O menino do oboé
“Cadê o oboé, menino? Toca aí o oboé!”
Paulinho, menino negro de uma pequena cidade do interior de São Paulo, para espanto de todos, aprende a tocar e se torna exímio no oboé, instrumento de orquestra europeu considerado de difícil execução e que emite (quando bem tocado) um som melancólico e uma ampla variedade de timbres e possibilidades de dinâmica. Por conta do instrumento e da música que extrai dele, o garoto traça um caminho de ascensão social que o leva a ser requisitado em festas e eventos e a viver na cidade grande onde brilha tocando em várias associações de homens e mulheres negras – experiência que lhe permitiu conhecer um pouco da trajetória do negro no Brasil. Ao se deparar, ainda na adolescência. com a vereadora negra Madalena Pires e ouvir que ela tinha uma antipatia política por seu oboé, e que ele, Paulinho, com sua música e seu som doce e mole, estava distraindo a mocidade negra, começa a duvidar de seu instrumento e, aparentemente, desiste do oboé e da música.
O parágrafo acima é uma síntese esquemática do conto “Cadê o oboé, menino? Toca aí o oboé!”, do poeta, prosador e crítico negro Oswaldo de Camargo (1936). Primeiro conto do livro O carro do êxito, foi reeditado em 2021 pela prestigiosa editora Companhia das Letras com alguns acréscimos e ajustes em relação às edições anteriores.
A primeira edição dessas narrativas breves presentes em O carro do êxito se deu em 1972 pela Livraria Martins Editora. Não por acaso, a mesma editora que havia publicado Lira Paulistana seguida de o carro da miséria, em 1945, do modernista Mário de Andrade. Não passa despercebido o fato de que o título do livro de Camargo se contrapõe ao de Mário de Andrade. O que seus personagens buscam nas narrativas é escapar do carro da miséria e alçar o carro do êxito.
O sociólogo e também prosador Mario Medeiros, prefaciador da reedição da Companhia das Letras, chama atenção para detalhes da primeira edição que trazia uma ilustração de Genilson, um jovem negro com seu cabelo black power na capa e, na contracapa, o jovem Camargo de terno e gravata.
Medeiros ressalta:
Essa atenção aos detalhes da primeira edição é importante pelo impacto visual, literário e político que a obra foi capaz de mobilizar entre alguns de seus leitores. Atente-se também ao contexto: foi publicada, com esse tema e marcas, num dos momentos mais brutais da ditadura civil-militar, que se recusava a reconhecer a existência do racismo e da discriminação contra negros no Brasil, enaltecendo, em vez disso, o mito da democracia racial. (Camargo, 2021, p. 11)
Nessa primeira edição, o conto a que vamos nos dedicar trazia o título de “Oboé”. Houve também uma segunda edição dessas narrativas em 2016 pela editora Córrego, e nota-se que o título do conto foi alterado para “Menino do Oboé”.
É necessário registrar também que, em 2014, Camargo lança uma novela com o título “Oboé” pela Editora Com-Arte. Há alguns elementos do conto nela: o menino negro que domina o oboé, que se apresenta na região, que busca alçar o carro do êxito e parte para a capital, a rememoração dos fatos na perspectiva do narrador já curvado pela idade. A narrativa, em primeira pessoa, são as memórias de um músico negro octogenário que repassa as vivências paradoxais de sua biografia de menino pobre, filho de catadores de café, que aprende a tocar oboé com colonos alemães recém-chegados à fazenda. O narrador relata como esse aprendizado iluminara sua existência e realça as complexas matizes das desigualdades observadas e vividas que lhe marcaram o espírito de homem negro.
Ele diz:
[…] sou hoje um homem desbotado, mas tive a minha cor: O oboé mostrou minha cor, de preto que se alçou e, então, foi notado; eu luzi, brilhei por cinquenta anos, na fazenda de Sinhazinha, em Pretéu, Vila Morena, em Mundéu, Tuim, aqui no triste dia do enterro do Antoninho que perdeu a vida pela mão do mestre por ter matado o pavão dele; depois, na capital. (Camargo, 2014, p. 37)
Na edição de O carro do êxito da Companhia das Letras, o conjunto de narrativas é dividido em duas partes. A primeira leva o título MENINO DO OBOÉ e é composta por apenas um conto, exatamente o “Cadê o oboé, menino? Toca aí o oboé!”. A segunda parte denomina-se CHÃO DE UM PRETO e é composta por 13 narrativas breves.
São relatos pungentes de negros que estão em trânsito, deslocados, todos buscando ou apostando em uma vida melhor, que a imagem proposta pelo título do livro abraça significativamente. Quase todas as narrativas estão em primeira pessoa.
Aliás, há nos contos um componente de autoficção que o próprio Carmago (2021, p. 17) assinala em uma nota: “… há neles, por vezes, ingredientes que caracterizam o que vem sendo chamado de autoficção (momentos e circunstâncias do percurso de vida do autor inseridos na ficção)”.
Não é à toa que Camargo faz esse comentário. Sabemos que sua história de vida é o pano de fundo de muitas de suas narrativas. Isso sem falar de seus poemas, faceta bastante significativa de sua produção literária.
No prefácio que o sociólogo Florestan Fernandes escreveu para a primeira edição de 15 poemas negros de Oswaldo de Camargo, por exemplo, ele ressalta esse aspecto vivencial (escrevivência?) de sua obra poética:
Às vezes, uma condição exterior à obra de arte pode ser significativa para a sua compreensão e interpretação. […] pudesse “explicar” a sua poesia à luz de sua condição humana – das influências e motivações psicossociais que ficam por trás da sua maneira de ver e de representar, poeticamente, emoções, sentimentos, aspirações e frustrações que poderiam ser entendidas como parte da experiência de vida do negro brasileiro.[1]
A mesma análise, cremos, vale para as narrativas de O carro do êxito. Camargo ficcionaliza seu percurso e experiências de vida, e por meio da literatura fala de si e da vivência de grande parte do negro brasileiro.
Camargo nasceu e viveu no município de Bragança Paulista em São Paulo. Estudou música em Seminário no interior do estado e depois se mudou para a capital, onde trabalhou como revisor, colaborou em diversos periódicos da comunidade negra paulistana e travou relações com as inúmeras associações negras.
Também é na cidade grande que o protagonista do conto “Cadê o oboé, menino? …” se dá conta das associações negras e do trabalho que realizam. O narrador comenta:
Em Mineu, eu não chegaria a saber nada disso, conhecer trecho algum do trajeto de preto. A placidez existente em Mineu vinha de todo esse desconhecimento. Minha mãe e meu pai morreram plácidos… (Camargo, 2021, p. 26)
Sabemos que as associações negras, como a Associação Negros Contemporâneos, a Irmãos Patriotas e a Luz Breu (“associação para manter a memória de escritores e compositores eruditos pretos ou semipretos” (Camargo, p. 27), citadas no conto, desempenharam um papel fundamental na sociedade brasileira, especialmente no que diz respeito à luta por igualdade racial, o fortalecimento da identidade negra e da autoestima da comunidade.
A “placidez” citada pelo narrador é um sinônimo da falta de consciência de sua identidade e história e da não compreensão do lugar social de espoliação e marginalidade da comunidade local.
Quando ainda estava em Mineu, Paulinho, já havia intuído que o estímulo que as senhoras da cidade davam para que ele continuasse tocando seu oboé tinha motivação mais complexa:
Para elas, acredito, era imperioso que eu prosseguisse tocando oboé, primeiro, para destacar na região o nome de Mineu, mas, segundo, e sobretudo, para exemplo a outros moleques, que, já se antevia, poderiam vir a ser, em tempo não muito distante, sobressalto para uma povoação que tinha fama de pacífica… (Camargo, 2021, p. 25).
Ou seja, aquela sociedade aparentemente pacata e plácida poderia ser convulsionada se algum dos pretos, ou pobres, ampliasse a consciência sobre sua condição ou se rebelasse contra seu destino.
Passado o susto inicial que as senhoras da Liga das Damas de São José tiveram ao ver um garoto negro e pobre tocando um instrumento tão “sofisticado”, que elas também desconheciam, perceberam que ele poderia ser usado como exemplo e modelo para a manutenção do status quo. Já estava em uso a estratégia da “representatividade” do negro ou do pobre. Se Paulinho conseguiu chegar lá, eles também poderiam. Tudo poderia ser resumido na questão do esforço, ou do mérito, como a comunidade negra ouve até hoje.
Paulinho iniciara seus estudos de oboé aos seis anos com Demétrio, um mulato já envelhecido. Enquanto os outros meninos jogavam bola ou desapareciam nas tardes de domingo, ele estava lá treinando as escalas e dinâmicas de “seu” instrumento.
As pessoas da cidade, no começo, quando o viam ou ouviam tocando, iam logo dizendo que aquilo era algo muito difícil e arrematavam: “Vejam esse negrinho, logo oboé?” Comentário que desvelava o olhar racista e preconceituoso dos moradores da região. Afinal, um negrinho como aquele não poderia (nem deveria se atrever) a fazer algo tão especial como tocar um instrumento de excelência branca.
No entanto, Paulinho aprendeu com desenvoltura, graças a seu mestre Demétrios. Ele lhe ensinou tudo e ainda lhe deu de presente o oboé (que havia herdado do pai, que herdara também de seu pai) e um álbum de modinhas imperiais recolhidas por Mário de Andrade em sua partida para a cidade grande.
Na capital, o fato dele tocar oboé gerou efeito parecido, mas de outro matiz. Bastou a comunidade negra olhar para seu oboé, “para divisarem nele possibilidade de horizontes jamais imaginados.” Os pretos mais antigos ficavam radiantes e emocionados: “Você toca, meu filho, você toca! O mundo precisa conhecer você!”
Muita satisfação e brilho nos olhos deles, quando, o oboé entre os lábios, tocava Gluck, Corelli, padre José Maurício (…), tanguinhos seletos de Ernesto Nazaré ou valsas e polcas de Chiquinha Gonzaga… (Ibidem, p. 27).
Embora Paulinho entremeasse seu repertório com uma ou outra obra de compositor brasileiro, fica sugerido que a elevação ou a emoção maior se dava por conta do instrumento e do repertório europeu sofisticado e bem tocado.
Tanto é assim que um dos ouvintes de uma associação negra, em seu discurso inflamado, reproduz o que o naturalista Fritz Muller[2] supostamente comentara sobre Cruz e Sousa:
Esse preto representa para mim mais um reforço de minha velha opinião contrária ao ponto de vista dominante, que vê no negro um ramo por toda parte (talvez sob todos os aspectos) inferior e incapaz de desenvolvimento racional por suas próprias forças. (Ibidem, p. 28)
Camargo consegue em sua narrativa tecer com sutileza várias camadas de reflexão da história e da vivência do negro no Brasil.
Convidado para tocar em outra reunião de “patrícios”, Paulinho ouve o anfitrião discursar:
— Este menino, (…) veio de muito pouco, caros amigos. Não fosse herdeiro de um cabedal de desgraças sociais, nem cá o teríamos tão perto, tão junto do nosso anelo, que o disputariam plateias mais vastas, (…)
Pousou-me a mão no ombro, voltou-se para uma das gravuras de Debret, cena familiar: o patriarca na liteira, com mulher e dois filhos; o menorzinho, mãozinha fora da liteira, tenta afagar o lombo de um cachorro; a seguir, descalços, dois molequinhos portando cestos de palha, com possível farnel para aprazível passeio no campo.
Habilmente, o narrador introduz na cena a imagem da famosa gravura do artista francês Jean-Baptiste Debret[3] que serviu-nos e ainda serve como um espelho da sociedade brasileira do século 19. Ela evidencia a acentuada desigualdade social da época, com o patriarca ostentando seu poder e riqueza, enquanto os escravos desempenham funções subalternas.
A justaposição das cenas (a gravura [“cena familiar”, que pode ser lido também como cena que ainda acontece bastante no momento presente] e a presença do menino com seu oboé) dramatiza sobremaneira a situação, ressaltando a fala “Não fosse herdeiro de um cabedal de desgraças sociais…” e revelando em síntese que o quadro mudou, mas nem tanto, pois alguém como Paulinho, com tanto talento e brilho, ainda está a tocar só para seus patrícios, e olha lá…
Podemos arriscar a dizer que tocar oboé, e o próprio oboé, se tornam um tropos[4] na narrativa de Camargo, cuja significação e recorrência extrapolam seu sentido primeiro de domínio de um instrumento. Não é um instrumento nem um domínio qualquer.
O oboé é um instrumento de sopro, da família das madeiras, e é necessário para tocá-lo a existência de palhetas duplas a serem sopradas. A vibração das palhetas (extraídas de uma cana especial) faz vibrar também a coluna de ar de dentro do oboé, produzindo o som das notas que são manipuladas por meio de chaves espalhadas pelo corpo do oboé.
Originalmente, o oboé é construído com madeira de ébano (ou jacarandá), que lhe dá sua característica cor negra. O oboé funciona como uma metonímia de Paulinho, menino negro, magro e esticado como o oboé e que se torna uno com o instrumento. O oboé torna-se também a representação da suprema nobreza do garoto negro (e puro). O narrador chega a comentar: “Oboé, sendo de madeira escura, casava com minha presença preta…”.
Sabemos que a origem do oboé é francesa (hautbois, madeira alta), do século 17, um dos instrumentos mais antigos nas orquestras e que recebeu composições de grandes nomes da música ocidental, como Bach, Mozart, Vivaldi, Albinoni, entre outros.
O comentário do narrador no início do conto revela essa linhagem: “acabei aprendendo, para espanto geral, a tocar oboé, instrumento difícil, supremo em sutileza e doçura na música ocidental”.
O oboé é supremo, a princípio, pela sua sonoridade, seu som característico, bucólico e doce, mas a vida negra de Paulinho se integra à sonoridade resultante tornando o oboé mais supremo ainda. Ele comenta em resposta a vereadora negra Madalena Pires: “Dizem que tem um som bucólico, mas minha vida pinta também o som dele; então não é só bucólico…”
Interessante também é notar que o ébano, uma madeira densa, escura e rara utilizada para a feitura do oboé, advém da costa oriental da África. O instrumento carrega os componentes negro e africano, como se esses componentes que o tornassem “supremo em sutileza e doçura” na música produzida no Ocidente.
Por outro lado, a palavra ébano também é utilizada para se referir à raridade da cor negra e, por extensão, é empregada como um elogio às pessoas negras.
Essa carga semântica que a palavra carrega se atualiza na peripécia final do conto. A vereadora Madalena Pires, depois de ver Paulinho tocando em várias associações negras, o convida até sua casa (e “não esqueça o oboé”, frisa) para tocar para ela e alguns convidados que receberia (patrícios, com certeza).
A vereadora deixa à vista de Paulinho vários exemplares da revista estadunidense Ebony. Dedicada ao público afro-descendente, a revista ficou famosa por “empoderar” a comunidade negra, oferecendo modelos positivos e celebrando as conquistas de afro-americanos em diversas áreas. Desde 1945, atua como um espelho positivo da comunidade negra em uma época em que os meios de comunicação eram dominados por narrativas eurocêntricas.
Paulinho folheia uma das revistas com o ator e ativista negro Sidney Poitier na capa. E a introdução desse personagem na trama, de passagem, revela mais uma vez a habilidade de Camargo de colocar várias camadas de informação e problematização na tessitura do conto.
Poitier ficara mundialmente famoso com o filme “Adivinhe Quem Vem para Jantar”, de 1967. O filme foi um marco na história do cinema por abordar de forma direta e corajosa o preconceito racial em um momento de grande tensão social nos Estados Unidos. Ele conta a história de um casal branco liberal que se choca ao descobrir que sua filha está noiva de um homem negro.
Ao observar Poitier na capa, Paulinho comenta: “Negros bonitos; jeitão de quem tem dinheiro”. Ao que Madalena Pires responde: “Chegaremos lá. Eles já caminharam bastante, algo já resolveram…”
Ela menciona depois que, como política, “o caminho da raça” lhe interessa, seu futuro. Fica claro que sua ideia de futuro está voltada às conquistas do negro estadunidense. Por lá, o negro alçou representatividade em vários campos da sociedade e a questão econômica (como o comentário de Paulinho sugere) parece estar mais bem resolvida. Nada mais distante de nossa realidade.
Mesmo hoje, passados mais de 50 anos da primeira edição do livro de Camargo, a situação do negro no Brasil não mudou muito. Diferentemente dos Estados Unidos, a parcela de negros (pretos+pardos) da população brasileira é maior (55%), no entanto, os postos de comando e de visibilidade são em sua maioria ainda predominantemente ocupados por pessoas brancas. No quesito econômico, a população negra ainda apresenta altíssimos índices de pobreza e desigualdade social.
As narrativas de Camargo trazem à tona o paradoxo existencial do negro no Brasil. A dicção de Camargo é negra, sua enunciação é negra, suas referências essenciais são negras. O negro está inscrito em seus escritos – se nos permitem o trocadilho com outro livro seu importantíssimo.[5]
Mais do que identificar aspectos de autoficção em suas narrativas, seria mais profícuo trazer o conceito de “sujeito étnico” elaborado pelo poeta e ensaísta Cuti (2010, p. 18).
O sujeito étnico ultrapassa a concepção de “eu”, a ideia da primeira pessoa, pois implica “a noção daquele que organiza o texto, nele acrescentando ideias sobre o mundo que, por vezes, carregam em si valores os mais diversos (estéticos, éticos, políticos etc.)”.
Os textos de Camargo, mais do que “lugar de fala”[6] apresentam o que podemos denominar de “autoridade de fala”. Conceito que consideramos mais abrangente por englobar diversos fatores, como conhecimento especializado, experiência profissional, posição social, temperamento, etc., não se limitando a experiências pessoais de opressão e não correndo o risco de essencializar as identidades e limitar o debate.
Aliás, o narrador do conto se utiliza dessa mesma expressão ao se referir aos vários instrumentos que já vigoravam na comunidade negra antes da chagada de seu oboé. Ele diz:
Instrumentos de poderoso ou suave apelo – zabumba, tambor, ganzá, pandeiro, flauta, clarineta – e outros, como o cavaquinho e a cuíca, e por numerosas vezes o violão, nesta cidade, já haviam se instalado na música deles, tinham autoridade de fala. Eram a fala. (Camargo, 2021, p. 26).
Assim como Paulinho e seu oboé buscam se instalar na música e naquele ambiente, alçando uma pretensa autoridade de fala, um escritor de extração negra como Camargo busca com sua ficção e seus ensaios críticos driblar o silenciamento da identidade negra na literatura brasileira, que perpassou os séculos e se instaurou no século 21 de variadas formas.
Segundo Cuti (2010), em relação ao que podemos denominar uma escrita negro-brasileira (em contraponto com a afro-brasileira, ou afro-descendente), a questão é a seguinte:
O ponto nevrálgico é o racismo e seus significados no tocante à manifestação das subjetividades negra, mestiça e branca. Quais as experiências vividas, que sentimentos nutrem as pessoas, que fantasias, que vivência, que reações, enfim, são experimentadas por elas diante das consequências da discriminação racial e de sua presença psíquica, o preconceito? Esse é o ponto![7]
Do ponto de vista dessa análise, a literatura de Camargo é característica do que Cuti denomina literatura negro- brasileira. Seria um erro denominá-la de literatura afro-brasileira, pois o referido prefixo (afro) abriga não negros, os identificados como mestiço e até brancos, portanto, “pessoas a quem o racismo não atinge”.[8] Pelo menos não da mesma forma que atinge os negros.
Por outro lado, no conto estudado, notamos um paradoxo, ou, talvez, uma sutil ironia de Camargo que, ao mesmo tempo em que reconhece a importância das associações negras para a forja da consciência negra e de sua própria (via narrador), por outro lado, não deixa de marcar a empolgação manifestada por verem um negro tocando um instrumento e um repertório de pessoas brancas de uma forma pouco vista até entre os brancos. O que nos faz lembrar da constatação terrível feita por Frantz Fanon: “para o negro, há apenas um destino. E ele é branco.”[9]
Encaminhando-nos para a conclusão deste pequeno ensaio, resta-nos compreender a reação fatídica da vereadora Madalena Pires que motivou o fim da carreira musical de Paulinho. Ela dilacera com seu comentário a trajetória do menino de dezesseis anos e, talvez, o tenha forçado a descer do carro do êxito, de volta ao carro da miséria. Ela lhe diz:
Mas é bom que você saiba; sou sincera. Pensei antes de chamar você aqui, pensei se já não seria tempo de dizer ao menino, com sinceridade, isto: tenho contra o seu oboé uma antipatia de caráter político. Você está juntando muita gente de nossa mocidade negra como carneiros, distraindo-os com o som doce, mole, do seu oboé.
“Que rumo vão tomar inspirados pelo som do seu oboé, Paulinho? Onde vão chegar levados pelo som do seu oboé, Paulinho? Onde? Pense, menino, pense!”
Paulinho, agora já Paulo, curvado pela idade, relembra “ter morrido no apartamento da vereadora, naquela noite”. O fato se consuma diante da pergunta do primeiro convidado da noite: “Cadê o oboé, menino?”.
Paulinho saiu do apartamento de mansinho sem tocar, já duvidava de seu oboé, já duvidava de si mesmo, já duvidava de seu êxito. Perdera a esperança que ainda observa em sua gente negra.
Pode-se argumentar que a vereadora sintetizara em seu argumento o que Fanon já alertara em sua observação. O negro, ou o povo negro, deveria se fortalecer em sua “negritude”, em sua própria cultura, e não se deixar amolecer por influências brancas, ou modelos da cultura e tradição branca. Desviar-se decididamente do destino que lhe traçara a branquitude. O modelo, talvez, seria o negro estadunidense e suas conquistas.
Expandindo mais o raciocínio, observamos que há uma parcela do movimento negro que buscou, e ainda busca, a inserção do negro na ordem do capital, sem questionar o fato de que o sistema capitalista é inseparável da exclusão do negro das benesses e ganhos sociais, que ele aprofunda as desigualdades e impulsiona a necropolítica – fazendo da população negra o alvo principal.
Essa busca desembocaria em situações mais recentes. Como aponta o filósofo negro Douglas Rodrigues Barros (2019), grandes setores do movimento negro se entusiasmaram “com alguns farelos recentemente caídos da mesa da elite econômica (…) e abandonaram qualquer princípio que não o de se incluir no jogo”.[10]
Também se pode argumentar que a atitude da vereadora estava impregnada das amarras de um pensamento programático de ação política que desprezava as especificidades, particularidades, e anseios de membros da comunidade negra. A prioridade era seu projeto político que levaria a determinados fins.
Independente da análise final que possa ser feita, o fato é que a narrativa de Camargo coloca o dedo em várias feridas ainda abertas da história do negro e negra brasileiros. Suas reflexões formatadas em um trabalho literário louvável não simplificam nem oferecem respostas imediatas. Aliás, essa é uma característica de toda grande literatura.
Para finalizar, a epígrafe do livro incontornável de Camargo, O negro escrito, revela a profundidade de seu projeto literário e sua notável formação cultural e humanística:
Conheço o Ocidente e tudo o que, criado por ele,
me força a sentir-me deslumbrado.
Sou um negro.
O que tenho feito – cada vez mais negro – é não
Ficar mudo diante desse deslumbramento.[11]
[1] FERNANDES, Florestan. Trecho de texto publicado na primeira edição de 15 poema negros, lançada em 1961 pela Associação Cultural do Negro e reproduzido na reedição acrescida da Companhia das Letras, 30 poemas de um negro brasileiro, 2022, p. 9-10.
[2] Naturalista teuto-brasileiro de grande importância para a ciência, especialmente para a teoria da evolução. Nascido na Alemanha em 1822, ele emigrou para o Brasil em 1852 e passou a maior parte de sua vida estudando a rica biodiversidade da Mata Atlântica. Dizem que seu trabalho inspirou o próprio Charles Darwin.
[3] A gravura “O Patriarca na Liteira”, do artista francês Jean-Baptiste Debret, é uma das obras mais emblemáticas da Missão Artística Francesa que esteve no Brasil no início do século 19. A imagem, rica em detalhes, nos oferece um vislumbre singular da sociedade brasileira da época, revelando aspectos cruciais da estrutura social, da hierarquia e dos costumes da época.
[4] Tropos são figuras de linguagem pelas quais se faz com que uma palavra assuma uma significação que não é precisamente a significação própria dessa palavra. Elas são tomadas pelo seu sentido figurado e não pelo seu sentido próprio.
[5] O livro em questão é O negro escrito – Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987.
[6] Conceito cada vez mais presente nas discussões sobre identidade, representatividade e poder nas sociedades contemporâneas. Refere-se, de maneira geral, à posição social de um indivíduo que lhe confere autoridade para falar sobre determinadas experiências.
[7] CUTI. Literatura negro-brasileira. Selo Negro, 2010, p. 38-39.
[8] Ibidem, p. 38.
[9] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Ubu Editora, 2020, p. 24.
[10] BARROS, Douglas Rodrigues. Lugar de negro, lugar de branco? – Esboço para uma crítica à metafísica racial. Hedra, 2019. Edição do Kindle.
[11] CAMARGO, Oswaldo. O negro escrito. 1987, p. 9.
OBS.: Texto final para a disciplina de pós-graduação “Literatura negra na contemporaneidade: diálogos, confrontos e transgressões”. Docente responsável: Profa. Dra. Rosangela Sarteschi.
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BIBLIOGRAFIA
BARROS, Douglas Rodrigues. Lugar de negro, lugar de branco? – Esboço para uma crítica à metafísica racial. São Paulo: Hedra, 2019. Edição do Kindle.
CUTI (Luiz Silva). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
CAMARGO, Oswaldo de. O carro do êxito. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
_____________________ Oboé. São Paulo: Editora Com-Arte, 2014.
_____________________ 30 poemas de um negro brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
_____________________O negro escrito – Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1987.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta e editor do site Musa Rara. Fundou e editou o histórico site de literatura, Cronópios. Graduado em Letras e mestrando em Escrita Literária (USP). Seus textos críticos aparecem no Jornal Rascunho e no site Musa Rara. Tem 12 livros publicados. Lançou em 2020, Pandemônio (poemas) pela Kotter Editorial e, em 2021, Fibonacci blues – uma novela fractal, pela mesma editora. Lançou também, em 2021, pela Desconcertos Editora, um livro de pequenos ensaios sobre literatura, A escrita dos ornitorrincos. Em 2022, lançou Negrura, também pela Kotter.
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