As serpentes nas pontas dos dias



…………………………..  (Foto by Fernando Priamo)

 

Hora zero. Prisca Agustoni. São Paulo: Patuá, 2016.

A morsa. Prisca Agustoni. Belo Horizonte: Mazza, 2010.

A neve ilícita. Prisca Agustoni. São Paulo: Nankin; Juiz de Fora: Funalfa, 2006.

Inventario di voci/Inventário de vozes. Prisca Agustoni.  Belo Horizonte: Mazza, 2001.

Traduzioni Traduções. Prisca Agustoni /e/ Edmilson de Almeida Pereira. Belo Horizonte: Mazza, 1999.

 

 

Em Hora Zero, Prisca Agustoni reitera a marca existencialista da sua poesia vinculada à memória e ao corpo físico, desta vez com forte expressão sensorial aplicada a uma casa que serve como espelho de projeção de sensações com seus quartos e paredes que, sendo metonímia do corpo, se movem como se respirassem na medida do que se sente ou se rememora – ou não, apenas insinuando-se: uma epígrafe tirada de poema de Eustáquio Gorgone de Oliveira alerta, em sugestão a essa casa como espaço de memória: “Ó casa de muitos cômodos./ Há sempre um quarto/ que evitamos”.

Essa opressão sensorial poderia ser relacionada ao “presente especioso”, definido por William James como “a ilusão de uma consciência instantânea e simultânea aos estímulos sensoriais que a evocam”, uma vez que James considerava o presente ilusório não apenas pelo conteúdo temporal da consciência surgir com atraso em relação ao mundo, ou por dar coerência temporal a uma atividade neural inevitavelmente assíncrona. Ele percebia o presente como uma sensação estendida no tempo, possivelmente exigindo, de um lado, a revocação de um passado recente guardado na memória de curtíssimo prazo e, de outro, a expectativa de um futuro iminente”[1], num estado de angústia que sugeriria essa opressão sensorial.

Sendo uma poética de angústia sutil, com uma ambientação que se poderia dizer de casa assombrada (“se não fosse o medo/ poderíamos até nos ajoelhar// e rezar/ nesse inquieto paraíso”), esse espaço é um lugar de fantasmas: “Todos aqueles rostos na cômoda/ reféns da moldura/ não falam não piscam// nos fitam, apenas,/ quase hostis// eles irão nos sobreviver/ sem dúvida estarão lá/ impassíveis// diante da invasão/ ou diante da nossa última infância// quando seremos/ quem sabe, com eles/ apenas rostos na cômoda// mudos retratos em preto e branco/ na engrenagem das horas” – “Ainda cabe muita gente na casa// além dos mortos/ todos de pé nos retratos,/ alinhados no tempo”.

Sinonímia de um corpo, no caso de um corpo marcantemente feminino, “A casa/ uma placenta que se rompe/ cedo, cedo demais”, em que “dentro, outra/ fortaleza de sangue/ e esperma cresce,/ cresce, e já/ será colmeia ou casca/ inviolável”, é um espaço de temor e angústia que surge como um lampejo repentino no espelho através de um verso destacado: “a pelúcia rasgada na virilha”, eco de “uma voz que não encontra paz”.

Da mesma forma, como se fossem outros quartos, seus outros livros ecoam vozes de lugares assemelhados que reaparecem como fantasmas em Hora Zero: “Escuto as paredes/ dançando devagar” (“Monólogo”, em Inventário de vozes) – a ambiguidade desses dois versos é peculiar pela expressão de sensorialidade na medida em que se pode ler que tanto o “eu poético” quanto as paredes dançam… Em A morsa, um poema da parte “Os quartos invisíveis”, conjuga espaço, um quarto invisível, e corpo na expressão: “o covil sem rastros/ é um poço cavado/ dentro do estômago/ de onde grito/ apesar da rouquidão”. Ainda em A morsa, outro poema, “As orlas móveis”, diz: “reorganizo o quarto/ com as vozes adjacentes// : no fundo do corredor/ a alcova/ onde sobraram as vértebras,/ flechas sem arco”.

Uma epígrafe de Manuel Bandeira em Traduzioni/Traduções, livro de viagens e deslocamentos, com poemas sobre cidades, escrito com Edimilson de Almeida Pereira, reitera a sensação de se estar seguro em um quarto: “Dentro da noite/ No cerne duro da cidade/ Me sinto protegido”.

Porém, paradoxalmente, e remetendo a outra característica reiterada na sua escrita e biografia, a de ser estrangeira nascida na Suíça, falante da língua italiana, radicada no Brasil, no livro A neve ilícita, no poema em prosa, ou conto, conforme o gosto do editor, “Natureza morta”, a autora faz uma incisão perceptiva: “…é sobretudo no quarto onde és estrangeiro”, no quarto, poderíamos intuir, em que se poderia se sentir protegido, no quarto que evitamos, no quarto de casas assombradas pelas memórias, no quarto em que a metafísica existencial moi o corpo e seus ossos, como logo se sugerirá no livro A morsa

Já no livro Traduzioni/Traduções, uma epígrafe de Giorgio Caproni diz: “Minha viagem foi sobre ficar aqui, onde eu nunca estive”, nesse quarto em que se é, totalmente nu, estrangeiro, num lugar que não é a casa familiar, num quarto de hotel “no cerne duro” de qualquer cidade.

No livro A morsa, outra epígrafe, desta vez de Paul Éluard, que traduzo, diz: “Você está na minha casa. Estou em casa?” A sugestiva dúvida desse “eu poético” poderia também levar a inferir, sendo essa casa o espelho do “eu”, uma outra questão: “Estou comigo?”

Eis que estamos em meio à “novela do espírito”, como alfinetou um dia Voltaire sobre a metafísica e, como é própria dela, dirigir-se por ela, é estar em um labirinto, diria sem saída, como vão sugerindo os versos de poemas do livro A morsa (que é, não custa lembrar, uma espécie de torniquete, aqui sugerido como para quebrar/moer os ossos, numa expressão exponencial de existencialismo multiplicado nos poemas): “e é minha a mão assassina/ que esmaga o coração/ como o rastro sobre a neve”. Se não é numa casa, é numa morsa (“Na morsa/ onde ninguém me procurava/ fiei as vértebras.// Desde então levo comigo/ esses ossos/ no encavo do verbo” – “Reféns”, em A morsa). “…minhas pétalas/ são sílabas/ que se tornam palavras/ úlceras entre as mãos” – “no espaço vazio/ da costela,// lá onde ainda dói” – “as tesouras/ sabem daqueles nós/ há muito tempo/ invisíveis na garganta.” (todos versos de poema de A morsa).

No livro Inventário de vozes (2001) os ossos já rezavam à espera dessa morsa (2010): “No dédalo do repouso/ os ossos/ rezam” (“Dorme”, Inventário de vozes).

É em Inventário de vozes também que Prisca Agustoni registra um de seus mais belos versos, excruciante por metafísico, inspirado num quadro de Modigliani: “Tenho mãos antigas,/ com serpentes na ponta dos dias.” – “Modigliani – Mulher jovem”, Inventário de vozes).

Colocar-se imaginariamente numa casa, nesses quartos, em cubículos, numa morsa multiplicadora do ser em pedaços é uma forma de espelhamento desse labirinto mencionado, efetivado pela representação, que, ainda que angustiante, ainda que como um exercício de horror vacui, se sinaliza como única possibilidade de saída.

 

 

 

[1] Marcus Vinícius C. Baldo, André M. Cravo e Hamilton Haddad Jr. “Marcas do tempo”, em: Scientific American Brasil, Jul. 2006, p. 68-75, disponível em: http://www.icb.usp.br/~vinicius/publications/Baldo_Cravo_Haddad_2006.pdf.

 

 

 

 

 

.

Ademir Demarchi nasceu em Maringá e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum(poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livros Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná18 Poetas Catarinenses – A mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991);Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP);Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba),  Jornal do Brasil/IdéiasRascunho(Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do ParanáBabel (Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites,  entre eles,  as revistas eletrônicas GerminaAgulhaEl Artefacto LiterarioTanto e Critério. E-mail: revistababel@uol.com.br




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook