Regularidades originais
AS REGULARIDADES ORIGINAIS DE DENNIS E PAULO
A proposta deste trabalho é fazer um exercício de comparação entre dois poetas brasileiros de gerações distintas: Dennis Radünz e Paulo Henriques Britto.
Radünz é um poeta e escritor catarinense, nascido em 1971, autor de, entre outros, Extraviário e Ossama.
PHB, além de poeta, é tradutor e contista, nasceu em 1951, na cidade do Rio de Janeiro, e publicou várias obras, como Nenhum mistério e Formas do nada.
O que os aproxima, especialmente, é sua forma de organizar o material verbal em seus poemas. Ambos são “partidários” das formas regulares e se utilizam de padrões rímicos, rítmicos e métricos na estruturação de seus versos.
Como exemplo da fatura desses poetas, transcreveremos, a seguir, um poema de cada autor:
À Inconstância das Coisas desse Mundo
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nasce o Sol e some brusco no soneto,
sem nenhum dos decassílabos de heróis,
nem cesura ou rimas raras em bemóis,
versos brancos entre negros no Soweto.
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se de Luz a sua cruz, por que a chaga?
como o Metro a sua língua enclausura?
como foi sua Razão mudar-se em burla?
se é um ser de Forma Fixa, por que vaga?
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pois no Sol e sua Luz falta a grandeza
dessa sky-line de Xangai, insolente,
que escarnece Nova York e a natureza,
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antes nasce do que o Sol e para sempre
com sua forma fixa e rara, na certeza
da firmeza desse World Trade Center.
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(Dennis Radünz, em Extraviário)
Biographia literaria
.
I
Lembranças pouco nítidas, provavel-
mente falsas. Imagens que se ordenam
segundo uma lógica indecifrável,
talvez inexistente. Mãos que acenam,
.
uma porta entreaberta – não, fechada –
uma criança que não reconheço:
ou seja, muito pouco mais que nada.
É tudo que me resta do começo
.
disso que agora pensa, fala e sente
que pode ser denominado “eu”.
Claro que houve um instante crucial
.
em que esses cacos mal e porcamente
colaram-se. E pronto: deu no que deu.
Já é alguma coisa. Menos mal.
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(Paulo Henriques Britto, em Formas do nada)
A partir da leitura dos poemas se percebe que, além das semelhanças no uso da metrificação, da rima e da forma soneto, há algumas dessemelhanças mais ou menos evidentes. Antes de falarmos dessas dessemelhanças, é importante observar que a forma soneto é bem rara na obra de Radünz e muito comum na de PHB. Se escolhemos esses dois sonetos foi porque os consideramos bastante representativos de suas poéticas, além de se tratar de ótimos poemas (aliás, Biographia literaria, título homônimo do soneto de PHB, também é o nome de uma obra de Samuel Taylor Coleridge, publicada em 1817).
Em quase todo o trabalho de Radünz, podemos verificar o uso de vocabulário culto (sermo nobilis) e a elaboração de uma sintaxe que se afasta radicalmente da sintaxe do falar cotidiano, produzindo, muitas vezes, certo grau de hermetismo. No poema supracitado, esse sermo nobilis é evidente, além de ser igualmente perceptível o tom sério e elevado do texto, tom que, diga-se, é motivado pelo tema da peça. Por sua vez, o “sentido” do poema é complexo, a despeito de o título nos dar uma pista, ao falar da “inconstância das coisas”, simbolizada pela contraposição entre a forma fixa do soneto e a não-fixidez do “World Trade Center”. Aliás, soneto “sem nenhum dos decassílabos de heróis”: uma brincadeira com a denominação “decassílabo heróico” e com o fato de todos os versos do soneto terem onze sílabas poéticas (esquema rítmico 3-7-11, com exceção do 10º verso), e não dez (“sem-ne-nhUm/-dos-de-cas-sÍ/-la-bos-dehe-rÓIs”).
Por sua vez, PHB se utiliza, em quase todos os seus poemas, de vocabulário cotidiano (sermo vulgaris), linguagem próxima à oralidade, sintaxe simples e frases plenamente compreensíveis, estando a complexidade de sentido da sua poesia não nas suas partes (versos, frases), mas no arranjo da totalidade do texto poético.
Ao percebermos essas dessemelhanças, nos veio a pergunta: qual a razão para a ocorrência de todas essas semelhanças e diferenças entre os dois poetas?
A primeira possibilidade de resposta poderia ser encontrada exatamente na diferença de gerações.
PHB é próximo da poesia marginal, tanto geracional quanto geograficamente, já que ele é carioca como Chacal e tantos outros da “rapaziada” do Nuvem Cigana. Portanto, é provável que esse fato o tenha levado a incorporar algumas características daquele movimento literário, tais como a linguagem oralizada, o humor e a simplicidade sintática. Por outro lado, PHB não adere ao anti-intelectualismo e ao espontaneísmo da geração mimeógrafo e, ao fazer uso das formas regulares, ele se diferencia dos poetas marginais, que adotaram o verso livre como seu meio de expressão. Quanto ao verso livre, há algo bastante interessante e curioso na obra de PHB. Às vezes, o poeta parece “esconder” a forma regular num poema que, aparentemente, é feito em versos livres. Como este que faz parte da série “Nove variações sobre um tema de Jim Morrison”: “Por que é que essa tarde desmancha e desmaia e/ sufoca o que o dia erigiu por um triz?// Por que é que a manhã com esse estrépito todo/ dissipa o que a noite a tal custo ajuntou?”. Como se vê, aparentemente não há esquema rímico. Porém, no primeiro dístico, há, disfarçada, uma rima toante entre “des-maia-E” (“E” pronunciada como “I”) e “trIz”. E, no segundo dístico, teríamos outra rima toante entre “tOdo” e “ajuntOu”. Além disso, o primeiro verso tem 12 sílabas poéticas; o segundo, 11; o terceiro, 12; e o quarto, 11 (os versos de 11 sílabas têm esquema rítmico 2-5-8-11). Ou seja, numa primeira leitura, o poema parece ser composto de versos livres, porém, quando lido mais atentamente, percebemos que ele se organiza, sim, a partir de padrões rímicos, rítmicos e métricos.
Dennis Radünz, por ser de uma geração posterior, já via a poesia marginal, e também a poesia concreta, como partes de uma tradição já canonizada e não mais necessitava tomar partido, tendo que se colocar a favor ou contra uma ou outra estética, diferentemente do que aconteceu com a geração de PHB, que era pressionada a escolher um dos lados.
Apesar dessa distância da disputa entre marginais e concretos, parece que a geração de Dennis Radünz sofreu um influxo muito maior da poesia concreta, porém, um influxo filtrado especialmente pela poesia e pela figura “marginal” de Paulo Leminski, autor que é uma espécie de ponte entre a “porralouquice” contracultural dos marginais e o rigor arquitetônico dos concretos. Quanto à possível influência de Leminski, acreditamos que a poesia de Radünz se aproxima daquele estilo “parnasiano chique”, que, segundo Alice Ruiz – na “Apresentação” que a poeta escreveu para o livro Toda poesia, de Leminski –, seria representado pela poética dos livros La vie en close e Ex-estranho, mas que, em nossa opinião, já poderia ser notada em poemas de Distraídos venceremos. Neste último livro, encontramos o poema “Iceberg”, um bom exemplo do estilo “parnasiano chique”:
……..Uma poesia ártica,
claro, é isso que desejo.
……..Uma prática pálida,
três versos de gelo.
……..Uma frase superfície
onde vida-frase alguma
……..não seja mais possível.
Frase, não. Nenhuma.
……..Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
……..um piscar do espírito,
a única coisa única.
……..Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
……..(ou enxame de monólogos?).
Sim, inverno, estamos vivos.
No poema, a métrica varia entre 7 e 4 sílabas, há rimas toantes e consoantes, há um tom sóbrio, um vocabulário culto e a busca pela criação de um ritmo bem marcado pelas tônicas. Não é o rigor parnasiano, ou bilaquiano, mas também não é aquela poesia dos livros anteriores, a do “relaxo”, mais próxima da influência dos modernistas de 22, feita principalmente de verso livre e de humor cheio de “sacadas” espertas, tão características do Leminski de início de carreira.
Quanto aos exemplos da influência da poesia concreta e sua poética da visualidade na obra de Radünz, eles podem ser observados no livro Exeus, publicado em 1998. Neste, temos o poema “Edifício”, de clara referência à poesia semiótica, cujos fundamentos foram estabelecidos por Décio Pignatari e Luiz Ângelo Pinto no texto “Nova linguagem, nova poesia”, de 1964; e “Exumação”, poema também reproduzido no livro Ossama. Aliás, também de Ossama é o poema “Linha do tempo”, outro exemplo de influência da poética concretista.
A poesia concreta e de seus “patriarcas” (Leminski dixit) também podem ter influenciado, de maneira indireta, talvez, outras características importantes da poética de Radünz: o rebuscamento e o hermetismo, traços estes típicos de certos poetas provençais, especialmente aqueles do trobar ric ou trobar clus (traduzidos e estudados por Augusto de Campos). Henri Davenson define assim essas duas modalidades: “o trobar clus, e sua variante ou decorrência, o trobar ric, o estilo ‘artista’, provém de uma estética de tipo mallarmeano e não à la Rimbaud: a obscuridade é conquistada voluntariamente, laboriosamente e serve para revestir de ornamentos esplêndidos ou inesperados uma proposição que se poderia exprimir claramente” (citado por Augusto em seu Verso, Reverso, Controverso).
Um bom exemplo desse trobar clus é o poema “Terrábile”, publicado em Ossama. Vejamos a primeira estrofe: “um rio irremovível erra/ irrompendo nas terrinas/ repletas de terror amaro/ o barral ruim das minas”. Temos, nesta passagem, além do vocabulário culto, um predomínio de aliterações em “r” (Rio – iRRemovível – eRRa – Rompendo – teRRinas – teRRoR/baRRal), o esquema rímico ABCB, o esquema métrico 8-7-8-7 e um esquema rítmico regular (2-6-8 nos versos de 8 sílabas; 3-7 nos versos de 7 sílabas). A “obscuridade” desses versos, própria do trobar clus, se dá na criação de uma imagem – num primeiro momento, não muito clara – que é enfeixada de toda essa escolha lexical e de todos esses procedimentos poéticos, os quais nos desorientam e nos obrigam a voltar aos versos e a cada uma das palavras para que não corramos o risco de perder algo, perda essa que parece inevitável tal qual o desastre figurado no poema. Quanto ao título, “Terrábile”, que tem como subtítulo “[de um neologismo lido em Murilo Mendes]”, a despeito de não sabermos qual é esse neologismo, aquele nos parece soar como uma mistura (uma palavra-valise?) de “terra” e “terribile” (em italiano: terrível), o que nos faz lembrar que Murilo Mendes foi professor na Itália e escreveu, como se sabe, belos poemas em italiano. Portanto, podemos supor que “Terrábile” signifique algo como “terra terrível”, o que se justificaria pelo assunto do poema: a destruição das terras e a morte de pessoas e animais devido ao rompimento das barragens de rejeitos, como ocorreu em Mariana e Brumadinho.
Quanto a PHB, conforme dissemos anteriormente, a complexidade da sua poesia não está na sintaxe que se utiliza em seus versos ou na escolha vocabular, mas no todo do texto poético. As frases que compõem o poema são, quase sempre, facilmente inteligíveis. Porém, ao final da leitura do poema, ficamos com a sensação de que fomos ludibriados. O poeta parece guardar, ao final do poema, um sorriso irônico para a nossa empáfia de leitor todo-poderoso. Eis os versos finais do soneto já citado: “Claro que houve um instante crucial// em que esses cacos mal e porcamente/ colaram-se. E pronto: deu no que deu./ Já é alguma coisa. Menos mal.” Pode-se verificar, nesses versos, a predominância da linguagem oralizada, com o uso de frases feitas (“deu no que deu”, “Menos mal”) e expressão popular (“mal e porcamente”). Além disso, há o humor bem característico de PHB, observado nesses versos, em que sabemos que algo aconteceu (“cacos mal e porcamente/ colaram-se”), o que, como o sujeito poético diz, “Já é alguma coisa”. Mas o que é essa “alguma coisa”? Esta é “Menos mal” do que o quê? Sem resposta exata para essas questões, nos resta um vazio, ou o consolo de saber que, mesmo sem sentido, o “Menos mal” pode ser apenas o fato de continuarmos vivos.
Coincidentemente ou não, outro poeta que se utiliza de formas fixas, especialmente o soneto, e que nasceu no mesmo ano de PHB, é Glauco Mattoso, poeta que escreveu O que é poesia marginal, um livrinho muito interessante sobre a geração mimeógrafo e que foi publicado em 1981 pela Editora Brasiliense.
Lembremos também de Antonio Cicero, carioca como PHB, nascido em 1945, e igualmente fazedor de uma poesia construída a partir de padrões rímicos e métricos, além de também se utilizar, na maior parte de seus poemas, do sermo nobilis.
PHB, Glauco Mattoso e Antonio Cicero, a despeito da semelhança geracional, possuem poéticas muito diversas. Tentando uma breve definição (incompleta, certamente) de cada um deles, poderíamos dizer que: Cicero é o poeta do lirismo sóbrio e filosofante; Glauco é o poeta do humor escrachado e escatológico; PHB é o poeta da visão irônica e bem humorada da vida cotidiana. Três ótimos poetas ligados pelo gosto das formas regulares.
Conforme afirmamos, PHB viveu sua juventude em meio ao conflito entre marginais e concretos. E, se sua poesia tem muito do humor da geração marginal, ela também é um claro exemplo de rigor e concisão, tão típicos da poesia concreta… e de João Cabral. Não à toa, em Macau, encontramos “Fisiologia da composição”, que dá nome a uma série de cinco poemas e que é uma clara referência ao ensaio “A filosofia da composição”, de Edgar Allan Poe, escrito em 1846, mas também à obra cabralina Psicologia da composição, de 1947. A despeito de todo o rigor compositivo dessa série de poemas, PHB não deixa de aplicar nela o humor que tanto o caracteriza. Vejamos alguns versos do quinto poema da série: “(…) E a graça toda/ da coisa, é claro, é ela poder voar,/ feito um balão de gás, e sem que exploda// na mão, igual a um fogo de artifício/ que deu chabu. (…)”. Mais uma vez, a linguagem oralizada, por meio do uso da expressão gíria (“deu chabu”), é utilizada por PHB para acrescentar surpresa e humor ao seu poema (“chabu”, aliás, tem o sentido original de fogo de artifício que não estoura ou que explode imprevistamente, e “dar chabu”, por extensão, virou uma expressão para algo que deu errado, que fracassou).
Porém, se a diferença geracional poderia explicar as dessemelhanças entre Radünz e PHB, o que explicaria o uso de formas regulares, de padronizações estruturais por ambos os poetas?
Uma resposta possível seria a seguinte: as alternativas às formas regulares seriam o verso livre modernista, preferido pelos poetas marginais, ou o verso de sintaxe visual-espacial, que vem desde o “lance de dados” mallarmaico, passando pela “tortografia” de e. e. cummings, até chegar à poesia concreta. Parece-nos que evitar essas duas alternativas possibilitou a ambos os poetas a criação de poéticas próprias, que os diferenciaram tanto da poesia marginal (e do verso livre à Drummond, que nos parece ser a forma dominante na poesia brasileira dos últimos 50 anos) quanto da poesia concreta, conferindo originalidade às suas obras.
Para encerrar, gostaríamos de enfatizar que a iniciativa de realizar esta breve reflexão se deve à nossa admiração pela qualidade da escrita dos autores em estudo, dois representantes do que de melhor se produz em terras brasileiras, hoje, nesse gênero literário que continua correndo o risco de se tornar – como, certa vez, disse Haroldo de Campos – uma espécie de “arte da falcoaria”.
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Paulo de Toledo é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Poeta, publicou os seguintes livros: Torrão e outros poemas (Ed. Patuá, 2018), Concreróticos e Outros Versos (Dulcinéia Catadora, 2012), A Rubrica do Inventor (Ed. Multifoco, RJ, 2011), Hi-Kretos e Outras Abstrações (Sereia Ca(n)tadora, 2011) e 51 Mendicantos (Ed. Éblis, 2007; Ed. Amotape, 2013). Participou também dos livros Musa fugidia (Ed. Moinhos, 2017), VAIEVEM (Binóculo Editora, 2011) e LulaLivre*LulaLivro (Fundação Perseu Abramo, 2018). Colaborou com poemas, traduções, contos e ensaios para: Revista Babel, Meteöro, Cult, Revista Ciência & Cultura – SBPC, Coyote, Artéria, Revista Opiniães, Musa Rara, InComunidade, Correio das Artes, Suplemento Cultural de Santa Catarina, entre outros. E-mail: paulodtoledo@uol.com.br
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