O homem que preferia não fazer
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“Preferiria não fazer (I would prefer not to) ”, uma das afirmações mais célebres da literatura ganha tradução de Tomaz Tadeu, pela editora Autêntica: Já houve muitas outras; até agora, a minha favorita era a de Luís de Lima (Rocco); Pinheiro de Lemos traduz de maneira bem eficaz: “Preferia não fazê-lo” (José Olympio); Confesso que não gosto da solução de Irene Hirsch: “Acho melhor não” (Cosac Naify), sem graça e no fundo pouco poética.
Estou falando da desconcertante recusa do personagem – título de Bartleby, o escrevente (1853), em cumprir as tarefas designadas a ele pelo patrão, o narrador, dono de um escritório em Wall Street. A situação se complica porque, mesmo demitido, Bartleby se recusa a deixar o local de emprego (o qual transformou-se em moradia:
“De pronto senti todo o drama: Que solidão e desamparo terríveis estão sendo revelados aqui! A sua pobreza é grande, mas a sua solidão… que horror! Pensem nisso. Num domingo, Wall Street é tão deserta quanto Petra, e todas as noites de todos os dias são um imenso vazio. E até este edifício, que nos dias de semana fervilha com vida e labor, à noite ecoa de tão absoluta inatividade e durante todo o dia dominical jaz abandonado. E é daqui que Bartleby faz seu lar…”.
Apesar da irritação e dos problemas que o estranho indivíduo lhe acarretam, o patrão acaba sentindo-se responsável pelo seu destino. Na verdade, é como se no mundo capitalista se infiltrasse um vírus de não produtividade que colocasse em xeque todas as regras da economia e da hierarquia social.
Herman Melville escreveu uma obra prima muito adiante do seu tempo. Bartleby é um personagem que antecipa todos os anti-heróis do século seguinte, e até do nosso. O autor de Moby Dick era realmente um visionário e poeta da prosa.
Por isso não apreciei a solução de Irene Hirsch para a emblemática declaração do bizarro escrevente. Há poesia na recusa de Bartleby, pois é uma recusa dentro de uma formulação da Possibilidade: “prefiro”, “preferia” ou “preferiria” não fazer, ou seja, há a possibilidade de fazer, mas abriu-se um pequeno e decisivo lapso: a “preferência”. Não é uma recusa propriamente dita: não vou fazer. É uma preferência que, manifesta, abole a possibilidade de fazer o que é solicitado. É minha opinião que tudo isso se perde no “acho melhor não”.
A superioridade indulgente do patrão sofre um profundo arranhão:
“Pela primeira vez em minha vida, fui tomado por um sentimento de opressiva e doída melancolia. Eu não conhecera até então senão uma leve e nada desagradável tristeza. O laço comum da humanidade fez com que eu fosse golpeado por um irresistível desalento… Pois tanto eu quanto Bartleby éramos filhos de Adão”.
Mas como todo texto em que o narrador nos fala de outro individuo, ele – mesmo sem o saber – termina por se revelar tanto quanto o seu objeto de estudo o interesse. Um dos mistérios de Bartleby, o escrevente é o mal-estar e a má consciência do patrão. Tente, caro leitor, descobrir o porquê mergulhando em páginas inesquecíveis. É mais ou menos como descobrir se Capitu traiu Bentinho.
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Aproveito para colocar aqui o texto-irmão de O MÉDICO E O MONSTRO LOQUAZ ; escrevi ambos para a segunda aula do curso de maio-junho de 2008, AS MARGENS DERRADEIRAS – alerto que, como os demais textos que coloquei dessa safra, toda a linha argumentativa é extraída de uma interpretação freudiana da obra condutora do curso, O ESTRANHO CASO DO DR. JEKYLL E DO SR. HYDE.
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“A burguesia, cortando-nos os laços com os nossos contemporâneos, encerra-nos no casulo da vida privada e define-nos, às tesouradas, como indivíduos. O que significa: como moléculas sem história que se arrastam de um instante para o outro. Pela contingência do nosso ancoramento na Natureza e na História, isto é, pela aventura temporal que nós somos no interior da aventura humana, descobrimo-nos singulares. Assim, a história nos faz universais na medida exata em que a fazemos particular.”
(Jean-Paul Sartre, “Merleau Ponty”, 1961)
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Bartleby, o escriturário [1] foi publicado em 1856 (o ano do nascimento de Freud, em seis de maio) na coletânea The Piazza Tales. Já era a fase em que os escritos de Herman Melville não despertavam qualquer interesse, contrariando a expectativa comercial (e, para os padrões da época, artísticas) dos seus primeiros livros, enquadrados como “exóticos”, relatos aventurescos de mares distantes (tais como os relatos similares de Robert Louis Stevenson décadas mais tarde): Typee (1846) e Omoo (1847)[2] .
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Tendo como subtítulo “Uma história de Wall Street” (detalhe nem um pouco irrelevante, como veremos), Bartleby é narrado pelo patrão do personagem-título, muitos anos depois dos acontecimentos. Esse narrador, já de “certa idade”, acaba de sofrer um golpe em sua carreira, que talvez tenha lhe dado o lazer e a motivação para remexer num episódio tão ínfimo, falando de um indivíduo insignificante de quem tem informações “escassas” e “vagas”:
“Pouco antes da época em que esta pequena história começa, minhas ocupações haviam aumentado consideravelmente. O antigo e rendoso cargo —ora extinto no estado de Nova Iorque— de Conselheiro do Tribunal da Chancelaria, tinha-me sido conferido. Esse cargo, sem ser muito árduo, era no entanto perfeitamente compensador. Eu raramente perco a calma; muito mais raro ainda é eu me entregar a perigosas indignações perante erros e ofensas; mas permitam que aqui me deixe arrebatar declarando que considero a súbita e violenta extinção daquele cargo, decretada pela nova Constituição, como um ato…prematuro! tanto mais que eu contava com rendimentos vitalícios e, assim, só recebi proventos de uns breves anos. Mas falei disto só de passagem.”
Gostaria que não se perdesse esse trecho de vista, uma vez que ele será alavanca para nos ajudar a entender o narrador, tal como acontece com o Sr. Utterson em Jekyll & Hyde. Por enquanto, registremos apenas a matreirice do autor, “falei disto só de passagem”, como se numa narrativa curta e cerrada (não há divisão em capítulos ou segmentos) como Bartleby algo pudesse ser só de passagem.
Pois bem, o narrador tinha um escritório meio tabelionato meio advocatícioem Wall Street.Aprincípio se valia de três funcionários: dois mais graduados (Mr. Turkey ou Sr. Peru e Mr. Nippers ou Sr. Alicate) que se alternam em produtividade e atitudes extravagantes, isto é, um é sóbrio, comedido e eficiente pela manhã (Turkey) enquanto o outro parece vítima de indigestão e mau-humor, continuamente irrequieto e insatisfeito com os apetrechos e móveis (Nippers), enquanto à tarde, um se torna falastrão e meio inconveniente, além de relaxado (Turkey), contrabalançado pela atitude mais calma e suave do colega (Nippers), mantendo-se assim o equilíbrio; também há um aprendiz e contínuo, guri, Ginger Nut, “Noz de Gengibre” (na versão de Irene Hirsch, Pão-de-Mel), o qual adquiriu tal nome devido à sua infatigável disposição de comprar para os outros funcionários bolinhos de gengibre.
Num dado momento (justamente quando o narrador é investido do cargo cuja extinção lhe é tão revoltante), é preciso contratar mais um escriturário (ou copista, é bom lembrar que é ainda uma época de cópias feitas à mão, antes mesmo das máquinas de escrever) e então… Bartleby: Em resposta a um anúncio, apareceu certa manhã no meu escritório um jovem… Ainda me parece estar vendo essa figura: um lívido perfil, tristemente respeitável, incuravelmente perdido!” Para o narrador, é um alívio contratar um jovem tão apagado, diante da fogosidade e arrebatamento alternados dos seus dois funcionários veteranos.
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O escritório é dividido por portas de vaivém, patrão num cômodo, empregados no outro. Bartleby é instalado na parte do patrão, com um biombo para separá-los, ficando, como se diz no relato, “ao alcance da voz”. Isso fornece ao novo funcionário a seguinte vista:
“Coloquei a sua escrivaninha junto de uma pequena janela lateral que originalmente proporcionava uma vista meio de lado para uns pátios sombrios, de tijolo, mas que agora, devido a subsequentes construções, não dava para vista nenhuma, embora filtrasse algumas réstias de luz. A três pés das vidraças, erguia-se uma parede, e a luz descia do alto entre dois prédios altos, como de uma pequena abertura numa cúpula”.
Portanto, Bartleby vai se instalar de uma forma no coração de Wall Street que parece tornar literal o significado do nome, “Rua da Parede” e que nos faz avaliar bem as perspectivas de sua existência como insignificante peça burocrática, que está ali à mão, “ao alcance do ouvido”. Justamente nessa condição, um dia o patrão o convoca para conferirem juntos um documento original e sua cópia (para verificar sua exatidão):
“…sentei-me logo à escrivaninha com a cabeça inclinada para o original e estendendo impacientemente a mão direita para o lado com a cópia, de maneira que Bartleby, mal saísse do seu retiro, pudesse pegá-la e começar a tarefa sem mais demora.”
Todavia, ele ouve uma resposta inacreditável (e uma das frases mais célebres da ficção):“I would prefer not to”, “Prefiro não fazer” [3]. O que impede o empregador de despedi-lo na hora; de, como diz, escorraçá-lo sem mais delongas do escritório? O fato de não sentir “inquietação, raiva, impaciência” ou, mais importante, “impertinência”: “O que fazer? Mas o trabalho era urgente e resolvi deixar por isso mesmo o incidente, reservando-o para horas vagas”. Começa então a estranha relutância desse édipo em enfrentar o enigma da esfinge, ou pelo menos agir. Se Bartleby “prefere” não agir, o seu patrão não se decide a agir. Em poucos dias, acontece novo incidente e a mesma frase, desta vez testemunhados pelos outros três assalariados: “Com qualquer outro que não ele, eu teria ficado imediatamente irado, e, sem mais explicações o teria ignominiosamente banido da minha presença. Mas havia em Bartleby algo que na apenas me desarmava estranhamente, mas que, de certa forma, me tocava e me desconcertava”. E o leitor? Creio que se o leitor contemporâneo se exaspera, imagine o da época, que nunca encontrara pela frente personagem desse tipo. Mas deixemos para depois de repassar o texto essa questão que me parece importante, a da reação do leitor. Por sua vez, o tipo de reação quase passiva de Bartleby (e “nada irrita tanto uma pessoa série quanto uma resistência passiva”), apesar da enormidade do seu “preferia não fazer”, é evidenciado pelo trecho seguinte:
Narrador: É como sempre se faz. Todo copista deve conferir sua cópia, não é assim? Não quer falar? Responda!
(…) Tive a impressão de que, enquanto lhe falava, ele pesava cuidadosamente as minhas ponderações e que ele apreendia plenamente seu significado mas, ao mesmo tempo, uma soberana consideração o forçava a responder daquele jeito.
Narrador: Então está decidido a não fazer o que lhe peço? Mesmo sendo o meu pedido de acordo com a praxe e o bom senso?
Em breves balbucios, ele me deu a entender que, nesse ponto, o meu raciocínio era correto. Sim: mas sua decisão era irrevogável!”
E é justamente a praxe e o bom senso que são colocados em xeque, já que a decisão irrevogável de Bartleby “desautomatiza” o quotidiano, obriga patrão e colegas a conviverem com algo completamente inusitado. E um outro efeito colateral: a atitude de Bartleby (“Entrementes, permanecia sentado no seu canto, alheio a tudo que não fosse seu próprio e peculiar trabalho ali”) força seu patrão a prestar atenção nele:
“Sua última conduta memorável levou-me a observar de perto sua atividade. Constatei que nunca saía para comer; que, aliás, nunca ia a parte alguma. Também não me lembro de tomar conhecimento de sua vida fora de meu escritório. Ele era uma sentinela perpétua naquele canto.”
Embora se ocupe intimamente do “problema” que surgiu em sua vida, o narrador chega à conclusão provisória de que as excentricidades do empregado são involuntárias e de que ele lhe é útil, ainda assim. E sua auto-gratificação se compraz em manter Bartleby, auxiliá-lo mesmo, “agradá-lo em sua estranha obstinação”, o que custaria nada ou muito pouco: “Se eu demiti-lo, ele pode acabar com algum empregador menos indulgente, sendo tratado de forma rude, e talvez miseravelmente levado a passar fome”. Apesar dessa predisposição tão indulgente e boa para a auto-estima, a atitude de Bartleby o espicaça por dentro e ele procura criar situações, num “impulso diabólico”, um desiderato meio inexplicável, que levem o estranho funcionário a responder-lhe da mesma forma: “Eu ardia por ser contrariado novamente”. Assim como o Sr. Utterson de Jekyll & Hyde, o narrador é um pouco nosso representante na trama e nos identificamos com seus sentimentos. Mas é preciso ser um leitor daquela época, ainda não treinado pela suspeita pós-nietzschiniana e freudiana, para não ver nesse ardente desejo de ser contrariado o impulso de Thânatos presente no id de ver tudo se desmantelar, de mandar às favas o edifício laboriosamente construído pelo esforço quotidiano, a meada cinzenta se desenrolando em frente a uma parede. Tudo bem que o superego afague o ego com idéias de bondade, generosidade e indulgência.
Há regras no jogo entre eles: Bartleby nunca aparece na primeira invocação do seu nome (“Como um fantasma, submetido às leis da invocação mágica, ao terceiro chamado ele apareceu à entrada de seu eremitério”, lemos numa cena em que ele se recusa a ir à sala contígua chamar o colega Nippers). E o resultado do jogo:
“…em pouco tempo se tornara fato concreto em meu escritório que um jovem escriturário pálido, que atendia pelo nome de Bartleby, tinha uma mesa lá; que ele fazia cópias para mim pela tarifa habitual de quatro cents por página (cem palavras), mas que ele estava permanentemente isento de conferir o trabalho feito por ele… além disso, o dito Bartleby em hipótese alguma era enviado em qualquer tipo de serviço trivial fora do escritório; e que mesmo que se lhe solicitasse fazer algo do gênero, normalmente ficava claro que ele preferia não fazer; em outras palavras, que ele simplesmente se recusava a fazer”.
Vocês devem notar a ênfase constante do que é habitual (a tarifa habitualmente paga de 4 cents, conferir as cópias com o original) como argumento de qual deveria ser a atitude “normal”, isto é, ancorada no hábito, de Bartleby, e que ele contraria. Um dos encantos da narrativa é a necessidade contínua de racionalização (afinal, estamos em pleno coração de Wall Street, um lugar não muito afeito a fantasmagorias) da tolerância à peculiaridade bartlebyana:
“Sua constância, seu comedimento, sua produtividade incessante (exceto quando, de pé, atrás do biombo ele preferia sonhar acordado), seu absoluto silêncio e seu comportamento inalterável faziam dele uma aquisição valiosa. O mais importante de tudo era o seguinte: ele estava sempre lá.”
E é esse “ele estava sempre lá” (ou seja, era o primeiro a chegar, o último a sair), tão inocente e aparentemente tão importante no cômputo geral positivo, que levará o relato à sua próxima volta do parafuso, como se o primeiro ato tivesse terminado. Desse primeiro ato, que eu arbitrariamente delineei numa narrativa fortemente cerrada, uma palavra se destaca, em retrospecto: concessão. Foram feitas concessões inusitadas a um mero empregado. O motivo básico e inconteste: a produtividade em copiar, não importando a recusa em circunstâncias mais intermitentes. Bartleby é esquisito, porém é uma peça que funciona na engrenagem. Por ora.
Então, numa manhã de domingo as coisas mudam de figura: o narrador quer ouvir um pregador famoso na Trinity Church e, estando um pouco adiantado, resolve dar um pulo ao “seu” escritório. Anteriormente, ele nos explicara que havia algumas cópias das chaves: uma, com ele; outra, com Turkey, funcionário mais graduado; outra, com a faxineira; a quarta… ele não sabia com quem ficava. Vai descobrir: tenta colocar a sua na fechadura, notando que há resistência: “para minha consternação, uma chave girou do lado de dentro e segurando a porta entreaberta surgiu o rosto esquálido de Bartleby, o qual estava em mangas de camisa e num estranho e esfarrapado roupão, dizendo em voz baixa que sentia muito, mas estava muito ocupado naquele momento e preferia não permitir minha entrada”, sugerindo-lhe que desse uma ou duas voltas pelo quarteirão, enquanto ele concluía os tais afazeres. O patrão obedece, e sua cabeça roda à procura de explicações (descartando as hipóteses mais imorais, pelo que conhece de Bartleby), até que volta ao escritório e o encontra desimpedido. Indícios revelam que o empregado se aloja ali como uma “alma penada”:
“De pronto senti todo o drama: Que solidão e desamparo terríveis estão sendo revelados aqui! A sua pobreza é grande, mas a sua solidão… que horror! Pensem nisso. Num domingo, Wall Street é tão deserta quanto Petra, e todas as noites de todos os dias são um imenso vazio. E até este edifício, que nos dias de semana fervilha com vida e labor, à noite ecoa de tão absoluta inatividade e durante todo o dia dominical jaz abandonado. E é daqui que Bartleby faz seu lar…” [4]
Engraçada essa ideia de um lugar de alienação e mais valia parecer aconchegante nos dias de exploração do trabalho. Infelizmente, é um sentimento que todos nós temos: os lugares de atividade e agitação, abandonados, nos dão um sentimento intenso de desolação e de inóspito. A superioridade indulgente do patrão sofre um profundo arranhão:
“Pela primeira vez em minha vida, fui tomado por um sentimento de opressiva e doída melancolia. Eu não conhecera até então senão uma leve e nada desagradável tristeza. O laço comum da humanidade fez com que eu fosse golpeado por um irresistível desalento… Pois tanto eu quanto Bartleby éramos filhos de Adão.”
Do território da concessão, partimos agora para o reino da empatia. Ele relembra todos os indícios da pobreza (nunca o vira lendo nem um jornal, nunca ia a lugares para fazer uma refeição, nunca bebia cerveja, ou mesmo café ou chá) e da solidão (nunca soubera de um parente): “E acima de tudo, lembrei-me de uma certa expressão inconsciente de, como definir?, combalida altivez, pode-se dizer, ou uma certa reserva austera”.
Só que a empatia é contraproducente e ao lembrar de todos esses indícios, instala-se (eu diria, reafirma-se) nesse outro filho de Caim o sentimento de prudência. Ele poderia ajudar Bartleby, realmente? “Eu poderia oferecer compaixão a seu corpo, mas não era seu corpo que lhe doía; era sua alma que sofria, e a sua alma eu não conseguia alcançar”. O médico está alienado de seu paciente, não há comunicação possível entre a margem de cá e a derradeira onde o outro se encontra. Um dos maiores encantos de Bartleby é a obstinada recusa de Melville em nos dar acesso à mente de seu personagem, e assim é fato: não conseguimos alcançar sua alma.
O narrador bem que tenta: faz perguntas a Bartleby a respeito de onde nasceu ou qualquer fato importante da sua vida. Prefiro não dizer, prefiro não contar, eis as respostas. Aliás, Bartleby prefere não responder. Irritado com tal ingratidão renitente, o impulso de demiti-lo é frustrado pela sensação de que seria impossível fazer mal ao mais infeliz dos seres humanos. Ele pede a Bartleby que seja razoável, pense com calma e adapte-se à rotina, como os outros. Resposta: “No momento, prefiro não ser um pouco mais razoável”. Aliás, a praga do verbo preferir pega no escritório e todos acabam utilizando-o quase como um ato falho.
E Bartleby radicaliza (e nesse momento, creio que é a experiência comum, o leitor é levado à mesma exasperação sentida pelo narrador):
“No dia seguinte notei que Bartleby nada mais fez senão ficar de pé em frente de sua janela, no seu devaneio com a parede sinistra. Quando lhe perguntei por que, respondeu que decidira não escrever mais. Exclamei: O quê?! Mas o que é isso agora?! Não vai escrever mais? Ele: Não. Eu: E qual a razão? Ele: O senhor mesmo não vê a razão?”
Esse trecho é importante porque se trata de um dos raros momentos em que Bartleby se manifesta diretamente. A arrepiante frase “o senhor mesmo não vê a razão?” parece levar o quotidiano a bater de cara naquela parede em frente, obsedante e determinante. É como se a razão estivesse ali materializada, à frente de ambos.
Prudentemente, o narrador deixa passar alguns dias para voltar à carga. Como Bartleby persiste em sua posição, ele lhe paga o salário, mais uma gratificação e diz: “Chegou a hora; precisa deixar este lugar. Lamento por você. Aqui tem dinheiro, mas trate de ir embora”, já que é uma aberração no mundo prático e capitalista um funcionário que se recusa a trabalhar. Que preferia não trabalhar, melhor dizendo, e ao manifestar tal preferência concomitantemente a pratica. Resposta: “Prefiro não ir”. O patrão insiste, lhe estende as notas de dinheiro e lhe saúda com um adeus:“Ele não retrucou sequer uma única palavra; tal como a derradeira coluna de um templo em ruínas, continuou de pé, mudo e solitário, no meio da sala deserta.”
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E temos mais um jorro autocongratulatório do narrador por ter resolvido a situação com tanta elegância e discernimento: “…minha vaidade sobrepujou a minha compaixão. Não deixava de me congratular efusivamente pela forma magistral com que me livrara de Bartleby… A beleza do meu procedimento parecia consistir na sua perfeita tranqüilidade. Não houve a menor ameaça vulgar nem qualquer espécie de bravata…nem caminhadas exaltadas pela sala, berrando para Bartleby pegar seus cacarecos e ir embora com eles.” Ainda assim, ele fica apreensivo: irá realmente o escriturário embora? “Imaginei que toda a Broadway participava da minha ansiedade e discutia a questão comigo”. Ele vai mais cedo ao escritório e se depara com a presença de Bartleby, que não lhe permite a entrada, alegando estar ocupado. E o narrador mais uma vez obedece “ao poder assombroso que o inconcebível escriturário tinha sobre mim, poder do qual não conseguia escapar”. É algo sem precedentes, como se o escriturário da triste figura tivesse obtido um triunfo sobre ele.
O que se poderia fazer? À pergunta: “Você vai ou não vai me deixar?” a inevitável, nevermoriana resposta será: “Prefiro não deixá-lo” e se não fosse tão estranho dizer isso de tal personagem, parece haver uma ponta de malícia. Ou seria o mais absoluto desamparo? Revolta impotente do patrão:“Mas que direito se arroga você para ficar aqui? Paga aluguel? Paga meus impostos? Ou será que este lugar lhe pertence?”
E assim Bartleby passa os dias no escritório, sem fazer nada, atrás do biombo, olhando a parede. O nirvana em Wall Street.Nummomento de auto-ironia, o narrador chega a dizer pra si mesmo: “… nunca me sinto tão à vontade como quando sei que você está aí. Pelo menos, eu sinto, vejo, penetro a razão-de-ser predestinada de minha vida. E fico contente. Outros terão papéis mais relevantes a desempenhar; quanto a mim, a minha missão no mundo, Bartleby, é a de lhe proporcionar um escritório para todo o tempo que desejar.” Ora, tal situação não poderia deixar de ter repercussão e se espalhar por Wall Street, o que desmoraliza o escritório e afasta alguns clientes, impressionados com o “fantasma que morava no meu escritório”, que não dá respostas e nem aceita tarefas, o que acaba por esgarçar a empatia do narrador. A meada cinzenta quer recuperar seus direitos… que nenhum fio fique solto: “Resolvi reunir todas as minhas energias e livrar-me de uma vez por todas daquela intolerável assombração” Mas há um lado Hamlet no narrador, que se atormenta: O que fazer? O que decidir? Ele então avisa Bartleby de que passou a achar inconveniente o local do escritório e pretende mudar-se. E que Bartleby não é convidado a acompanhá-lo na mudança:
“No dia marcado, contratei carroças e carregadores, fui até o escritório e, como tinha poucos móveis, tudo foi retirado em poucas horas. Do começo ao fim da mudança o escriturário permaneceu de pé atrás do biombo, que eu determinara fosse a última coisa a ser removida… assim que o biombo foi retirado…ali ficou o imóvel ocupante na sala vazia. Demorei-me alguns instantes no vestíbulo para o observar, enquanto algo dentro de mim me censurava.”
Mesmo assim ele se despede, “livrando-se” do peso morto, e podemos dizer que se encerra o segundo ato.
No novo escritório, por vários dias o narrador sente a inquietude e o temor de encontrar algum dia Bartleby ali instalado, ”cada ruído de passos no corredor deixava-me sobressaltado” … “mas esses medos eram desnecessários. Bartleby nunca me procurou”.
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Quem o procura é o novo locatário, que lhe comunica, angustiado, a permanência absurda de Bartleby e lhe diz: “o senhor é responsável pelo homem que lá deixou. Ele se recusa a fazer qualquer cópia, recusa-se a fazer qualquer coisa…recusa-se a deixar o local”. Nosso amigo argumenta que o desanimado fantasma: “não é nada meu.. não tem comigo qualquer relação nem é meu parente” e dias depois é novamente incomodado. Bartleby foi expulso do escritório e agora se recusa a sair do edifício: “de dia senta-se no corrimão das escadas e de noite dorme no vestíbulo. Todos estão se queixando. Clientes estão abandonando os escritórios…” E assim cabe ao narrador tomar providências, algo que ele preferia não fazer, com certeza, horrorizado com a idéia de se confrontar com Bartleby e sua própria má consciência.
Ele vai até o edifício, leva Bartleby até o antigo escritório e lhe expõe os fatos. Reposta: “No momento, prefiro não me mudar”. O narrador lhe faz ofertas de empregos. Ele recusa, embora deliciosamente acrescente: “Mas não sou exigente” (outra de suas raras manifestações, além das recusas em fazer algo que todos acham ser de praxe, habitual, razoável ou de bom senso). Como última cartada (e revelando uma motivação psicológica surpreendente), o narrador o chama para ir morar na sua casa. O monstro: “Não, no momento prefiro não me mudar”.
O narrador se vai, quase fugindo, querendo se afastar daquele demônio de recusa. Chega até a viajar e, na volta, encontra uma carta com a notícia de que Bartleby foi recolhido à Prisão Municipal por vadiagem. Nosso amigo vai até lá:
“Assegurei… que Bartleby era um homem perfeitamente honesto e, apesar de suas inexplicáveis excentricidades, digno da maior compaixão. Contei tudo o que sabia a seu respeito e terminei sugerindo que lhe tornassem a detenção tão branda quanto possível, até que algo menos severo se pudesse fazer—ainda que, na verdade, eu não soubesse bem o quê.”
Ele pede autorização para vê-lo e o encontra “de pé, completamente só no pátio mais isolado, o rosto voltado para uma alta parede” (isto é, continuando sua existência no escritório em Wall Street). Ao ser interpelado elo antigo patrão, replica: “Já o conheço, e nada tenho a lhe dizer”. É quase uma acusação, mas de quê? Será que é mesmo uma acusação? Será que o narrador é mero representante de uma humanidade da qual o escriturário se desligou, como o Homem Invisível de Wells, no veredicto do Dr. Kemp?
Bem, de todo jeito, o narrador procura mitigar a existência do antigo funcionário, dando propinas a funcionários do lugar para que protejam e alimentem o rapaz. Mas Bartleby prefere não jantar. Dias depois, ele volta e encontra Bartleby integrado definitivamente à condição que escolheu:
“O pátio estava numa calmaria total… Estranhamente enroscado ao pé do muro, joelhos fletidos, deitado de lado e com a cabeça encostada às pedras frias, assim deparei com o definhado Bartleby. Não se movia. Parei, depois avancei e, debruçando-me sobre ele, vi que seus olhos nublados estavam abertos; parecia, no entanto, profundamente adormecido. Não sei o que me levou a tocá-lo. Peguei sua mão, e um calafrio agudíssimo subiu pelo meu braço, desceu-me pela espinha e estremeci da cabeça aos pés.”
O homem “da boia” da prisão se achega e reclama que Bartleby nunca come. “Vive sem comer?” O narrador responde: “Vive sem comer”. O homem ainda pergunta: “Ele está dormindo”. Resposta do narrador: “Com reis e conselheiros”.
O narrador tem ainda uma última palavra a dizer, embora um prosseguimento da história “seja desnecessário”. Trata-se de uma versão, ou de um boato que ouviu sobre a vida pregressa ao escritório do esquisito funcionário:
“Bartleby teria exercido uma função subalterna na Seção de Cartas Extraviadas, em Washington, da qual fora repentinamente demitido por uma reforma administrativa. Quando penso sobre esse boato, nem sei exprimir de forma adequada as emoções que sinto. Cartas Extraviadas! Não soa a homens extraviados? Concebam um homem propenso, por natureza e sina, a uma pálida desesperança: haverá melhor posto para desesperá-lo do que o contínuo manuseio dessas cartas extraviadas, mortas, e com elas alimentar a fornalha? Porque são incineradas todos os anos, às carradas. Por vezes, dentre as folhas dobradas de uma carta, o pálido funcionário retirava uma anel, o dedo ao qual estivera destinado estava talvez apodrecendo no túmulo; uma cédula remetida com solícita caridade, e aquele a quem se destinava a socorrer já não come, já nem tem mais fome; perdão para aqueles que morreram no desespero; boas notícias para seres que morreram na desgraça. Com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte.”
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O aspecto que mais chamou a minha atenção na releitura de Bartleby que fiz para o curso foi o de como somos, no fundo, burgueses domesticados, nós, os leitores. Afirmei mais atrás que o narrador é nosso representante como o Sr. Utterson o é na tessitura da trama e da narrativa do texto de Stevenson. Ora, por que ele nos parece tão “natural” e “humano” em contraste com o quase inumano escriturário que prefere não fazer coisas de forma cada vez mais radical? Uma parte é fruto da construção do foco narrativo, lógico: vemos os fatos através dos olhos do patrão de Bartleby; o problema, creio eu, encontra-se mais fundo: somos leitores treinados num mundo de perda de “valores”, um mundo de suspeita (fruto da psicanálise), ou seja, em que a “normalidade” é colocada em xeque, bem como a “ordem” e o “progresso” conquistados pela burguesia; nem por isso deixa de ser para nós exasperante e enervante o comportamento do pálido escriturário, ao se recusar a trabalhar, ou condescender a cumprir as tarefas mais triviais, ou depois, mais tarde, a se retirar do escritório, ou ser acolhido na casa do ex-patrão, ou alimentar-se na prisão… Não nos identificamos com isso, tal atitude nos impacienta e nos aliena dele, consegue a nossa “concessão” (por abrir uma brecha crítica no automatismo do quotidiano), todavia não a nossa adesão ou “empatia” (no sentido de dizermos, “eu também sou um Bartleby”).
E assim, de certa forma, damos nosso aval ao mundo da produtividade e da atividade, o mundo “Wall Street”, em que a vida de um Bartleby é absurda, por que uma pessoa que tivesse a atitude do escriturário como um nosso colega, um nosso assalariado, alguém que convivesse conosco, nos deixaria malucos. Ou não? É só recapitular: até o “terceiro ato” e o dilema que a recusa de Bartleby em deixar o edifício é resolvido por seu recolhimento à prisão, sua atitude positivamente nos desconcerta, mesmo que tenha um lado comicamente sinistro, como apresentam também os textos de Kafka (não copiar mais, não deixar o patrão entrar no próprio escritório). Ainda é um teatro do absurdo. Só as páginas finais revelam, no fundo, uma atitude trágica, de uma pessoa que não tem mesmo lugar no mundo em que as cartas em que perdões, esperanças, auxílio, prendas, destinavam-se a pessoas vivas, e que, extraviadas, são como símbolos de assombração, da morte que paira sobre a existência, no (no)nada que é a vida pode ser, se olharmos muito a mesma parede, copiando (a 4 cents por palavra, cem delas por página) documentos atrozes por serem outras tantas paredes na vida: certidões, testamentos, procurações, e o mais que houver na burocracia.
Eu tenho para mim que a empatia do narrador para com seu estranho funcionário, é retrospectiva, advinda da perda do cargo importante, que também lhe deixou a sensação de ser um elemento “sem lugar” no mundo produtivo, apesar das boas opiniões a seu respeito (como o ilustre John Jacob Astor, que ele invoca). Por que não deixa de ser contraditório, para quem nos afirma que ele e Bartleby eram ambos, “filhos de Adão”[5] (e isso me lembra o Sr. Utterson, afirmando, como homem indulgente que era, sua “inclinação pela heresia de Caim”, deixando seus semelhantes procurarem sua danação pelas próprias pernas), ele nunca ter feito o menor gesto para tirar Bartleby da prisão, e, sobretudo, esse trecho esclarecedor, no qual o narrador expressa seus temores quanto à permanência do pálido escriturário em seu escritório ad aeternum:
“…fui assaltado pelo pensamento de que ele poderia ter uma vida muito longa e continuar ocupando a minha sala e negando a minha autoridade, constrangendo meus visitantes,manchando minha reputação profissional, projetando a sombra da melancolia e da desconfiança no ambiente, sendo capaz de manter a alma grudada ao corpo graças às suas economias… e no final talvez viver mais do que eu e reclamar a posse do meu escritório por direito de ocupação perpétua”.
Um trecho de admirável egoísmo. Quem é o monstro, afinal? Não irei ao ponto de dizer que, no fundo, no fundo, ele queira ver Bartleby neutralizado (recolhido em casa ou na prisão) ou mesmo destruído. Mas já não temos uma visão tão bondosa assim do seu empregador. Porventura devemos compartilhar sua perplexidade, só que não podemos nos aliar a ele, que só pensou em Bartleby após perder seu precioso cargo, que parecia definir seu lugar no mundo, já que não conhecemos suas relações de espécie alguma. Será que só há vazio e desolação na infeliz vida do infortunado escriturário em meio ao deserto de Wall Street? E nunca podemos deixar de nos guiar pelos indícios, como Bartleby progressivamente vai rechaçando cada vez mais o narrador (se ele é o representante da sociedade, no sentido de uma “boa vontade” universal, ele também é de certa forma o responsável pela sua condição e destino, não?; no entanto, ele não o relega a um vestíbulo, aos corrimãos das escadas, e no final a um muro de prisão): “Já o conheço e nada tenho a lhe dizer” é a maneira como Bartleby recebe o narrador no seu destino final. O narrador se defende: “Não fui eu que o mandei para aqui… De resto, para você não pode ser aviltante um lugar destes. Nada de ultrajante lhe resultará por estar aqui. E veja, o lugar não é tão ruim como seria de esperar. Olha, lá onde está o céu e aqui a grama.”. E Bartleby tem uma resposta inesquecível, uma daquelas poucas e lacônicas que lhe cabem no relato, essa, porém, sendo de uma lucidez mortífera: “Sei onde estou, respondeu ele; não falou mais nada e eu o deixei.”
.Acho que não é preciso sublinhar a hipocrisia de consolar um homem preso como vadio, afirmando-se que ele tem o céu e a grama à disposição, e que o lugar não é tão ruim, e mais ainda que nada de ultrajante e aviltante pode se associar à sua estada ali, como se a estada ali já não fosse o aviltante e o ultrajante. É nesse sentido que Modesto Carone, no seu posfácio à edição da CosacNaify, “Bartleby, o escrivão fantasma”, inclui o nosso amigo na categoria de unrealiable narrator, “narrador não-confiável” (técnica desenvolvida por Henry James & Machado de Assis no final do século, na qual o foco narrativo nos é fornecido por um narrador cujo ponto-de-vista se revela tão restrito e parcial que começamos a duvidar de sua versão dos fatos) [6]: “É o caso deste advogado que conta uma história facciosa, na medida mesmo em que espalha as pistas para ser descoberta sua deliberada parcialidade”. Sentimos, afinal, que mesmo espalhando essas pistas, ele sempre procura conquistar a nossa boa opinião, como a que tinha o falecido John Jacob Astor.
E é por isso que fica inviável irmanar totalmente, embora ambos nasçam da mesma situação alienante, Bartleby e Akaki Akakiévitch (de O capote, de Gógol), já que a inconsciência deste último da sua condição se mantém até o fim (quando é praticamente condenado à morte pela descompostura de Sua Excelência) enquanto que, mesmo sem se manifestar abertamente, ou mesmo por causa dessa não-manifestação explícita, o personagem de Herman Melville parece ter o dom de ter a última palavra, de obrigar à lucidez de encarar que o horizonte do universo em que ele e os Akáki Akakiévitch (in)existem é uma parede.
E no final, as próprias palavras do narrador se voltam contra sua existência tanto quanto a do seu funcionário: “Com mensagens de vida, essas cartas corriam para a morte. Ah, Bartleby! Ah, humanidade!” Além da melancolia e do desamparo que revelam (e olhe que ele nos afirmou, a certa altura, não ter conhecido na vida, antes da revelação dos infortúnios de Bartleby, “uma leve e nada desagradável tristeza”), projetam a sombra da melancolia e da desconfiança sobre uma existência dedicada a produzir documentos e papelório, todos correndo para a morte, enquanto fazem as transações da vida.
[2] O que torna Melville contemporâneo, em idade e carreira artística, de Dostoiévski. O norte-americano nasceu em 1819 (em primeiro de agosto); o russo, em 1821 (30 de outubro); como disse acima, Typee inicia a carreira de Melville em 1846; em 1845, Dostoiévski lança seu primeiro livro, Gente Humilde; Melville viverá até 1891 (morre em 28 de setembro); não custa lembrar que Nietzsche, o qual exerceu na Filosofia influência similar a de Dostoiévski na literatura, nasceu na época (meados dos anos 40) em que essas primeiras obras apareceram: em 15 de outubro de 1844; Dostoiévski morre em 28 de janeiro de 1881.
[3] Apesar de eu gostar muito da versão de Luís de Lima, Pinheiro de Lemos traduz de maneira bem eficaz: “Preferia não fazê-lo”. Confesso que não gosto da solução de Irene Hirsch: “Acho melhor não”, sem graça e no fundo pouco poética. Pois há poesia na recusa de Bartleby, pois é uma recusa dentro de uma formulação da Possibilidade: “prefiro” ou “preferia” não fazer, ou seja, há a possibilidade de fazer, mas abriu-se um pequeno e decisivo lapso: a “preferência”. Não é uma recusa propriamente dita: não vou fazer. É uma preferência que, manifesta, abole a possibilidade de fazer o que é solicitado. É minha opinião que tudo isso se perde no “acho melhor não”.
[4] Não é ocioso notar que essa é mais uma história onde há uma marcante ausência de mulheres, inclusive na vida do próspero patrão de Bartleby, sobre a qual não temos, por mínima que seja, a menor alusão a qualquer relacionamento amoroso.
[5] Contudo, ele mesmo se intitula a certa altura, de “velho Adão ressentido”.
[6] O que mostra que Bartleby, escrito por volta de 1853, é antecipador em muitos pontos. Ficou famosa a idéia de Borges (no prefácio da sua tradução ao texto, em 1944) de que ele seria um precursor de Kafka. É engraçado que Borges lança a idéia muito de leve, muito sucintamente, porém ela ganhou amplitude e carreira na Wall Street das teorias literárias (e sem parede).
VER NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2011/09/27/parede-e-muro-o-medico-e-o-mutismo-do-monstro/
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Alfredo Monte é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br
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