barthes por Roland Barthes)

Notando que as “pequenas coisas” se tornam “grandes e formuláveis”, quando registradas por uma câmera, e chamando-nos a atenção para a dimensão do inconsciente fotográfico, Walter Benjamin pôs nestes termos os termos de Barthes: “Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmera lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. Características estruturais, tecidos celulares com os quais operam a técnica e a medicina, tudo isso tem mais afinidades originais com a câmera que a paisagem impregnada de estados afetivos, ou o retrato que exprime a alma do seu modelo” (Pequena História da Fotografia).

Dois contraintuitivos em plena vigência do veto às imagens na era dos críticos dos simulacros, Barthes e Godard estão igualmente cônscios de que a imagens têm inconsciente _ um morto espectral lá no fundo _, e a léguas de qualquer contemplação do trabalho da câmera como produtor de retratos da alma, pensando juntos que câmeras penetram, antes, a carne. Mas o acompanhamento dos fatos e o cotejo das ideias mostra que há muitas outras afinidades, por ora intocadas, entre estes dois contemporâneos que são ainda dois intelectuais públicos do século XX, igualmente passíveis de serem detratados, que se sobressaem em dois grupos dissidentes notáveis, armados de duas revistas revolucionárias, os Cahiers du Cinéma de André Bazin e a Tel Quel de Philippe Sollers.

 

[Excerto de Barthes em Godard- Críticas suntuosas e imagens que machucam (Iluminuras, 2015).]

 

 

 

 

 

 

 

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Leda Tenório da Motta estudou com Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva.  É Professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, pesquisadora do CNPq nível 1, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, tradutora e crítica literária, com passagem pelos mais importantes cadernos de cultura brasileiros. Traduziu, entre outros, O Spleen de Paris de Baudelaire e Métodos de Francis Ponge, o primeiro livro deste poeta a  sair no Brasil. Publicou, entre outros, Proust – A violência sutil do riso, que recebeu o Prêmio Jabuti, e Roland Barthes- Uma biografia intelectual (Iluminuras), finalista do Prêmio Jabuti.  Lança em 2015, pela Iluminuras, Barthes em Godard- Críticas suntuosas e imagens que machucam. E-mail: ltmotta@pucsp.br

 

 




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