Última palavra: Mão
Houve quem pensasse que Herberto Helder tinha morrido por haver esgotado a capacidade criadora. Não, ele só deixou de escrever porque a morte o ceifou primeiro. Não eram muitos, mas os poemas chegaram para um livrinho póstumo.
Poemas canhotos vem na sequência dos livros anteriores, a anunciar a morte, por isso com algum atraso. Vem como última conta do colar para garantir que a poesia toda é um poema contínuo. Acaba na palavra “mão”, a denunciar o conceito de arte manual que o poeta tinha da poesia: algo orgânico, visceral, como as secreções e outros fluidos. Algo a remeter para o seu título «Artes e Ofícios”, para o aparelho fonador e para o que este aparelho produz: voz, como em Photomaton & Vox.
“Maneira cega”, escreve ele, a contrariar as tantas maneiras como os amigos vão morrendo, é afinal a única: o único estilo. Tanto podemos ligar o assunto a “As maneiras” como a “As musas cegas” – não será a Morte uma delas? Não tem sido essa a principal musa, nos últimos três ou quatro livros? E há outra com a mesma dimensão, claro, a Vida. Para me repetir, tal como ele se repete, este poeta arredio de biografias e de biógrafos, com toda a sua poesia efabulou uma selfie, para usar termo da moda: uma biografia em sentido literal, grafia da sua biologia, do seu corpo na saúde, no erotismo e na doença, que se erige em dois pontos altos: nascimento e morte. Entre estes últimos dezasseis poemas, tal como em A morte sem mestre, um deles reinventa o nascimento, com a imagem central do cordão umbilical.
Veio o Poeta de mão dada com a Poesia, apesar de ser ela, parece, a amada que habita o cume das altas montanhas, enquanto ele, a seus pés, se auto-esmaga. Ela acompanhou-o até aqui, até uma compreensão física da morte – o fechamento de Ramos Rosa em si mesmo, que afinal é o fechamento do próprio Herberto, ou a “maneira cega” de morrer – assim também se cerram portas e janelas, no penúltimo poema. O único estilo para a receção da morte desses que “estão a morrer de todas as maneiras” é a “maneira cega”, o ponto zero do conhecimento, o do perpétuo iniciando, ou nem isso.
Poemas canhotos, um título atroz, difícil de pronunciar, que argumenta contra Deus alguns impactos de Demónio. É mais comum sermos bons do que maus; mesmo quando somos maus, nunca o somos a ponto de luciferinamente condenar Deus. Mas é isso o que tramam os Poemas canhotos, falhando evidentemente a carga maléfica em razão do ateísmo. Só um crente se pode erguer contra o Criador. Corrigindo a mão, também é verdade que o Ateísmo é uma crença. É pois nessa religião que o Canhoto se ergue, ciente de que se ergue da cultura tradicional portuguesa. Vários poemas, entre eles primeiro e último, são rimas em redondilha maior, a revelar o rio camoniano da sua formação literária.
Não são novidades absolutas, mas trata-se de maneiras menos usuais de praticar os poemas em Herberto Helder. É claro que as rimas e as redondilhas, sendo praticadas pelos eruditos, conservam o espírito popular, e a temática do canhoto abre mesmo as portas ao estudo do folclore do Diabo na sua obra. Acrescentemos a estes tópicos herbertianos menos familiares o facto de em vários poemas surgir uma voz feminina, mulher que dialoga ou assume a fala monológica e pouco falta para concluir. O pouco é muito intenso e resume-se na sua autoanálise: dessem-lhe o Nobel, o Camões, o Pessoa, tivessem-lhe dado o mundo todo e o tudo seria nada, pois a sua fome permaneceria insaciada. Fome de quê? E de que havia de ter fome quem cresceu e morreu criança órfã?
Não leremos mais livros de Herberto Helder com textos novos (em princípio). Mas hão de aparecer textos dele que quase ninguém conhece, como o soneto “Larva”, publicado por ocasião de uma queima das fitas, amistosamente enviado por Luís Manuel Gaspar e que inserimos neste número da Revista Triplov . Herberto Helder era demasiado seletivo e elitista, mas a verdade é que ao estudo da obra não interessa só o que ele considerava digno de publicação e comentário. E nem todas as suas eleições foram dignas de prémio, caso do registo ortográfico próprio, que nada adianta e só serve para gerar confusão.
Interessa o que transporta informação, por isso dá a conhecer, como “Larva”, por muito poesia larvar que seja ainda, numa esperança de borboleta:
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LARVA
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Pelo tempo chamado do Outono,
quando a beleza é mais oculta e calma
e na face das coisas pesa o sono
das águas do desejo, fecho a alma
e fico sem estrelas e sem nome.
Humilde, vou tecendo meu destino
futuro de palavras e de fome.
Nesse tempo do Outono meu latino
esplendor é uma cinza paciente.
Meu espírito, um lago verde. Quente,
porém, a gota que leveda ao fundo
do silêncio. Depois serei o Dia,
e com poemas e sangue e alegria
nascerei, incontido, sobre o mundo!…
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Compare-se esse poema com o grafito na parede do quarto onde viveu, na Real República Palácio da Loucura (1):
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HISTÓRIA
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O senhor do monóculo
usava uma boca desdenhosa
e na botoeira, a insolência
duma rosa.
Era o poeta.
Quando passava
– figura subtil e correcta,
toda a gente dizia
que era o poeta.
– Era, portanto, o poeta…
Mas um dia
o senhor de monóculo
quebrou o monóculo,
guardou a boca desdenhosa
e esqueceu na mesa de cabeceira
a flor que punha na botoeira,
a insolente rosa…
Entrou nas tabernas e bebeu,
cingiu o corpo das prostitutas,
jogou aos dados e perdeu,
deu a mão aos operários,
beijou todos os calvários
– e aprendeu.
E o mundo,
que o chamava poeta,
esqueceu;
e quando o via passar
limitava-se a exclamar:
– o vagabundo!
Mas o senhor do antigo monóculo,
da antiga figura subtil e correcta,
sentia vozes dentro de si,
vozes de júbilo que diziam:
– É o Poeta! É o Poeta!…
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Nestes dois textos dos anos cinquenta, era ele estudante em Coimbra, vemos que está concentrado a fazer a mais radical opção da sua vida: a de ser poeta e não estudante ou qualquer outra coisa. As duas hipóteses são inconciliáveis porque Herberto é um romântico, sente o peso do “poeta maldito” sobre a cabeça e esse não pode ser o advogado nem o professor a viver pacatamente com a família, tem de ser o excluído, o marginal, o terrorista, o vagabundo e sobretudo, essa é a nota mais clara dos dois poemas, não pode ser o abastado nem o rico burguês. Ele o afirma, em “Larva”, e quem sabe se com ele não acaba para sempre essa estirpe de poetas que não se quiseram confundir com funcionários públicos da arte, e para os quais a poesia foi, sem metáfora nenhuma, um caso de vida ou de morte:
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Humilde, vou tecendo meu destino
futuro de palavras e de fome.
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[In: Revista Triplov, 52, 2015]
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Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov. Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados, entre eles dois livros dedicados a Herberto Helder; o segundo, «A obra ao rubro de Herberto Helder» foi publicado na Editora Escrituras, de São Paulo, em 2010. E-mail: estela@triplov.com

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